quinta-feira, 1 de junho de 2023

Emanações de uma máquina de datilografia...


Hoje em dia soa engraçado e até esquisito para alguns, mas só quem viveu experiências com máquinas de datilografia sabe o quanto esteve dentro de um poema de amor e não percebia... Mas vou explicar melhor...

Em 2018 meu pai adoeceu pela primeira vez. Ele nunca teve sequer uma gripe. Teve esse privilégio. Tenho a impressão que se ele não tivesse fumado a vida inteira, inclusive até um mês antes de morrer, teria passado dos 100, como a sua irmã, minha tia Maria que sempre a louvo por aqui. Na sua morte abalei-me até o estado de Mato Grosso do Sul, onde nasci e fui educado. Infelizmente ele morreu aos 94 anos.

Alguns dias após a sua partida, debrucei-me sobre diversas velharias que ele guardava a sete chaves. Meu pai tinha a mania de guardar muita coisa num quarto no qual não costumávamos entrar, pois ele recomendava exatamente isso. Naquele tempo quase todos os filhos obedeciam ordens paternas e maternas. Confesso que nunca entramos ali. Nossa casa era muito grande, de maneira que aquele cômodo era exclusivo para ele.

Então, com a sua morte, entramos naquele imenso quarto que mais lembrava uma câmara de pirâmide egípcia. Havia tanta coisa antiga que, despercebidamente, contavam a história da cidade. Meu pai, antes de se casar com a minha mãe, deixou o RN esteve algumas vezes na cidade que ainda nem tinha tal denominação. Idos de 1947. Objetivo: encontrar um novo lugar para constituir a sua família.

Pois bem, nesse quarto tinha muita ferramenta e objetos utilitários em desuso: moedores de carne, de café, milho e outros tipos de grãos, machados que davam para colecionar, foices, travadores, serras de mão, facas, facões, capinadeiras, desnatadeira, martelos, serrotes, limas, máquina de plantar grãos (alguns a chamam de matraca ou tico-tico), plainadeiras, torrador de café, máquina de passar veneno, chaveiros de antigos com propaganda de diversas empresas e até mesmo de candidatos a cargos políticos, cédulas e moedas antigas, fotografias, muitos relógios, louças, vidros, bules e canecas de Ágatha, inúmeras peças que eu não conhecia, enfim era um nascedouro de velharias.

Achamos até uma carta que a minha mãe escreveu para ele em 1949, ainda em "bico de pena". Mas dentre tantos "tesouros" encontrados, dei-me com uma máquina de datilografia que ele comprou para mim e minha irmã Regina. Era uma Remington 1981, portátil. Parecia uma malinha (essa da fotografia). Não me envergonho de contar que as lágrimas desceram aos cântaros.

No tempo da aquisição dessa máquina a cidade ainda não tinha escola de datilografia, portanto ele quis adiantar as coisas, preocupado com a nossa Educação. Então veio um episódio que marcou a minha vida. Episódio assustador, diga-se de passagem, mas aquela máquina cumpria essa lembrança. Ela fora cúmplice...

Foi assim: eu e minha irmã Regina estávamos no famoso tac tac tac... quando um cheiro de queimado impregnou a sala. Nossa casa, imensa, não nos permitia ouvir o que se passava nos fundos. Seguimos a intensidade do cheiro, ouvimos estalidos e um crepitar de fogo... quando abrimos a porta do último quarto... demo-nos com uma fogueira consumindo uma das camas. As labaredas engoliram as cortinas, queimaram as sanefas e chegaram ao forro de madeira. Assustador!

Nesse instante ouvimos gritos de todos os lados. Era a vizinhança, desesperada, trazendo baldes com água. A casa encheu de gente, e o fogo foi contido. Lembro-me que eu e minha irmã ficamos inertes. O susto nos petrificou. Em casa só estavam eu, minha irmã e o irmão caçula de seis anos de idade.

A cidade nesse tempo, somava apenas 31 anos de idade. Engatinhava. Bombeiros? Só em Campo Grande. Impossível! Mais curioso foi descobrirmos o autor do sinistro. Foi nada mais que o dito nosso irmão caçula. Na cozinha ele pegou de um fósforo, e em sua inocência de meia dúzia de anos, riscou sobre a cama, se fechou entre os cobertores de lã no outro guarda-roupa e pôs-se a apreciar as línguas de fogo lambendo tudo. Foram os vizinhos que o descobriram ali, ao apagar o fogo. Poderia ter morrido.

Pois então, esse é um filme que jaz muito bem guardado nas minhas memórias. Eis que ao tocar nessa máquina que eu nem mais me lembrava, assisti novamente a película... então exibiu-se esse filme que, hoje, soa engraçado, mas que nos fez tremer. Toda vez que coloco os meus olhos até mesmo nessa fotografia, vem o filme das minhas memórias datilográficas e desse sinistro que por muito pouco não ocasionou uma tragédia. Já ia me esquecendo... no meio dessas burundangas encontrei até mesmo a nota fiscal da compra dessa máquina. Vejam como o meu pai guardava tudo.

Mas... voltando ao assunto, tudo o que estava nesse quarto de quinquilharias foi retirado e limpo. Passei quase um mês nesse empreendimento. Alguma coisa foi para o Museu Helena Meirelles, inaugurado em 2019, e que já vinha sendo organizado há mais de cinco anos. A máquina ficou guardada em casa, na mesma escrivaninha que testemunhou a minha infância e juventude. Ainda treinei um pouco. Meu sobrinho, de 9 anos, filho do autor do incêndio, ficou impressionado com a "geringonça". Perguntou se era um computador velho. Creio que julgou pelo desenho das teclas. Ri muito. Também impressionei-me com as velharias que o meu pai conservou. Muitas delas foram transformadas em peças decorativas, outras foram divididas entre os irmãos pelo valor estimativo. 8.7.20.

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