sábado, 5 de abril de 2025

“O ABISMO SOB AS FLORES DA CIVILIZAÇÃO” E AS FESTAS JUNINAS NO RIO GRANDE DO NORTE, O QUE NÍSIA FLORESTA NOS ENSINA...

 


“O ABISMO SOB AS FLORES DA CIVILIZAÇÃO” E AS FESTAS JUNINAS NO RIO GRANDE DO NORTE, O QUE NÍSIA FLORESTA NOS ENSINA...

Antes de entramos no âmbito da reflexão, leiamos esse trecho do ensaio ‘O abismo sob as flores da civilização’ (Il L’abissotto i Fiori dela civilitá), escrito por Nísia Floresta, parte da obra ‘Cintilações de uma alma brasileira’ (Scintilled’um’anima brasiliana’, publicados originalmente Florença, Itália no ano de 1859.

"A música, esta celestial inspiração de almas poéticas e religiosas, mas tão profanada desde que se fez usar para matar alegremente os homens, e para depravar a mulher, atira e encilha os dois sexos numa dança desenfreada, à qual comanda o gênio da presente corrupção.

A desfaçatez, a luxúria, os excessos dos sentidos disputam o reino de dissolução, envolvendo num véu transparente a ruína dos povos; ruína que a civilização aprova e fomenta num contrassenso que horroriza o pensador, e lança nos ânimos gentis a dor e o desconforto!

Após muitas libações, a dança; após a dança, o passeio entre os verdores de inumeráveis alamedas. E depois, ainda, o infernal turbilhão de ‘valse’; onde extenua-se o vigor do corpo, quando aquele da alma já se dissipou.

Ali passeiam cabeças vazias; aqui lábios impuros pronunciam fugidiamente aquelas palavras tão poderosas sobre o pudico lábio da mulher. Um pouco apartado, ao lado de uma Megera enguirlandada, senta-se um jovem, ou melhor, um espectro vivente, que arrasta-se ele também à ‘Foire au plaisir’ (1), quando a morte já imprimiu o fatal sigilo sobre sua fronte. – O infeliz ilude-se! A sorte pôs ao seu lado, em vez de um anjo talvez abandonado, um demônio que o enfeitiça; precipitando-o para um fim prematuro, após ter-lhe desfibrado o corpo e a alma...” 1- Feira de diversões.

Nísia costumava jogar no papel muito do que testemunhava. Tudo era matéria prima para crônica. Ela presenciou a cena acima às margens do Sena, “para os lados de Asniére”.

Embora eu transcrevi o trecho completo, minhas observações se detém apenas aos quatro primeiros parágrafos, tendo em vista que o restante é óbvio demais. Para o bom entendedor...

Pois bem, já estão aparecendo os cartazes de propaganda do São João dos municípios do Rio Grande do Norte e isso traz muitas mensagens sublimares. É sobre isso que ontem eu conversava com uma pessoa que trabalha com cultura, inclusive citei essa passagem escrita por Nísia, tendo me lembrado dela. O assunto foi sobre a descaracterização das festas juninas do Nordeste. Aqui me atenho ao Rio Grande do Norte para falar com propriedade. Já ressalvo que não se trata de congelar o passado, engessando-o, tendo em vista que a civilização anda para frente.  Também não estou propondo que as festas sejam festas catequéticas. Refiro-me a conservar intacta a essência das coisas da terra (como os gaúchos fazem). Lá eles dizem “Mateus, primeiros os teus”. (Certíssimos!).

Você percebe que esse texto de Nísia Floresta parece escrito hoje. A postura de estranhar certos comportamentos modernos faz parte da história da humanidade. Antes de Cristo há registros de sábios criticando o comportamento dos jovens. Isso sempre existirá. O que farei agora, inclusive, é nada mais que isso. O que Nísia Floresta fez, foi nada mais que exercer o seu direito de estranhar o que viu.

Mas o que ‘O Abismo sobre as flores da civilização’ de Nísia Floresta tem a ver com isso tudo. O ensaio é dedicado aos jovens. Vamos entender isso tudo a partir da significação do título. “O ABISMO” se refere aos perigos aos quais os jovens estão sujeitos se se permitirem o mal (má companhia, por exemplo). “AS FLORES” são os próprios jovens. “AS FLORES” são as virtudes; tudo aquilo de bom que um jovem pode trazer dentro de si e praticar enquanto civilização. E a civilização? O que significa. “CIVILIZAÇÃO” é a humanidade.

Mas vamos retomar a conversa sobre Cultura. Festa Junina é uma tradição muito forte no Rio Grande do Norte. Ela está na alma do povo potiguar. As coisas juninas transcendem, estão no ar. As pessoas praticam as festas juninas dentro de casa, no quintal, na calçada, no bairro, no comércio formal e informal, nos festejos públicos. É uma fusão de tradições em que encontramos a gastronomia, os festejos, a linguagem, as bebidas, hábitos, religiosidade, musicalidade, enfim, uma gama de coisas. Mas mesmo assim não significa que a tradição mantém viva a sua essência.

Do mesmo modo que lá em cima Nísia Floresta critica a forma como a mulher é tratada nas músicas, o comportamento dos jovens nas festas públicas, cabe a mesma reflexão no presente. Vamos rever o que ela escreveu: “A música, esta celestial inspiração de almas poéticas e religiosas, mas tão profanada desde que se fez usar para matar alegremente os homens, e para depravar a mulher, atira e encilha os dois sexos numa dança desenfreada, à qual comanda o gênio da presente corrupção”.

É isso! Se há 166 anos alguém se horrorizou com o que viu em plena França, imagine hoje. Não vou entrar em detalhes. Basta ver os vídeos que têm em abundância na internet, pós-festas. Creio que pai algum gostaria de saber que sua filha ou o seu filho se submetem a tanto vexame (drogas, comas alcoólicos, estupros, brigas, acidentes etc).

O outro detalhe da minha conversa se deteve ao comportamento da maioria das prefeituras de Natal e cidades vizinhas, que tem a bizarrice de trazer cantores sertanejos para o São João do Nordeste. O que Gustavo Lima e Luan Santana têm – por exemplo – com o São João do Rio Grande do Norte? Esses artistas estão para a Festa de Peão de Boiadeiro, de Barretos, interior de São Paulo, como Elba Ramalho, Alceu Valença, Zé Ramalho, João Gomes, Jorge de Altinho, Petrúcio Amorim, Flávio José, Zé Vaqueiro, Dorgival Dantas e uma porção de outros artistas incríveis estão para o São João do Nordeste. São costumes e tradições muito peculiares a cada região.

Não é preconceito, bairrismo ou algo do tipo. É sensatez e preocupação com a valorização das raízes de um povo. As instituições públicas que promovem a Cultura (Secretarias, Fundações etc) municipal e estadual tem o dever moral de serem os primeiros a preservar a cultura do seu povo, ao invés de usar a máquina pública ao gosto pessoal de terceiros. Alguém já viu Dorgival Dantas, Elba Ramalho ou João Gomes se apresentando na Festa de Peão de Boiadeiro de Barretos? Eles já cantaram no Oktober Fest de Santa Catarina ou na Festa da Uva, no Rio Grande do Sul?  (Nunca!). São festas que refletem a essência deles. Da mesma forma é o São João do Nordeste que tem tudo a ver com a nata da música nordestina, o zabumba, ao pandeiro e à sanfona.

As festas do Nordeste tem lugar para todos os artistas, ritmos e gostos, MAS NO MOMENTO CERTO. Mas há uma exceção quando falamos de SÃO JOÃO NO NORDESTE. O problema é que as instituições públicas que promovem a cultura – salvas as raras exceções – precisam ter consciência disso.

Negar ao povo o fomento às suas tradições é com toda certeza  uma forma de corrupção, pois quando os gestores públicos – que tem todos os instrumentos possíveis para enaltecer as raízes culturais de um povo – deixam de fazê-lo, estão corrompendo a sociedade, alienando-a.

É muito injusto ver as nossas crianças e os nossos jovens perdendo a sua identidade cultural ou entendendo as festas públicas como espaços de degradação. Esse discurso parece careta, mas não é. A população deve resistir e reivindicar, afinal os homens que estão no poder, hoje, foram colocados ali para representar o povo, e se esses homens estão equivocados, a sociedade deve dizer “Alto lá!”

Pois bem, se você é daquelas pessoas que sentem saudade da beleza, da poesia, da amorosidade, da presença das famílias, da alegria da população junta e misturada, da satisfação de estar num evento seguro, desde a sua estruturação às apresentações artísticas, o que você faz para que isso aconteça?

Que tal pensar? Pensar e por em prática ideias e alternativas para que a nordestinidade volte aos bairros, às vilas, aos lugarejos, às cidades. Que os artistas da terra sejam valorizados e respeitados nas festas públicas, que sejam remunerados com justiça, assim como os sertanejos são.

Quando Nísia Floresta critica a falta de poesia na aura cultural, referindo-se às músicas que trazem letras e coreografias cheias de vulgaridade, quando ela critica os equívocos nos festejos públicos, quando ela fala de corrupção, ela se refere à ausência da qualidade nas letras das músicas, ela fala do desconforto que muitos sentem ao ouvir vulgaridades num espaço onde há crianças, jovens, adultos e idosos. Num espaço de sociabilidade que deveria servir para celebrar as suas tradições genuínas de um povo.

Não sou contra os sertanejos nem a outros ritmos, inclusive nasci num estado em que as emissoras de rádio tocam sertanejo o dia inteiro – sou fã de Milionário e José Rico e Tonico e Tinoco e uma porção de artistas sertanejos (de verdade) –, mas os sertanejos devem ter lugar em outras festas nordestinas (aniversário da cidade, destas natalinas). No São João, não! O São João é quando o povo nordestino deve recarregar as suas baterias culturais – dançando xote, baião, xaxado e todas as vertentes do forró genuíno do passado e do presente – renovando-as, transmitindo-as às novas gerações... 

Pois é, eis que trago justamente Nísia Floresta para uma discussão aparentemente desconectada, mas, pelo contrário, nada mais pertinente que a nossa Nísia para nos ensinar sempre...

Que tal pensar!

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