A matéria prima de pesquisa popular é composta de pessoas. Vem delas o que queremos saber e desencadeiam delas a mais extraordinária experiência e descobrimentos, pois tudo pode acontecer, é uma teia. Recordo-me que em 1994, no povoado de Taborda, em São José de Mipibu, povoado situado na divisa com o município de Parnamirim, eu conversava com um senhor idoso, chamado Antônio, sobre Cultura Popular. Era uma roda de conversa, pois algumas pessoas da fazenda se sentavam sob a mangueira e se apossavam de um ou outro assunto, davam pareceres, opinavam, riam, enfim, nesse fervilhado brotavam pérolas. Um citava o Boi-de-Reis de fulano, a Lapinha de Siclana, o Pastoril de Beltrana... Dependendo o mote da pedida - linguagem, comida, folguedos populares, fazeres, lendas etc -, cada um saltava com alguma coisa interessante.
Sr, Antônio, o mais idoso, teve uma vida ligada a São José de Mipibu e Parnamirim, pois são muito próximas, apesar de que Taborda está mais ligada a Parnamirim. Foi nesse entrelaçar de caminhos que ouvi uma lenda que denominam "Papa Figo" (entendam por "figo", o fígado humano). A lenda advém de uma senhora que, de fato existiu. Pouco tempo depois, curioso pela aura que essa lenda impregnou aquela roda de conversa, fui saber quem era essa senhora. Descobri que a "Papa Figo" - pelo meno no imaginário popular - se tratava de Amélia Duarte Machado, uma mulher muito rica, viúva do empresário Manoel Machado, um rico comerciante que doou as terras para construção do campo de pouso de aviões na década de 1920. Fiquei impressionado.
Amélia Machado (conhecida também como "Viúva Machado"), depois de ter ficado viúva, cedeu as terras onde atualmente se encontra a Base Aérea de Natal, mas que na década de 40, era a Base Aérea norte-americana, considerando a presença dos EUA em Parnamirim naquele contexto da Segunda Guerra Mundial, quando houve parceria entre o presidente brasileiro Getúlio Vargas e o presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt. Amélia também cedeu grande parte da área onde se instalou o município de Parnamirim.
A lenda me é intrigante: como uma mulher tão rica e generosa, esposa de um homem tão generoso, poderia tornar-se o centro de um enredo que a descreve como um monstro comedor de criancinhas? O que teria feito aquela mulher para atrair para si uma narrativa tão marcante? Como surgiu essa lenda?
Nesse encontro com o sr. Antônio, alguns nativos partilharam o pavor que sentiam quando ouviam falar da Viúva Machado. Curioso é que essas pessoas, mesmo adultas - e algumas idosas - nutrem ainda esse sentimento de medo. Eles contaram que seus pais diziam que ela vagava nas matas locais de Parnamirim, frequentava a lagoa e uma fazenda próxima ao rio Pitimbu, onde descansava com familiares.
O tema, claro, intrigou-me profundamente: entre o registro histórico e a sensação de assombro que a história provoca, há uma linha tênue entre o que foi vivido, o que se repete nas vozes das pessoas e o que a pesquisa ainda não conseguiu decifrar. Também me chama a atenção que idosos contam a lenda com tom de mistério, ressaltando o quanto tinham pavor só de pensar em se deparar com a viúva Machado nos arredores de Parnamirim.
Realmente é interessante, inclusive é uma lenda possível de datar a sua origem, pois surgiu após a morte do marido, quando ela se viu obrigada a assumir todo um império, pois eles eram muito ricos. Ela não entendia de administração e teve que aprender tudo para que o patrimônio não saísse pelo ralo e findou dando conta do recado. Imagine isso nas décadas de 30/40. Realmente a coisa foi difícil para ela, pois o maior obstáculo daquele tempo era o simples fato de ela ser mulher. Quantas mulheres administravam fortunas em Natal? Só ela! Creio que essa lenda não é difícil de se entender. Com certeza foi uma forma de destruí-la ou se vingar dela, algo do tipo. Aconteceu algo parecido com Nísia Floresta. Quiseram destruí-la com deploráveis calúnias devido à sua intelectualidade e o fato de ela lutar pela emancipação feminina.
Ao transpor essas lembranças para o papel, percebo que a pesquisa de cultura popular é, antes de tudo, uma escuta paciente. Não se trata apenas de confirmar fatos ou de atribuir uma “verdade” a uma figura, mas de ouvir as vozes que a cercam, entender os medos, as memórias e as perguntas que permanecem no ar. E, nesse processo, cada narrativa — mesmo aquela que parece ter o peso de um mito - revela mais sobre quem a conta do que sobre quem é contado. Ainda há muito a explorar sobre essa lenda, e cada encontro sob a sombra de uma mangueira lembra que o passado se faz vivo quando alguém o escuta com cuidado. Com certeza, Amélia Machado também foi vítima de grande injustiça. 7.7.2009
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