Às sete da manhã de hoje recebi ligação comunicando a morte da dona Maria, cunhada do dr. Antonio de Souza, importante escritor e ex-governador do Rio Grande do Norte. Durante décadas busquei - em vão - por pessoas da família dessa figura notável do estado, mas nem os mais versados pesquisadores das coisas do RN tinham pistas. Certa vez, inesperadamente, Alysgardênia conversava com uma senhora idosa que conhecera naqueles dias, em Natal, e essa senhora era nada mais nada menos que a cunhada do dr. Antonio de Souza. A descoberta se deu porque Alysgardênia mencionou o município de Nísia Floresta, onde passamos uma chuva e ela admirou-se, afirmando "O dr. Antonio de Souza era meu cunhado". Alysgardênia, sabedora da odisseia que empreendo atrás dessa informação, chegou em casa e disse "tenho uma surpresa para você, e você não vai acreditar: hoje falei com a cunhada do dr. Antonio de Souza". Fiquei olhando para ela, abismado, como quem se equivosse com o que acabara de ouvir. Então ela contou-me sobre o encontro casual com essa senhora. Mas Alysgardênia já trazia o endereço, contato e a promessa de que ela me receberia em sua casa.
Lá vai eu falar com dona Maria, um ser humano adorável. Lembrava minha tia Maria no aspecto de receber as pessoas em sua casa como se todas fossem especiais. Era divertida, altiva, voz forte. Conversamos muito no primeiro encontro, e como pesquisa é coisa morosa, fui algumas vezes falar com ela, sempre levando o notebook. Em cada encontro ela se lembrava de algo novo, sempre um insight, afinal ela contava mais de 80 anos de idade.
Conversamos muitas vezes e em diversos encontros. Ela me forneceu fotografias inéditas do dr. Antonio de Souza (até da mãe dele), as irmãs, o irmão. O marido da dona Maria foi o último irmão a morrer entre os demais, portanto ela herdou muita coisa do escritor e da família. Enfim, ela contou-me fatos que se eu não os estivesse sabido, teriam sido sepultados exatamente hoje. Foi prodigiosa essa descoberta.
Um dia, passando defronte à sua casa, ela me viu de longe e lá estava com um grande pacote nas mãos. Era um Bíblia do século XIX, intacta, um livro grande e cheio de réplicas de pinturas. Disse que era um presente. Eu fiquei impressionado com aquela alma desprovida de apegos e me recusei a receber. Ela era católica praticante. Tentei convencê-la a doar para um filho ou filha. Ela disse que eles não teriam o cuidado que eu teria, que serviria muito para mim, pois eu era um pesquisador (vejam só que cérebro especial!), mas não aceitei. Coloquei outras conversas dentre as conversas e pedi que ela me perdoasse, que não era uma desfeita. Ela entendeu.
Nesse exato momento acontece o seu velório e cá estou contando essa memória. Nunca me esqueci e nunca me esquecerei da dona Maria, pois além de ela ter me fornecido informações preciosas e inéditas sobre o personagem que estudo, surgiu uma amizade. O domingo se tornou diferente para mim. Não é tristeza, é um silêncio que passei a ouvir desde a chegada da notícia. Passou um filme na mente. Foram 10 anos de uma amizade memorável. Não nos víamos todos os dias, mas numa normalidade. Há 4 anos ela acamou-se e foi indo embora lentamente. E morreu nas portas dos 100 anos de idade. Não irei em seu velório nem em sua missa, mas irei sempre visitar as lembranças desse adorável ser. A alegria e bondade dela, tão verdadeira, hoje me acalenta. É como um bálsamo confortador. Fechou-se um ciclo. Encerrou-se uma amizade, mas continuarão as memórias. Aqui tudo começa e aqui mesmo tudo se acaba...