ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Entre cuias e quengas, História


 Subtítulo - O uso de cuias de coités e quengas de coco como peças utilitárias do cotidiano nisiaflorestense e a sua relação com a História do Brasil

Há muito eu pretendia transformar num breve texto algumas anotações que fiz em 1992, quando me defrontei com uma tradição curiosa no município de Nísia Floresta, região metropolitana de Natal/RN. Trata-se do uso de bandas de cocos (Cocos nucifera L.) e coités (Crescentia cujetecomo peças utilitárias. Obviamente isso não é uma exclusividade deste município, mas como vi ali pela primeira vez, escrevo sobre tal experiência.
Em março de 1992, tendo ido pesquisar sobre caulim, substância contida no barro (argila), no distrito de Genipapeiro, fiquei numa ampla casa de taipa, cuja proprietária colocou à mesa conchas feitas com bandas de coco - chamadas por ali de "quengas". Essa cena deu-se na mesa do almoço, inclusive a farinha veio numa cuia de coité, objeto proveniente do fruto do cuitezeiro, árvore que dá frutos semelhantes a uma bola de futebol, embora seja bem maior. Também lembra cabaças, e seu formato é redondo.
Numa espécie de alpendre que divisava a cozinha com o quintal, ficava um jirau feito com varas e tábuas. Toda a louça era lavada ali. Junto aos pratos ficava um monte de cuias de coité, que serviam como vasilhas de uso da casa. Faziam papel de panelas, fruteiras etc. Não existia água encanada em nenhuma casa, então as cuias serviam de apanhadores de água enquanto se lavava louça. Foi então que lembrei-me de um livro que usei na USP, o qual retrata algumas peças de prata que pertenciam a D. Pedro e famílias nobres de sua época. É muito interessante a relação entre o que está no livro e o que vi em Jenipapeiro, e que é comum em toda essa região, principalmente nas áreas periféricas do interior.

Livro: O Museu Histórico Nacional. - São Paulo: Banco Safra, 1989.

Não preciso informar que tais peças foram inventadas pelos descrobridores reais do nosso país, ou seja, pelos mal denominados índios brasileiros. Mas o que teve para mim um encanto muito especial foi constatar que o design dessas duas peças utilitárias saiu das aldeias indígenas de Pindorama para Portugal, onde foi transformado em peças de luxo e requinte para a família imperial. E, curioso, os livros de História não nos contam esse episódio. Quantos brasileiros sabem disso?
Observe a fotografia abaixo, inclusive escaneei o texto do próprio livro logo abaixo. Veja que tais peças, curiosamente chamadas pelos portugueses de "cocos", traduziam merecidamente a sua origem. 
Livro: O Museu Histórico Nacional. - São Paulo: Banco Safra, 1989 pg. 151.
Não é necessário explicar que tais peças, apesar de sofisticadas, são réplicas luxuosas das conchas de coco, usadas nas casas nisiaflorestenses para retirar alimentos das panelas, como feijão, sopa, água etc. Veja, abaixo, as tais "musas inspiradoras".


 Agora, observe as "cuias", ou seja, as coités usadas há séculos pelos nativos nisiaflorestenses para múltiplas finalidades, como guardar farinha, feijão, apanhar água etc. Veja, abaixo, a cuia da aristocracia - denominada "farinheira", e logo depois a cuia indígena. A peça, de prata pura, não difere em nada das coités indígenas.

Livro: O Museu Histórico Nacional. - São Paulo: Banco Safra, 1989 pg. 148



Pelo tamanho das mãos do nativo é possível ter uma ideia clara do tamanho da cuia de coité e do fruto do coité. 


O exemplo acima nos permite ver a variedade de tamanhos e a importância que essa peça exerce ainda hoje no cotidiano dos nativos, embora muitas famílias as trocaram definitivamente pelas vasilhas plásticas. Outra curiosidade que observei em Nísia Floresta é a diminuição dessa planta nos quintais locais. Assim como as casas de taipa vão desaparecendo lentamente, dando lugar para a alvenaria, cujos quintais são encobertos por cimento e cerâmicas, não resta lugar para muitas árvores tão adoradas pelos mais velhos. 
E não são apenas os pés de coité que vem saindo de cena. Nota-se uma diminuição  nos pés de fruta-pão, cajá-manga, pupunha, sapoti, jenipapeiro e outros. Não se trata de extinção, mas de grande diminuição. Em Nísia Floresta existe um único pé de abricó.
Veja, abaixo, como os nativos manuseiam o fruto do coité até transformá-lo em cuia. Observe que o fruto é preparado ainda verde, cavoucado para retirar a polpa e as sementes. Depois de limpo é seco à sombra. 


sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Topônimos de Nísia Floresta e divisas


As pessoas sempre entram em contato comigo perguntando o significado dos topônimos de Nísia Floresta, que são os nomes originais dados ao patrimônio local (rios, lagoas, estradas, o próprio nome do município etc). 
 
Quando alguém trata desse assunto comigo, gosto de chamar a atenção para um detalhe importantíssimo. Quem inventou a escrita tupi-guarani fomos nós (homens brancos). Os índios falavam porque aprenderam a se comunicar há milênios. Mas obviamente não tinham nada escrito (pelo menos quando os europeus chegaram aqui em 1500). Nem nas cavernas, nem nas tábuas de cerâmica e tudo mais. Sua única forma de expressão, além das palavras (faladas), dos gestos e dos hábitos do cotidiano, era manifestada através das pinturas corporais e desenhos feitos em cerâmicas utilitárias. Alguns deixaram desenhos em cavernas. Mas em termos de escrita, eles nem sabiam o que era.
 
O que quero dizer com isso? Quero dizer que, por mais que existam especialistas na língua indígena (que não é o meu caso, pois sou apenas um pesquisador) há divergência entre os mesmos. Mas um detalhe muito significativo se refere à escrita É exatamente esse o ponto que eu quero refletir. 
 
Normalmente encontramos nomes parecidos e explicados de formas diferentes, parecidas ou confusas. O maior exemplo é o próprio nome original do município de Nísia Floresta: Papari, Papary, pã-pary, pã-pari, paspari, paspary etc etc etc. 
 
Quando os primeiros europeus chegaram de Portugal, da Holanda e da França, há mais de 500 anos, foi necessário anotar os nomes dos lugares para que os que viessem depois não se perdessem. Desse modo tiveram que observar atentamente a maneira como os índios falavam. Assim escreveram "Pirangipepe, Pirangi, Papari, pas-pary, pã-pari" etc. Cada um escrevia de um jeito porque certamente os índios falavam de maneira diferenciada. Eles escreviam o que ouviam.
 
Um exemplo bem elucidativo é a nossa própria língua portuguesa. Muitas pessoas falam "a rente rái", ou seja, "a gente vai". Veja como a diferença é grande. Obviamente que quando escrevemos optamos pelo vocabulário erudito, mas quando falamos valemos do nosso regionalismo, ou seja, da facilidade como expressamos as sílabas, as vogais, as consoantes etc. Foi exatamente isso que aconteceu. Pessoas de países diferentes foram anotando os nomes conforme ouviam da boca dos índios. Assim fizeram os seus mapas e suas cartas náuticas. 
 
Outro enfoque interessante é a multiplicidade de significados de uma única palavra. Como exemplo usemos a palavra portuguesa "casa". Há vários significados. Isso deve ocorrer com o idioma de quase, senão todos os países. Por que seria diferente o idioma dos povos nativos
 
Em Nísia Floresta - como na maior parte do Brasil - predominam os topônimos indígenas. Fiz uma lista abaixo, baseada em diversos autores, inclusive em "Nomes da Terra", de Câmara Cascudo, o qual os decifrava na fonte preciosa do paulista Teodoro Sampaio, o maior estudioso desse assunto naquela época. Há exceção para o primeiro nome da lista abaixo, que é árabe (coloquei apenas por ser um topônimo nisiaflorestense). Mas os demais foram dados pelos verdadeiros descobridores do Brasil. Segue, abaixo, uma pequena lista de topônimos do município de Nísia Floresta e proximidades.


Alcaçuz: do árabe arquessus: “arque”, raiz, e a planta “çus”.

Aninga: a-nhêenga: aquele que fala ou sussurra. A palavra "lenga-lenga", criada por nós, brasileiros, é uma curruptela dessa palavra indígena. Lenga-lenga (nheenga = fala + nheenga = fala): conversa mole, enrolação, conversa fiada. Deriva-se dela outra palavra inventada por nós: Nhen-nhen-nhen (forma apocopada de nheeenga-nheenga, usada nas regiões onde houve influência guarani). O mesmo que lenga-lenga. Aninga é uma planta de folhas grandes e talo muito grosso que se dissemina em locais pantanosos/alagados; é muito vista atrás do Porto e no caminho da Ilha.
Aninga


Araraí: a rara-i: rio da arara ou arara pequena, depende da forma como é usada. É um rio de pequeno curso em Nísia Floresta, 

Arituba: OBS. Estou mantendo contato com dois grandes especialistas na lingua tupi guarani, além de indígenas do meu estado, Mato Grosso do Sul, para decifrar essa palavra. Como sabemos, as palavras tupi-guarani foram escritas por homens brancos. Ao longo do tempo elas sofreram mudanças. Algumas praticamente foram reformuladas. Obviamente há significações para ARY e TUBA, mas não vou mostrá-las, pois não significa que ARITUBA seja a simples junção dessas duas palavras, pois os significados para ARY e TUBA são diversos, assim como na nossa própria língua. Nos próximos dias estarei postando o significado mais provável.

Boacica: “mboaciga”:  o atalho, o corte, o caminho mais curto (TS).

Cajarana: sítio entre Nísia Floresta e Arês. De “acaiá-rana”: o cajá ou a cajazeira.

Cajupiranga: “acaiú-piranga”: o caju vermelho. O nome é referência a um rio que divisa Parnamirim de Nísia Floresta.

Camurupim: “acamoro-pim”: ter a cabeça dura, rija (nome de um peixe, também dado a uma das praias de Nísia Floresta); desaguadouro da lagoa Papari no mar ou no rio Trairí, na chamada Barra Nova (assim mencionada em documento de 1816).

Capió: A goma da planta, goma da árvore. GRILO (1998, p. 177), sem apresentar a referência, diz “cai-pió”, e apresenta a mesma interpretação acima. Denominam capióo buraco deixado no massapê pela cana-de-açucar, mudada nas socas.

Carcará: “carãi-carãi”, arranha-arranha, o arranhador, o gavião poliburus vulgaris. Linguagem dos índios cariris do Rio Grande do Norte.

Carnaúba: caraná-iba: a árvore caraná, escamosa e áspera, rugosa.

Coité: qui-eté: vasilha verdadeira, cabaça, cuia.

Cururu-açu: cururô: o roncador, sapo grande, Pipa cururu (TS), sapo grande. Cururu é o nome original de campo de santana. Faz referência aos sapos até hoje abundantes naquela região.

Golandi: gua-nhandi, que é grudento (árvore calophyllum brasiliensis, St. Hill).

Imuna: “âmu-una”: o aliado negro, o parente, o associado negro.

Ipuxi: “ipu-xim”, a fonte, o manadouro brilhante, faiscante, pelo aspecto das águas transparentes. Até 1863 chamavam-na apenas lagoa “Puxi”, até que nesse ano Frei Serafim de Catania mudou o nome para lagoa do Bom Fim.

Jacaracica: "iacaré-cica": a baba do jacaré; lugarejo em Nísia Floresta. Encontrei-o num velho documento, mas não é mencionado onde fica geograficamente (se alguém souber e puder informar, agradeço). 

Jenipapeiro: de iandi-ipab, fruto de extremidades que dá suco. De iandi: suco, óleo, o que reçuma, e ipab, ibáp-pab, fruto da ponta, do extremo, alusão ao fruto do jenipapeiro (
Genipa americana, Linn)

Mangaba: mongab, o visgo, pegajoso, viscoso.

Mipibu: “mpi-pu”: o que surge, emerge, inopinado, súbito (alusão à fonte do rio, brotando do seio de um bosque (É o rio da bica). Obs. Câmara Cascudo traz também a seguinte interpretação feita por Teodoro Sampaio: “o saco de couro para conduzir água, a borracha dos nossos comboiemos”. O historiador potiguar faz críticas a essa tradução de Teodoro Sampaio, alegando que “nossos indígenas não conduziam água em odres. Foi processo trazido pelos portugueses”. E reforça a primeira interpretação acima, dizendo que sua tradução vem “talvez de ‘mbi-mbu’, o que surge, emerge, inopinado, súbito (alusão à fonte do rio, brotando do seio de um bosque)”. Antigos documentos trazem as grafias “Mopobu” e “Mepebu”. Em 1630, Adriano Verdonck registrou o local (aldeia) como “Moppobu”. Em 1639, Adriano van der Dussen, referiu-se ao local como “Mompabu”. Em 1640, o padre Manoel de Moraes o registrou como “Mopebi”. Em 1643, Marcgrave o registrou como “Mopebi”. Em 1645 realizou-se uma assembléia de índios em Goiana, PE, estando presentes representantes dessa região, o local foi referido como “Monpebú”. Uma relação de 1756, elaborada pelo Senado da Câmara de Natal informa o local como “Mopebú”. Em 1689, o mesmo Senado da Câmara de Natal referia-se ao local como “Mepebu”. Existem outras versões sempre parecidas. Fica a reflexão do texto, tendo em vista que esses topônimos foram primitivamente registrados por europeus, e não os donos da língua indígena. Cada um escrevia o que entendia. E essas variantes foram se avolumando segundo a criatividade de cada um.

Oitizeiro: de ui-ti: massa apertada e comprimida; alusão a polpa granulada, úmida e rija da fruta (TS) e o sufixo português eiro. Árvore dos oitis: Moquilea tomentosa, Bent.

Papari: “papã-ry”: rio encachoeirado, rio de contas, na versão de (GRILLO, op. cit). Tal versão é apontada pela autora sem menção de fonte, portanto não é possível saber para comparar, pois, como já foi dito, não existe o topônimo específico “papary” ou “papari”.

Papeba: “ipá-peba”: lagoa rasa.

Paraguaçu: “pára-guá-açu”: grande enseada, baía dilatada, ampla. (nome original da atual lagoa Papari).
rio grande.

Piranji: “pirã-gi-pe”: rio das piranhas. Num documento datado de 1564 está escrito: ho dito porto dos Buzios que pella limguoa dos imdios se Pyramgypepe.
 

Pari: armadilha de pesca. (É uma espécie de covo feito até hoje pelos pescadores).


Pium: pi-ú: o que se pica ou morde, derreado, agachado. É um mosquito minúsculo de mordedura picante, que incomoda mais que pernilongo (moriçoca).

Puxi: “ipu-xim”: a fonte o manadouro brilhante, faiscante, pelo aspecto das águas transparentes; ou ipo-xi: água-má, imprestável por não ser piscosa. Era a sua denominação oficial até 1762, quando a Vila de São José foi fundada. Frei Serafim da Catânia mudou o nome de Puxi para Bom-Fim em 1863.

Sapê: “eça-pé”, ver caminho, alumiar. Um tipo de capim usado para cobrir casas de taipa ou palha.

Surubajá: de çurubi-iá por rá, senhor do peixe surubi ou bagre, lugar de muito bagre (J.A. Padberg-Drenkpol). É um rio que liga Nísia Floresta à lagoa Guaraíras, em Arês.

Tabatinga: “tauá-tinga”: barro branco.
 

Timbó: significa o bafo, a fumarada, o vapor d’água. Planta cujo suco mata o peixe. Paulinia pinnata (Teodoro Sampaio). O chamado Timbó-de-peixe é o serjania cuspidata. Lagoa de timbó em 1706, data-89, LCC).

Tororomba: de “tororo- mbaba”, que significa “fim da enxurrada”.

Trairi: “tarayr-y”: rio das traíras.

Upapari/Ipapari: a lagoa do pari, cerca para prender peixes.

“y” ou "u": água.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Nudez, arte e sociedade


O abraço - Picasso
       Como sabemos, a releitura da obra de Lígia Clark, em Porto Alegre/RS, com a performance de um artista nu, protagonizou uma polêmica nacional no mês passado e até hoje é comentada, dividindo opiniões. O Brasil parou de maneira que se esqueceram da roubalheira de boa parte de nossos políticos em conluio com certos empresários.
         De vez em quando, assistindo a novela "O outro lado do mundo", num dos meus raros momentos acordados a essa hora, vejo cenas e expressões que considero desnecessárias. Obviamente elas fazem parte da vida real de algumas pessoas, mas em termos de telenovela, não acrescentam nada de positivo. Dia desses, fazendo umas fotografias na Ribeira, vi um casal transando num beco. Eles não demonstraram receio algum, certamente por perceberem que eu estava ali como um turista e perceberam que eu fingi não ter percebido nada e me afastei.  Isso confirma que na vida real tudo acontece. Até o inimaginável. Mas trazer esse aspecto da vida para mostrar em novela - de maneira óbvia - é passável. 
        Considero sem necessidade proclamá-las, principalmente num horário no qual boa parte das crianças estão acordadas até altas horas, penduradas nos celulares, ao lado dos pais que assistem novelas. Falo da personagem Graziela Massafera,  que sai à cata de homens pela madrugada, transando com frentistas desconhecidos em postos de gasolina. Num tempo de campanhas contra AIDS e outras doenças transmissíveis, isso não pega bem. É óbvio que a atriz imita a vida real, mas as pessoas de casa querem ver arte, e não isso. 
      Recentemente a mãe de referida personagem (Marieta Severo) transou numa posição claramente anal dentro de uma mina de diamantes. Mais que insinuar, as cenas são fortemente apelativas. Não entendam a minha opinião como caretice ou moralismo. É uma questão de ver como desnecessária tais particularidades, as quais não acrescentam nada, e que, na maioria da vezes traduzem equívocos dos próprios autores e artistas.  Hipocrisia? Claro que não. Apenas constatação do exagero de alguns autores e artistas, com pecha de intelectuais, querendo que o povão engula tudo.  
       Há pouco tempo Glória Pires disse numa entrevista que se sentia incomodada em supor que seu filho assistisse suas cenas calientes numa novela que já se encerrou. Disse, com todas as letras, que não permitia que seu filho assistisse. Mas o filho do favelado assiste, salvam-se raras exceções, pois o pai está preso ou morto, e a mãe trabalhando até altas horas da noite. Vejam como o nó é mais em baixo. É uma questão de construção de tipos de educação e de cultura. O favelado sequer teve tempo (e dinheiro) para construir a mesma educação da família de Glória Pires. Ela sabe que as apelações que protagoniza são inadequadas para o seu filho, mas o pai presidiário nem teve tempo para pensar nisso.
   O personagem Juliano Cazarré, segue falando palavrões inadmissíveis na referida novela. Isso me fez supor que a tradição da maioria dos filmes brasileiros - de usar a todo instante pornografia e palavrões - está sendo trazida para as novelas das nove. Já pensou quando essas novelas forem reprisadas no "Vale a pena ver de novo"?
Creio que a arte arte verdadeira - quando aborda sexo, ou xingamento em horário de novela - deve ficar para o campo da insinuação, da imaginação de quem vê... Autores geniais não são óbvios. No caso de cenas de sexo e de palavrões em horário de novela, valorizam mais a inteligência, as reticências, as suposições que a futilidade. Uma pessoa inteligente não deve fazer de seu ouvido, penico.  Quando se vai às vias de fato entra-se no campo da apelação, do exagero. Reconheço que não podemos achar tudo normal, assim estaríamos banalizando. 
Mas, retornando ao caso do museu de Porto Alegre, precisamos olhar a nudez no passado e entender a nudez atual. Há séculos a nudez natural, sem pornografia e apelação é mostrada também de forma pública, mas parece que hoje, pela primeira vez na história da humanidade, o homem, a mulher e as crianças tiraram a roupa.
A expulsão de Adão e Eva do Paraíso - Masaccio
No caudal de incontáveis opiniões, li e ouvi muita acusação contra a ARTE, como se ela fosse sinônimo  de coisas negativas e nocivas - e isso me preocupou, pois, no Brasil, os assuntos explodem na mídia sempre com enfoque equivocado. Há pessoas colocando em risco de extinção um tipo de macaco, culpando-o de ser transmissor do vírus da Zica. Na realidade esses animais são tão vítimas quanto os homens. É uma questão de desinformação.  Essas deturpações devem ser objetos de preocupação de todos os brasileiros, pois, num país onde querem extinguir totalmente o ensino da arte, da filosofia, da sociologia e da educação física - justamente disciplinas que levam o homem a pensar, criar e se mover - o essencial da vida - fomenta-se cada vez mais a ignorância.

Só mesmo um grande equívoco pode explicar essa depreciação à arte. Justamente ela que é o instrumento mais antigo que se tem para ajudar a contar a história da humanidade. O que saberíamos sobre a história da humanidade sem os desenhos deixados nas cavernas há milênios?
Venus - escultura datada antes de Cristo
Nascemos nus; os índios brasileiros andavam nus. Há lugares em várias partes do mundo, cujas esculturas que adornam templos e monumentos estão cheias de pessoas nuas, inclusive antes de Cristo. A história e a arte primitiva estão fartas de registros pintados e esculpidos com situações de nudez.
A banhista a arrumar o cabelo - Cezane
A Capela Sistina, no Vaticano, traz as famosas e belas pinturas michelangeolescas de anjos nus. Os derredores da Igreja de São Pedro é circundado por fontes de água com crianças e pessoas adultas nuas. Roma e Grécia são referências em esculturas em tamanho real de mulheres, homens e crianças nus. Os livros de História Geral que usamos nas escolas e universidades trazem a reprodução de  várias obras que retratam o nudismo. Nunca vi alguém escandalizado com essas imagens.
A flagelação de Cristo - Belmiro de Almeida
Os livros de ciências trazem desenhos do corpo humano e dos aparelhos reprodutores masculino e feminino sem qualquer censura (até porque não é necessária). As enciclopédias reproduzem a anatomia humana nos mínimos detalhes, mostrando nudez frontal do homem e da mulher, as transformações do corpo, o nascimento dos pelos pubianos e o crescimento dos seios e do pênis.
Nu - Lucian Freud
Algumas praias brasileiras permitem o nudismo e, conforme pesquisei, não existe promiscuidade entre os frequentadores (e vai ali quem aprecia esse estilo de vida). As pessoas se veem como nós nos vemos com roupas. A ideia de certo ou errado, ou pecado, ou crime, é uma coisa construída por pessoas, por instituições.
Vulcano e Maia
Como escrevi anteriormente, o episódio do Museu causou um furor contra a arte e os artistas. Só mesmo um grande equívoco pode explicar essa depreciação à arte. Justamente ela que é instrumento de liberdade, criatividade e criticidade.
Jean Auguste Dominique Ingres, A Grande Odalisca ...
O que seria da biologia se, muito antes do surgimento da máquina fotográfica, os desenhistas e pintores não tivessem registrado – com qualidade superior à fotografia – os desenhos internos e externos das flores, dos frutos, das sementes, das folhas, das árvores, dos troncos, das paisagens, dos pássaros, enfim tudo era mostrado dentro das universidades através da arte de extraordinários artistas. 

Esse mesmo raciocínio se aplica à antropologia, aos costumes, ao folclore, às vestimentas, à alimentação, enfim foram os artistas que registraram o que encontraram nos primórdios da humanidade. Se não existisse a arte nada saberíamos sobre muitos instrumentos que fazem parte da nossa história.
George Seurat
Muitas pessoas têm pavor à nudez. Dia desses circularam na internet comentários sobre uma possível lei que proibia que mães amamentassem publicamente. O trauma de algumas pessoas está na imagem do seio diante do público. Ou seja, a imagem mais linda da humanidade é enxergada por muitos como imagem  pecaminosa e erotizante... sei lá o que se passa na cabeça de quem vê o nu como ruim. Tenho quase certeza de que essa "lei" é coisa de fake, pois não é possível que algum político equivocado pense dessa forma. Lá no México existe, de fato, essa lei, mas não estamos lá. Somos Brasil.

Conheco a história de uma mulher que descobriu um câncer em estado de metástase. Apurados os fatos, descobriu-se que o marido dela a impediu durante toda a sua vida de fazer exames preventivos. Não queria que ela ficasse exposta diante de médicos e enfermeiros.

Alguns homens – principalmente – morrem por medo do exame de próstata. Uns, não admitem ficar nus diante de médicos e suas equipes, outros, tem medo do toque.
Muitas pessoas dão show em hospitais quando são orientadas a vestir as famosas batas, quando em cirurgias, as quais deixam as nádegas expostas e tudo mais...
Vênus consola o Amor
É uma questão que vai além do pudor, pois a pessoa está diante de médicos, cuja função principal é cuidar da saúde e não se entreter com pênis, bundas, seios ou vaginas. Eles já estão encalombados de ver as “partes” humanas. São profissionais. Mas há um pavor. Mais que pudor, é a ideia equivocada – cheia de tabus e preconceitos – sobre a nudez. Ao longo dos séculos alguns países construíram a ideia de nudez atrelada à sexo, pornografia, erotismo, pecado, perversão, indecência.

Muitas pessoas – homens e mulheres – ficam nus diante de desenhistas e pintores durante aulas de Desenho de Observação. É parte da compreensão de anatomia para se chegar à perfeição do desenho do nu. Nunca vi uma pessoa excitada ou com comportamento vulgar, nem os modelos, nem os desenhistas e pintores. É uma profissão de ambas as partes. Como seriam os desenhos da anatomia humana e animal se não existissem os desenhistas e pintores?
Davi - Michelangelo
Não defendo a banalidade, nem que as pessoas andem nuas nas ruas, mas nudez é algo comum. O problema está na mente das pessoas, numa educação equivocada, na qual incutiram a ideia de que a nudez está atrelada à pornografia, erotismo, banalidade e pecado. 

Observe que muitas pinturas aqui postadas trazem pessoas de diversas idades, nuas num mesmo espaço, mas sem conotação de promiscuidade.
Sobre o episódio do Museu que falei no início, os espaços públicos devem informar a faixa etária permitida para os eventos, conforme a lei que passou a vigorar após a extinção da Ditadura Militar no Brasil. Se um casal permite que seu filho ou sua filha – fora de faixa – assistam performances artísticas, peças teatrais ou apreciem exposições de telas ou esculturas que tenham nudismo, entende-se que esses pais educaram os filhos a enxergar a  com a nudez com mesma naturalidade como vemos alguém com roupa. Creio que o que não devemos concordar é que crianças frequentem ambientes de prostituição ou espaços que promovam a pornografia, a pedofilia, o alcoolismo, o uso de drogas, violência e coisas afins. Mas isso já é outra coisa.

É certo que o Estatuto da Criança e do Adolescente não permite a entrada de crianças em espaços como o Museu que deu-se o episódio do artista nu. Então as instituições promotoras devem ter nesses espaços um representante dos órgãos competentes - tipo Conselho Tutelar - que forneça documentação que deve ser assinada pelos pais. Mas, com certeza, um pai e uma mãe jamais permitiriam a entrada de um filho em tais espaços se, em casa, não tivessem educado os filhos sobre o que estariam vendo.

Nota-se que, em nome da liberdade expressão, muitas pessoas - e até mesmo artistas- preferem atacar imagens de líderes religiosos, objetos sacros etc. Tenho impressão que a intenção real é mais escandalizar e polemizar que promover a arte. Por incrível que pareça, a Igreja Católica, que normalmente é muito retratada nesses conformes, parece não se incomodar muito. Pelo menos não é comum vê-la se posicionando sobre o assunto. Alguém já viu a imagem de Alá seminu, ou de Alá bebê, nu? Claro que não. Mas estamos cansados de ver pinturas antiquíssimas e atuais de Cristo seminu na cruz, e também o Menino Jesus nu. Se isso fosse feito à imagem de Alá com certeza apareceria homem bomba ou terroristas fazendo chacina em algum lugar para se vingar.

Na realidade é tudo uma questão cultural e educacional. Para uns existem coisas sagradas, intocáveis, que jamais podem ser feridas, mudadas, deturpadas etc. Para outros o sagrado é algo muito diferente. Tudo pode ser sagrado, quase tudo, algumas coisas ou nada é sagrado.

Finalizando, somente a educação plena pode construir a imagem aproximada do que é certo ou errado sobre a nudez. Enquanto isso não ocorre, continuaremos nos prendendo aos equívocos que a envolvem, e esquecendo que a maioria dos políticos do Brasil nos querem assim, burros... eles estão adorando essa história, pois a gente esquece deles. A crise que estamos vivendo foi promovida por eles, os quais – com raras exceções – saqueiam os cofres públicos diariamente.
Que deixemos de pensar só em sexo e pensemos como pô-los na cadeia.











 



























Maja - Goya