ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO COMIGO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. O pelo formulário no próprio blog. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. O título NISIAFLORESTAPORLUISCARLOSFREIRE foi escolhido pelo fato de ao autor estudar a vida e a obra de Nísia Floresta desde 1992 e usar esse equipamento para escrever sobre a referida personagem. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto trechos com menção da fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

domingo, 12 de outubro de 2025

NÍSIA FLORESTA: A PRIMEIRA MULHER FILÓSOFA DO BRASIL...



NA PASSAGEM DOS 215 ANOS DO NASCIMENTO DE NÍSIA FLORESTA BRASILEIRA AUGUSTA - COMEMORADO HOJE -, O MEU TRIBUTO...

Há muitos anos penso em escrever essa “tese”, defendendo, sem receio algum, que Nísia Floresta é uma filósofa. Esse estudo estava faltando. É um ensaio inédito que ora presenteio o leitor na data em que bendizemos os 215 anos do nascimento de Nísia, neste 12 de outubro. Juntando o que anotei de sua obra e de  história no curso de 33 anos – para que não se perdesse como já perdi tantos escritos, acostumado a escrever a mão –, construí essas páginas por um sentimento de urgência e de justiça histórica. E esse meu sentimento de justiça é o mesmo de quando documentei, ao longo de muito tempo, a história, a cultura popular e tudo mais que pude colher principalmente dos idosos nisiaflorestenses, esses sábios.

Chamar Nísia Floresta de pensadora, e não de filósofa, é o mesmo que elogiar um general por “ter jeito para comandar”, o que acaba sendo um modo cortês de negar-lhe o posto que lhe cabe. É a delicadeza sutil do rebaixamento. Há uma sensibilidade quase burocrática nessa omissão: quando a mulher pensa, ela “reflete”; quando o homem pensa, ele “filosofa”. Assim, a diferença não está na produção intelectual, mas no rótulo com que se aplainam hierarquias. Ou, talvez, por ser brasileira e ter estampado isso até no seu pseudônimo, Nísia não aparece como filósofa. Ora, como seria possível, para muitos, que uma filósofa tenha a coragem de ser… brasileira?

O eurocentrismo colonialista que até hoje permeia o campo das ciências e centra o debate epistemológico define como pecado o fato de se pertencer ao Sul Global. Como se ser brasileira, por exemplo, fosse, antes de tudo, um pecado. É curioso. Portanto, seria preciso chamar Nísia Floresta somente de “pensadora” para manter o conforto da aparência liberal sem precisar mover o mundo real. É admitir a inteligência feminina, claro, mas desde que ela não ouse ocupar a cadeira dos filósofos. É assim que funciona o liberalismo, mas, ante omnia, é assim que funciona a pressão do pensamento colonial e a farsa da identidade.

Sempre houve um silêncio aquietado nos ares de Nísia Floresta. Essa quietude ao ocaso e ao acaso não é feita de ausências, mas de presenças acumuladas. É um silêncio encoberto pela poeira do tempo, adocicado pelo cheiro dos velhos engenhos que ainda sobejam na localidade, uns em ruínas, outros, semi-intactos. Andar por essa terra que – pasmem – ainda guarda ruínas de uma casa de pedra de 1570, é como caminhar dentro de livro antigo de história, cujas páginas amarelecidas pelo tempo, permitem uma espécie de descoberta arqueológica em que nos deparamos com histórias sussurradas para quem se dispõe a escutá-las e auscutá-las.

Essa bela tela, pintada por homens e mulheres de remoto passado, concentra o microcosmo de um Brasil oitocentista, patriarcal e escravocrata, onde nasceu uma das inteligências mais brilhantes do nosso país e, paradoxalmente, renegada por alguns: Dionísia Gonçalves Pinto Lisboa, a nossa Nísia Floresta Brasileira Augusta, filha do português Dionísio Gonçalves Pinto Lisboa e de Dona Antônia Clara Freire do Revoredo.

Este ensaio – ou esta “tese” –, mais do que um mero exercício de exegese histórica ou de crítica literária em que ouso me enveredar, se propõe a realizar um estudo análogo àquela que eu mesmo me dedico em minhas pesquisas sobre esta região e o seu povo: como está escrito no cabeçalho do meu blog, um trabalho de cunho "etnográfico, etnológico e filológico", uma proposta de resgate e preservação da memória, atividade que faço há mais de 30 anos.

Com o mesmo desvelo em que me debruço sobre as lendas, os "causos" e a linguagem regional – popular – do povo norte-rio-grandense, dedico-me, doravante, a espanar a grossa poeira que encobriu e sufocou muito dessa pintura, escondendo um detalhe inédito e que agora, qual um arqueólogo adentrando câmara piramidal esquecida há 4.000 anos, revelo e dou o nome de “A Filósofa Nísia Floresta Brasileira Augusta”. Isso mesmo! Todos os bons nomes foram dados a ela: indianista, escritora, feminista, republicana, educadora, abolicionista e outros, mas omitiram a filósofa pioneira do nosso país.

Não se trata de buscar apenas reiterar o que já foi ofertado no panteão dos estudos acadêmicos: que Nísia foi uma educadora pioneira, uma protofeminista corajosa, uma escritora de raro talento, mas, com certeza, uma filósofa. Para quem a leu e estudou profundamente a sua obra, supostamente visualizou essa condição na nossa Nísia, mas nunca leu algum estudo específico que reunisse informações substanciais a ponto de passarmos a vê-la como filósofa.

Este estudo se dispõe a um ofício mais audaz e, talvez, mais necessário: defender a tese, tantas vezes negligenciada, de que Nísia Floresta foi, em sua época e a seu modo, uma filósofa. Uma pensadora que, mais do que reagir ao seu mundo, o interrogou em seus fundamentos, investigou a natureza da justiça, a finalidade da educação e a essência da condição humana.

Nunca algum pesquisador, com a devida vênia aos estudiosos que me precederam – até porque seus objetivos eram outros e tão nobres quanto – defendeu com o rigor necessário que Nísia Floresta foi uma filósofas em seu tempo. Ela nunca foi citada como pessoa que filosofou com a mesma propriedade dos mais respeitáveis filósofos. Intitularam-na, embora que respeitosamente e merecidamente no gabinete das “mulheres à frente de seu tempo”, uma espécie de curiosidade histórica, uma anomalia a ser admirada, mas não uma voz a ser integrada ao cânone do pensamento brasileiro.

Desse modo incorro à tarefa de defender que Nísia Floresta era, sim, uma filósofa, mas para reconhecê-la como tal é necessário desnudar os olhos dos preconceitos epistemológicos que exigem da filosofia uma forma inflexível, um sistema fechado, e aprender a ler o pensamento que pulsa nas entrelinhas de seus conselhos, de seus manifestos e de sua prosa profundamente enraizada na alma potiguar. É um convite para nos aprofundarmos não apenas em seus escritos, mas no próprio ato de pensar que eles revelam, um ato de coragem, de resistência e de profunda reflexão.

Para mergulharmos na análise sobre a dimensão filosófica de Nísia Floresta, é fundamental que reconstruamos o cenário onde as suas ideias foram estampadas. Ela nasceu em 1810, portanto, o século XIX era uma construção social de alicerces rígidos, edificada sobre o terreno da monocultura, do latifúndio e da mão de obra escravizada. Na ponta dessa estrutura reinava o patriarca, o dono dos latifúndios, dos engenhos, e sua autoridade não podia ser questionada.

A própria esposa legítima desse patriarca tinha o seu universo desenhado por esse sistema. Elas funcionavam no automático, sem questionamentos, entendendo, desde criança, que nasceram para casar, ter muitos filhos e cuidar muito bem dos mesmos - inclusive na devoção religiosa - além de governar a casa e ser prendada. Como bem registrou o adagiário popular “A mulher só saia de casa para casar, batizar e enterrar.” A expressão que reflete o papel restrito da mulher no ambiente doméstico e a sua exclusão da vida pública até pouco tempo.

O espaço público, o ambiente das ideias, da política e das ciências era exclusividade masculina. Esses mundos lhe eram fechados por um consenso social forte e quase inquestionável. Nesse cenário, o simples ato de uma mulher se sentar num birô para escrever sobre seus direitos, justiça, política e outros temas já se constitui num gesto filosófico radical.

Em sua essência, a filosofia brota do ato de estranhar comportamentos que nos circundam, do ato de se espantar, de interrogar, de se negar a concordar como o mundo onde estamos inseridos. Portanto, nos perguntamos: E o que fez Nísia senão interrogar as verdades mais pétreas de sua época? Sua própria atitude de inaugurar-se como escritora, em 1832, com apenas 22 anos de idade, com a obra Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, não apenas distribuiu ao povo panfletos permeados de reivindicações, mas praticou a filosofia política em sua plenitude. Ela coloca na parede a ordem social que se pauta na exclusão das mulheres. Nísia questionou a própria natureza do conceito de “direito”, perguntando: a quem ele se aplica? Qual a justificativa para que a biologia seja usada como destino e justificativa para oprimir?

O que é a própria gênese deste livro senão um ato filosófico? Quando Nísia coloca Mary Wolltonecraft Godwin diante dos olhos do leitor brasileiro - deixando muitos perplexos e outros super felizes (pois havia outras pessoas que queriam ver mudanças) -, ela nutria a sua obra com a autoridade das ideias em voga na Inglaterra, e tão presentes no Brasil, ao mesmo tempo em que homenageava uma mulher extremamente ousada. O gesto nisiano, pois, é uma proclamação filosófica. Nísia está dizendo que o pensamento humano é como a mais límpida das águas: não obedece cercas. Quando as águas vêm, trazidas pelos invernos fortes, extrapolam qualquer limite e podem ser ressignificadas, parodiadas, relidas, a bem de estar alagando realidades diferentes e prontas para hidratar qualquer solo, principalmente num país submergido na aridez machista que inferiorizava a mulher.   

Enquanto no Brasil jogavam todos os holofotes sobre o Positismo de Augusto Comte, uma doutrina que em grande parte justificava a ordem vigente, Nísia Floresta, nos confins do Brasil, sem reservas ousava fazer o socrático questionamento: “Isso é justo?”.  Quais mulheres daquele tempo, consumidas por uma vida reclusa, teriam capacidade e ousadia para gritar: “Alto lá! Queremos os nossos direitos”. E o que é isso senão uma profunda reflexão filosófica?                      

O clamor nisiano, longe de ser meramente um grito de “chega”, ou uma lamúria, era uma bandeira hasteada em altíssimo mastro. Seu flamejo era um instrumento que dissecava a realidade, farfalhando uma nova forma de existir e estar pertencida ao mundo. A sua filosofia não nasceu nos ambientes suntuosos da Europa, mas nas terras áridas, hostis, estiadas, porém resistentes, chamada de Nordeste brasileiro. Não foi à toa que Euclides da cunha, muito tempo depois diria em sua clássica obra “O sertanejo, antes de tudo é um forte”. Por todas essas razões, a filosofia nisiana carregou a marca da urgência, da necessidade e da luta. É uma filosofia encarnada, que não se dissocia da vida vivida.

Se o formato de sua filosofia pautou-se na insurgência, a substância do seu pensamento ergueu-se sobre pilares que se comunicavam entre si, revelando coerência e profundidades notáveis: uma filosofia da educação, uma ética da virtude e uma filosofia política que se amplia da justiça de gênero para a justiça racial e social.

Quando Nísia joga luz sobre esses pilares, para serem vistos com clareza pela sociedade, ela não os dissocia. Pelo contrário, deixa explícito que eles sustentam um grande edifício, ou seja, são partes inseparáveis e fundamentais de um grande projeto intelectual. Por essa razão a defesa de que Nísia Floresta é uma filósofa deve ser vista com os rigores necessários. E é essa tese que me comprometo a defender a partir deste texto.

Quando analisamos a obra Opúsculo Humanitário (1853), constatamos que o seu conteúdo vai muito além da discussão meramente pedagógica sobre metodologias de ensino. É muito claro que Nísia propõe uma autêntica filosofia da educação. Essa obra é extraordinária é uma meditação profunda. Ela defendia que o ato de educar transcendia instruir e despejar um calhamaço de conhecimentos mesmo que úteis. O processo de educar seres humanos – homem ou mulher – está associado à formação do caráter, o cultivo da alma, guiando-os à sua realização plena como ser moral. Nessa bela obra ela destrinçou um cenário histórico da situação das mulheres desde a mais remota antiguidade, como premissas para alegar que a evolução de um país está associada ao lugar que as mulheres ocupam nesse país.

Para ela, a educação entre homens e mulheres deveria ser igualitária, e nessa defesa ela não postulava uma reparação social, Nísia argumentava - filosoficamente - que a capacidade racional e a virtude não perpassavam por gênero, e via como uma verdadeira mutilação da humanidade o ato de normalizarem a reclusão da mulher, privando o Brasil de almas capazes de pensar a civilidade e a justiça.

Na verdade, essa proposta está intrinsecamente ligada a uma vigorosa ética da virtude que passeia toda a sua obra, em especial no livro Conselhos à minha filha (1842), escrito para presentear o aniversário da filha Lívia Augusta de Faria Rocha em seus 12 anos. Essa obra não é meramente um manual de conduta ou mais um produto literário moralizante, típico da época. A obra revela um manifesto pela autonomia intelectual e moral.

Nísia Floresta não está delegando regras de comportamento social para meninas, mas refletindo sobre o que é, verdadeiramente, uma vida agradável, feliz e interessante (eudaimonia). Ela entendia a modéstia, a prudência, a fortaleza e a caridade como partes indissociáveis da alma, bens que fortaleciam sobremaneira a mulher, permitindo-lhe lidar com autonomia diante da sociedade machista e patriarcal. Ao invés de parecer um ato de submissão, talvez pretendesse um “disfarce” ou uma “armadura” para, aos poucos, conquistar espaços melhores. Ela deixa claro para Lívia que o estudo, longe de ser um passatempo, deve ser um ato tão comum como se alimentar e que dessa forma permitiria o caminho para a independência e a integridade.

Enfim, a sua filosofia política não se encerra na questão feminina. Nísia amplia largamente suas ideias para discutir diversas injustiças comuns àquele tempo, por exemplo: a degradação dos povos indígenas e a escravidão. Esses temas podem ser constatados em outras obras, inclusive no próprio Opúsculo Humanitário. Nele encontramos uma Nísia Floresta que, a considerar o contexto da época e seu amadurecimento gradual, ela tornou-se a primeira mulher abolicionista do Brasil. Suas críticas são muito duras. Embora alguns vejam o ponto a seguir de maneira muito equivocada, Nísia classificava como um “péssimo exemplo” o costume das senhoras brancas transferirem o dever sagrado da maternidade às escravas que eram amas de leite. Ela alegava que o costume corrompia a moral das crianças desde bebês. Nesse caso, ela não está classificado as mulheres escravizadas como imorais (como já li num conceituado jornal natalense), mas contra as mulheres que estavam transferindo o nobre dever maternal para es escravizadas, dever que ela tanto primava. Para Nísia, essa transferência corrompia as crianças.

O seu abolicionismo é sensivelmente percebido quando analisamos obras como “A Cabana do Pai Tomás”, de Harriet Beecher (1852), usado por ela para espelhar os horrores da escravidão brasileira. Ainda n’A lágrima de um Caeté, poema de 702 versos, escrito em 1849, ela é pioneira em jogar holofotes sobre os povos indígenas, e em mostrar indígenas reais, diferente daqueles que desfilavam nos diários de viagens europeus, totalmente alegorizados. Na literatura encontrávamos um indígena que era praticamente um herói ou uma pessoa civilizada nos moldes dos brancos. E Nísia desnuda um indígena que assume sua derrota causada pelo homem branco. O poema conta a saga de um Caeté, testemunha viva da truculência da colonização, e trata também da Revolução Praieira em que ela, ousadamente, elogia seus heróis, a exemplo de Nunes Machado. A obra é uma profunda meditação filosófica sobre a identidade nacional, a memória e a violência fundadora do Brasil. Totalmente contrária à visão idealizada do indianismo romântico. O indígena Caeté de Nísia Floresta é um protagonista que mesmo se sentindo derrotado pela estupidez do invasor, indaga o próprio conceito de “herói”, expondo o seu drama. Nesses moldes, sua filosofia é revelada com clareza: uma busca incansável por uma nação pautada de justiça, cujo projeto de mudança só seria realidade se homens e mulheres, pretos ou indígenas, fossem virtuosa e civilizadamente educados.


Observa-se que há uma relutância da academia para reconhecer Nísia Floresta como filósofa. Certamente isso ocorre devido ao estilo de sua escrita. É quase um padrão entender a filosofia como um tratado sistemático, regido por uma narrativa rigorosa e técnica em que o leitor muitas vezes precisará ser evoluído para “decifrá-la”. Algo parecido com Hegel ou Kant. Certamente por não se encontrar nos textos nisianos um sistema dedutivo, uma construção de conceitos abstratos, deduz-se –apressadamente – pela inexistência do pensamento filosófico. Mas isso é um grande erro.

O filosofar em Nísia Floresta se deu através dos gêneros literários em voga àquela época: o manifesto, o poema, a crônica, o tratado, o conselho moral. O seu estilo de escrita não era o do sistema, mas da reflexão partilhada, da persuasão, da exortação. O que ela escrevia não estava restrito a um grupo restrito de iniciados, mas a qualquer pessoa, desde mães, jovens, governantes, intelectuais. Nesse aspecto reconhecemos a filosofia nisiana como profundamente socrática. Ela propunha o diálogo, a transformação do interlocutor. O pensamento dela não se exibia como um imponente palácio marcado por adornos em ouro, bronze e mármore, mas tal qual uma casa de taipa tão comum ao seu torrão natal – Papary –, funcional, segura, que se integra ao regionalismo local, portanto ao seu propósito.

Nesse sentido, o seu proceder é parecido, em finalidade, ao meu próprio trabalho de resgate linguístico que intitulei "A Linguagem no Rio Grande do Norte". Não o fiz por mero diletantismo, mas por acreditar, como Nísia acreditava, que "não existe palavra errada, jeito de escrever ou falar errado quando utilizamos a linguagem do coração. Nela está a emoção e, portanto, a raiz de um povo". Ela se serviu da linguagem da moral, da poesia, da emoção para expressar verdades filosóficas. Com a mesma determinação que defendo a legitimidade de palavras como “caningado”, “peia”, “empolado” e outras – contra a legitimidade da homogeneização da mídia –, numa época que a imprensa atendia aos interesses do sistema, Nísia defendeu a legitimidade do pensamento feminino e do grito indígena se utilizando das ferramentas literárias que dominava. Ela percorreu o universo da linguagem para obter as ferramentas que lhe seriam úteis.

Leitora voraz, Nísia teve condições suficientes para usar uma linguagem austera, pautada de técnicas, comum aos filósofos de sua época, mas tinha consciência de que, sem desmerecer até mesmo os intelectuais brasileiros de seu tempo, escrevia para todos, inclusive homens e mulheres alfabetizados rudimentarmente. Convém lembrar que o analfabetismo no Brasil daquele tempo era em número assustador. – principalmente as mulheres – seu maior interesse. Portanto precisava atingir o seu público. 

Obviamente que é necessário uma hermenêutica distinta para mergulhar na obra de Nísia. Precisamos reconhecer que a linguagem limpa e acessível usada por ela não significava superficialidade, mas um método filosófico. Ela sabia que para ser compreendida em seu intento de mudar o sistema, deveria tocar os corações, portanto se servia da prosa elegante e combativa, instrumentos perfeitos para divagar suas ideias. Nísia deixa evidente que o ato de filosofar não se restringe a um padrão. Inclusive é possível encontrar mais filosofia em sua obra Conselhos à minha filha do que nos inúmeros tomos de metafísica inúteis. A obra de Nísia Floresta – como um todo – é a comprovação de que o pensamento pode florescer na literatura, na crítica social, na polêmica, no apelo direto à consciência do leitor.

Isso exposto, seria ingênuo pensarmos que Nísia Floresta foi uma pensadora isolada, uma árvore exótica que despontou por acaso no isolado Sítio Floresta, em Papary, Rio Grande do Norte, de onde ela saiu aos treze anos de idade e nunca mais voltou. Ela deixaria o seu berço que nada tinha a oferecer e empreenderia uma trajetória marcada por períodos distintos no Pernambuco, no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro e em vários países da Europa, onde passou a maior parte da vida.

Essa experiência revela uma intelectual cosmopolita inteirada de todos os debates de seu tempo, seja no Brasil, seja na Europa. Diferente de ter sido meramente uma leitora de ideias estrangeiras, ela dialogou com diversos intelectuais europeus, sendo uma presença viva nos círculos mais efervescentes daquela época. Como sabemos, é muito conhecido e comentado a sua amizade com o ilustre filósofo francês Augusto Comte, o pai do Positivismo. Ela o viu pela primeira vez quando frequentou suas conferências em Paris, mas a amizade em si floresceu no ano seguinte, inclusive ambos se faziam presentes em reuniões de intelectuais na casa de ambos. O período de 1856 a 1857 foi marcado por cartas trocadas entre eles, cujas originais estão dispostas na Casa Auguste Comte em Paris, tendo sido traduzidas e publicadas pela professora Constância Lima Duarte (UFRN/UFMG).

Julgando pela primeira impressão, é um verdadeiro paradoxo essa “sintonia” entre Nísia e Comte. O que aproximaria tanto a autora de Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, a intelectual que leu a polêmica Mary Wollstonecraft, com um filósofo cujas ideias, em inúmeros pontos, reforçava o papel feminino como “anjo do lar”?  Nos parece muito contraditório, mas não é. Essa relação traduz a maturidade do pensamento de Nísia. Sabemos que ela não era dogmática. Parece que ela viu no Positivismo de Comte sutilezas que ecoavam com o seu próprio olhar, a exemplo da valorização da mulher como educadora moral da família e da sociedade e a busca por uma organização social baseada na ciência e na ordem. Inclusive Comte teceu elogios ao Opúsculo Humanitário.

Na verdade, Nísia se debruçou sobre o sistema comtiano com criticidade. Agiu como aluna interessada, discutindo com o mestre, dialogando fluentemente na língua dele, descortinando o seu Brasil, inclusive impressionando-o. E no caudal desses diálogos e estudos ela aproveitou tudo o que poderia lhe ajudar a enriquecer o seu projeto de reforma social. Mas, diferente do que alguns dizem, ela não foi positivista nem adotou essa doutrina como parte do seu projeto, tampouco trouxe o Positivismo para o Brasil, conforme já li e ouvi dizer. Ela foi uma pensadora que se engajou com consciência critica diante de todas as correntes filosóficas mais fortes naquele tempo, mantendo a sua própria digital no que se refere à originalidade de sua perspectiva.

Toda a sua vida na Europa pautou-se em cuidadosas observações e reflexões filosóficas, a exemplo de seus livros Itinerário de uma viagem à Alemanha (1857), Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia (1864) e Le Brésil (1871). Nessas obras – que são relatos de viagem – passíveis de serem julgadas como um registro de coisas pitorescas – como o próprio Machado de Assis o fez quando se deparou com um dos seus livros e o julgou pela capa –, Nísia não perdeu tempo com o trivial. Ela olhava os panoramas com análise rigorosa, seja sistema político, educacional ou os costumes dos países que visitava, refletindo e criticando sobre a realidade do Brasil. Como uma filósofa, ela percorreu os grandes centros europeus para aguçar seu olhar sobre a sua própria cultura e sobre a condição humana universal. E nessa trajetória ela conheceu Alexandre Dumas (o pai), Alexandre Herculano, Victor Hugo, George Sand, Castilho, Azeglio, Manzoni, Duvernoy, inserindo-se de igual para igual no absoluto direito na república mundial das letras e das ideias.

Ao chegarmos até aqui, visualizamos Nísia Floresta como a pensadora viajante que dialogava com o mundo e com o seu próprio eu. Viajante que observava a realidade da Europa para entender o Brasil e o que tornava a Europa adiantada em relação ao Brasil, e as razões desse avanço, sobretudo questionava o que sabiam os intelectuais europeus, o que os faziam alçar superior intelectualidade, já que eram escassos os filósofos até mesmo na corte brasileira. Tivemos Matias Aires Ramos da Silva de Eça (1705-1763), nosso primeiro filósofo, autor de “Reflexões sobre a Vaidade dos Homens”, uma das primeiras produções de filosofia moral escritas no Brasil, embora ele tenha passado a maior parte de sua vida na Europa, e o Frei Francisco de Mont’Alverne (1784-1858), outro pioneiro.

Até aqui, reunimos informações substanciais para enquadrar a nossa Nísia no rol dos filósofos brasileiros, mas é fundamental irmos a fundo na análise para muito adiante do que ela discorreu e esquadrinhar a própria mecânica de seu pensamento. Quando lançamos o olhar atento sobre isso, constatamos que Nísia não tinha meramente uma sucessão de ideias audaciosas, mas uma incrível capacidade de síntese, uma destreza maestra de operar com elementos contraditórios para produzir uma nova compreensão.

O pensamento nisiano se maquinava de uma maneira que poderíamos batizar – permitam-me a licença poética e até mesmo o risco de anacronismo já que incorro involuntariamente a esses adornos (e o leitor me entende) –, de dialética. Digo isso porque constatamos em Nísia praticamente uma Aufhebung hegeliana, um movimento intelectual que simultaneamente nega, preserva e eleva as ideias com as quais dialoga. Mas olhemos inicialmente, a relação que ela tinha com o pensamento universal europeu.

Ela nunca foi uma receptora passiva, já observamos isso a partir do momento em que ela se depara com as ideias de Mary Wollstonecraft, e sobre essa intelectual inglesa, em 1995, a historiadora brasileira Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke causou impacto no meio intelectual ao afirmar que, ao contrário do que se acreditava, o livro de Nísia Floresta era, na verdade, uma tradução literal e integral de um tratado ainda mais radical e anterior ao de Wollstonecraft, pois data de 1739, ou seja, Woman Not Inferior to Man, escrito por alguém que, para publicar as suas ideias, recorreu a um pseudônimo, que foi Sophia, a Person of Quality, cuja identidade segue ignorada. Pallares-Burke considerou como uma “travessura literária” da tradutora potiguar, inclusive chegou a interpretar a tal “travessura” como “uma brilhante astúcia utilizada para romper com as regras do mundo intelectual, a fim de lutar por uma causa nobre, para cuja defesa muitos meios se justificavam”. Esse fato é digno de ser aprofundado e interpretado – colocando ambas as obras – no centro do debate

Mas, óbvio que Nísia leu Wolltonecraft, e ao encontrar-se com Wolltonecraft – ou com “Sophia” – ela passa a engrenar um movimento dialético complexo. Ela faz uma ampla leitura (ou releitura). Ela refuta o emprego direto e descontextualizado do feminismo inglês a uma realidade – a brasileira –, com os seus próprios infortúnios, como o patriacarlismo de raízes ibéricas, o catolicismo arraigado, a escravidão, mas ao mesmo tempo mantém o núcleo universal da argumentação por meio da defesa da racionalidade feminina e do direito à educação. Tudo isso alça Nísia Floresta a uma elevação, uma síntese: um ideário feminista que também é universal em sua gênese e profundamente particular, brasileiro, em sua aplicação e em suas matizes. Inclusive, exatamente neste aspecto, a pesquisadora Constância Lima Duarte visualizou como uma “superação dialética”.

Exatamente este movimento se expressa em sua forma de lidar com a tradição. Na verdade é necessário pontuar, que Nísia não é uma iconoclasta interessada em demolir totalmente os costumes. Pelo contrário – para surpresa de alguns – toda a sua escrita é pautada por uma moralidade cristã e valorização das virtudes tradicionais. Essa é a tese dela. A antítese é a sua defesa radical da emancipação intelectual e do envolvimento das mulheres na esfera pública, valendo ressaltar que isso consistia numa ideia profundamente ousada e transgressora para a época. Outra pensadora inexperiente talvez se perdesse nessa “contradição”, ou escolheria um desses polos. Nísia, prodigiosamente, opera a síntese. E longe de anular a moralidade, ela a sublima, alegando que a virtude e a moralidade reais só são alcançadas por meio da razão e da liberdade, jamais por submissão e ignorância. Nísia manteve intacto o vocabulário da tradição, mas o alçou a um novo patamar de significado, concebendo o ideal da “matrona esclarecida”, ou seja, uma figura que sintetiza a autonomia intelectual moderna com a moralidade tradicional.

A destreza de Nísia Floresta de pensar a "identidade na não-identidade", ou, precisamente, a ideia de que a identidade se constitui ou se manifesta através da diferença ou do não-ser, usando essa expressão hegeliana, joga luz nas diversas formas de opressão no Brasil. Ela não está interessada apenas na condição da mulher (o particular). A amplitude do seu pensamento abarca as mazelas contra os povos originários e os escravizados, atingindo uma compreensão mais universal da dialética da dominação. Na obra de Nísia Floresta constatamos que a transgressão e a religião, o Brasil e o mundo, o particular e o universal não são polos excludentes, mas expressões de um mesmo e complexo movimento de pensamento buscando incessantemente uma síntese mais elevada e mais justa. Essa força sintética e sua capacidade de ver unidade na contradição, eleva Nísia Floresta da condição de mera polemista à de uma autêntica e original filósofa, sem sombra de dúvida.

Finalizando, como escrevi no início, há muitos anos sou instigado a escrever essa “tese”, defendendo, sem receio algum, que Nísia Floresta é uma filósofa. Ao longo de 33 anos estudando a obra e a história dessa intelectual, anotando tópicos que para mim são essenciais, construí essas páginas por um sentimento de urgência e de justiça histórica. E esse meu sentimento de justiça é exatamente igual quando registro uma história colhida de uma pessoa idosa, ou uma expressão popular com risco de desaparecer se não for documentada.  

E quando faço uma viagem imaginária à silenciosa Papary de remotos tempos – que foi presenteada com o nome de sua filha mais ilustre –, reconheço que esse silêncio não significa esquecimento, mas de espera. O extraordinário legado de Nísia Floresta aguarda por leituras, estudos, pesquisas, divulgação, permitindo ser libertado do rótulo que a reduz a uma “precursora”. É importante o ato de vanguarda, de pioneirismo. Claro. Mas ser precursora implica que a importância da sua obra está meramente no que ela antecipou, e não no que ela foi, em sua própria plenitude. Costumamos enaltecer com orgulho o ato do pioneirismo, mas precisamos dissecá-la para entendê-la por dentro. Colocar Nísia Floresta no rol dos filósofos brasileiros do século XIX, além de a admitirmos como a primeira mulher filósofa do Brasil, não é um ato de anacronismo ou de bairrismo intelectual. Na verdade é um gesto de rigor histórico e de ampliação do próprio conceito de filosofia. Nísia é a nossa filósofa brasileira.

Defender essa ideia é admitir que o pensamento crítico, a investigação sobre os fundamentos da existência da sociedade, não prediz um padrão, mas que pode acontecer de diversas formas. É compreender que a resistência à opressão, quando defendida por intermédio da razão e da argumentação – seja num manifesto, num poema épico ou num livro de conselhos -, é uma das mais louváveis formas de filosofar.

Excluir Nísia Floresta da galeria de curiosidades das “grandes mulheres” e alçá-la ao panteão dos grandes pensadores brasileiros, muito mais que um ato de reparação, muito mais que fazer justiça, é estar sendo justo com nós brasileiros. É fortalecer nossa tradição intelectual, reconhecendo em Nísia Floresta uma voz poderosa e corajosa que, há quase dois séculos, elaborava as questões que até hoje assombram: sua luta por um país mais justo, a necessidade de uma educação libertadora e o desafio de edificar uma identidade nacional que não aconteça sob as mazelas da exclusão e do silenciamento da mulher, dos pretos, dos indígenas e de qualquer pessoa que habite o Brasil. E que as águas da lagoa Papary, onde Nísia banhava-se acompanhada por Pepé, lavem o silenciamento feito à nossa filósofa brasileira.

Que a brisa sopre dos coqueirais, leve essa mensagem: que a partir de agora, todos possam entender e dizer que no Sítio Floresta nasceu a primeira filósofa do Brasil. Uma mulher cuja voz, uma vez auscultada com o devido cuidado, segue nos educando sobre o Brasil e a e sobre a nossa própria condição humana. Seu pensamento não é uma ruína parcialmente ignorada – como a casa de pedra de Piranji –, mas uma semente que, mesmo tendo passado tanto tempo e ainda estar atualizada em muitos aspectos, embora que tardiamente, ainda pode germinar e despontar as mais viçosas vergônteas. 

Obs. O presente ensaio é apenas, digamos, um capítulo, diante de diversas considerações que necessitam serem feitas. Muitos livros ainda devem ser lidos, muito deve ser comparado, estudado, analisado; muitos pensadores precisam ser consumidos, mas este estudo pontua cirurgicamente as considerações que extraem da obra de Nísia Floresta o gabarito necessário para que a classifiquemos como a "primeira filósofa do Brasil do séc. XIX.

Luís Carlos Freire - Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte - Estudioso da obra de Nísia Floresta, bisneto da bisneta de Francisca Clara Freire do Revoredo (irmã de Antônia Clara Freire do Revoredo, mãe de Nísia Floresta).

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OBS. Segue, abaixo, link de um matéria sobre a visita de Mário de Andrade a Papary (hoje Nísia Floresta)

FEITO DIA DE DOMINGO: Acta Noturna – Mário de Andrade em Nísia Floresta – de Luís Carlos Freire – Potiguar Notícias



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