ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Ladrilho hidráulico registrado na Ribeira, em Natal, RN...

 


Sou apaixonado por ladrilho hidráulico. Esses são todos de antigos estabelecimentos e residências do bairro da Ribeira, em Natal, Rio Grande do Norte. Registrei-os em 2014. Quando criança, costumava imaginar dentro dos ladrilhos, descendo os seus degraus (só criança mesmo!).
 
Não sei se esses, fotografados por mim, ainda resistem, mas acredito que sim, pois estive ali recentemente e não vi demolições. Só maus tratos. Alguns estragados pelo peso das máquinas e ferragens, outros impecáveis. Eu não trocaria um piso desse material pelo melhor porcelanato que existe. Vejo-os como um material de grande importância artística, cultural, religiosa, documental e estética, e preservá-los é um dever. 
 
A arte de ladrilhar e a trajetória histórica deste material largamente empregado na construção civil desde o século 18 vigorou muito até a década de 60, quando apareceram outros materiais mais restáveis, embora mais frágeis. Foi o fenômeno dos azulejos e, depois, das cerâmicas, levando o ladrilho hidráulico ao desuso. Hoje, o porcelanato é sonho de consumo de muitos. Foi mais ou menos isso. Gosto é gosto, mas, com certeza, quem resistiu e ainda tem uma casa ou comércio com esse piso, preserve, pois é uma obra de arte. É história pura.
 

 
Normalmente somos habituados a ver ladrilhos hidráulicos com desenhos florais e geométricos - como esses aqui postados -, mas no passado era comum ver desenhos com brasões familiares, armas, selos, casas de nobreza, castas clericais, preces ou trechos bíblicos. Uns são mais simples, outros bastante delicados.
 
Diferente das cerâmicas, que se desgastam rapidamente, o ladrilho hidráulico nunca perde a sua estampa, nem as cores, pois é uma placa de concreto de alta resistência, tanto para pisos internos e externos, indicado para passeios públicos, praças, etc. Mas hoje quase não é visto, exceto nas residências, prédios públicos e igrejas que os preservaram. 
 
No Brasil, pelo que sei, o ladrilho hidráulico teve seu apogeu entre o fim do século XIX e meados do século XX. Foi apresentado como alternativa ao mármore ou como uma "cerâmica" que não necessitava de cozimento inicialmente.














 

 

sábado, 9 de dezembro de 2023

Visível invisibilidade em Socorro Trindade - Uma crônica de sua autoria seguida de reflexões minhas...

Socorro Trindade

 “NÍSIA FLORESTA, A INFÂNCIA DE UMA CIDADE” - SOCORRO TRINDADE"

(Crônica escrita por Socorro Trindade, publicada no jornal O Poti/Natal/RN, em 1991)

“É uma dádiva ter-se uma terra para nascer. É um privilégio ter-se nascido numa cidade cujo desígnio é a realização de uma história de lutas em prol da libertação do homem, e, para isso, tem-se utilizado dos próprios filhos. É também uma felicidade ser-se filha dessa cidade que cujo o maior exemplo se chama mulher e cumpriu, até onde lhe foi possível, o ideal de lutas de sua terra, inclusive o que implica na reabilitação do próprio sexo feminino. É uma sorte ser-se filha dessa cidade, e não estrangeira ou mera espectadora. Porque é a terra natal, uma vez solicitada, que vai nos permitir ir às nossas raízes para resgatar o passado. É também terra natal que nos integra no contexto da realidade estadual, nacional, universal. Ser universal quando se pensa e se sente regional é um ato de liberdade em favor da inteligência que privilegia uma visão de mundo moderna, atual, progressista. Pois é a consciência da realidade que fere o mito. Reivindicar um presente e um futuro sem mais os erros e omissões do passado, é tarefa não só do aprendizado que a cultura nos legou, mas sobretudo da consciência de nossa própria realidade. Sem passado não saberíamos atingir o futuro. Sem consciência não saberíamos reivindicá-lo. O futuro deve ensejar a realização de nossos anseios e ideais. Essa é uma aspiração corajosa e requer que sejamos, no mínimo, fiéis aos nossos princípios e firmes nos nossos propósitos. O futuro é a própria indefinição no tempo. E se nosso passado não tem cor, ou seja, não possui memória, o presente se torna a revolução da noite contra a noite, e o futuro, um risco n’água. Quando deveria ser o ponto de confluência de todas as nossas experiências e conquistas, e mais a prática de uma reflexão sábia sobre o ato de viver e construir a vida ao redor. Não o será, certamente. Não, na medida de nossos sonhos e ideais. Nisso, o passado é único.

A reprodução da crônica de Socorro, que guardei-a para um dia escrever sobre.

Não sei o que a vida me reserva para que eu a queira tão apaixonadamente. Sou, portanto, grata a alguém por ter-me escolhido para viver a vida. Sou grata a vida por ter tido uma terra para nascer.

Sou ainda grata por ter nascido numa cidade, a exemplo de Nísia Floresta, mulher, escritora, poetisa, jornalista, educadora, política, indianista, abolicionista, republicana e feminista - aliás, a precursora do feminismo brasileiro e talvez sulamericano, pioneira na extinção da escravidão e implantação da república. Bateu-se ainda pela liberdade de cultos, federação das províncias e outras questões, inclusive de ordem internacional. O nome da cidade é uma homenagem a essa filha ilustre. Nascer nessa cidade é ser filha de alguém.

Nísia Floresta, que eu a recordo assim:

Essa terra com cheiro de terra molhada de chuva de ontem. Essa terra de meus pais, meus avós, meus bisavós, meus ancestrais.

Essa terra e sua infância. Essa cidade: Papary. Essa terra imperial, mas sem império e sem imperador. Essa terra de Papary, chefe indígena e chefe da terra. Essa terra que no início era indígena. Essa terra de índios sem tanga e índias nuas. Essa terra de índios que dançam e cantam e dançam. Essa terra de feitiços e feiticeiros.


Essa terra cercada de praias, lagoas, lagos e rios. Essa terra de lendas sobre sereias e mães d’água. Essa terra de chão de arisco e paul. Essa terra de árvores frondosas, projetando sobre o chão claros e escuros de pequenas e grandes sombras. Essa terra de inúmeras árvores frutíferas, as mangueiras, os cajueiros, as laranjeiras, os coqueirais. Essas árvores, essa árvore, o baobá. Essa terra dos tabuleiros que ofereciam aos catadores a colheita da mangaba e do guajiru. Essa terra de sítios agrícolas, onde se ciltivam e ainda se cultivavam e ainda se cultivam o milho, o feijão, a mandioca, a cana-de-açúcar, a batata-doce, o inhame, o fruta-pão… Essa terra de muitos cantos de pássaros, o bem-te-vi,  o xexéu, o sanhassu, o galo de campina, o sabiá. Essa terra de várias flores silvestres formando pequenos e grandes jardins no vale. Essa terra do índio que caça e pesca. Essa terra de um sol brilhante durante o dia, e o luar prateado cobrindo a noite do vale.

Essa terra de tabas indígenas e taperas feitas de folhas e troncos de coqueiros ou taipa. Essa terra de casas de tijolo ou pedra com caliça, no mais autêntico estilo colonial. Essa terra virgem e selvagem.


Essa terra que desde 1607 começou a ser descoberta pelo colonizador europeu, que despertou para a abundância de peixes ali existentes e os roçados de milho, plantados pelos índios ao redor das lagoas do Bonfim. Essa Água, Papeba e Paraguaçu, esta última logo depois denominada de Papary, e a maior da capitania do Rio Grande do Norte. Essa terra de índios armados de arco e flecha. Essa terra anda sem pátria e sem Deus. O único Deus tinha rosto de índio, mas a terra estava pronta para lutar.


Essa terra, esse mundo, esse novo mundo. Essa terra que só se soube descoberta anos mais tarde. Essa terra que o velho mundo a transformou em mundo novo.

 

Essa terra descoberta antes por espanhóis. Essa terra de Hojeda, Pinzón e de Leppe. Essa terra descoberta depois por Cabral. Essa terra de El Rey de Portugal. Essa terra que um dia o estrangeiro sonhou. Portugueses, espanhóis, holandeses, franceses, italianos, ingleses… Essa terra de colonos e colonizadores. Todos eles que, juntamente com os nativos de Papary, ajudaram a construir o tempo e o espaço do seu templo católico. Essa terra da lição jesuítica.

Essa terra que o sonho cristão ajudou a fundar. Essa terra da monumental construção de pedra e caliça, erigida, em pleno centro do lugarejo, onde o vale faz uma pequena elevação montanhosa e onde fora encontrada pelos nativos, numa gruta de pedra, a imagem santa que daria o nome à Paróquia do Ó. Essa terra, cujos fiéis, já em 1727, vão à casa de Deus agradecer-lhe o tato da pacata comunidade de pescadores, como o era a Papary da época, possuir uma belíssima igreja, trabalhada em ouro e ostentando um rico e importante acervo de arte sacra. Essa terra de Nossa Senhora. Essa terra cujo Deus tem agora o rosto de mulher.

Essa terra do coronel e do dono de escravos. Essa terra de escravo.Essa terra de engenhos e olarias. Essa terra agrícola e pecuária. Essa terra de bovino, ovino, caprino, suíno. Essa terra do agricultor e do vaqueiro. Essa terra das revoluções de 1817 a 1824.

Na orelha de um dos livros de Socorro Trindade, vemos comentários do escritor novelista Aguinaldo Silva e da Folha de São Paulo.
 

Essa terra que foi à luta, que matou e morreu. Essa terra que iria ser berço da “mais notável mulher de letras do país”. Essa terra prometida. Essa terra que prometia libertar. Essa terra imperial.


Essa terra republicana. Essa terra escrava e afinal livre. Vila Imperial de Papary, Vila de Papary. Finalmente, Nísia Floresta. Essa terra e esse povo que as letras libertaram.


Essa primeira cidade que eu não a conhecia mais* imagino.

A Nísia Floresta da minha infância não tem mais história nem nome. É apenas mais uma cidade pobre e arrasada. Os índios oram dizimados. As lagoas não oferecem mais à comunidade tantos peixes. As suas águas ou se deterioraram ou os peixes reprodutores se tornaram estéreis. A paisagem não era mais a mesma. Muitos sítios foram abandonados por seus proprietários por não estarem em condições de financiar o plantio da cultura agrícola ou a  criação de animais. A escritora não tinha mais nome, idade, sexo, cor, religião, cultura; nem nacionalidade. O fato de Nísia Floresta se insurgir contra o pré-estabelecido, atacando questões de ordem política e econômica, além de combater velhos tabus e preconceitos, fez com que uma sociedade machista e reacionária silenciasse o seu nome, fato que tem sido responsável pelo total desconhecimento que as novas gerações têm dessa mulher com M. Os traços coloniais da cidade foram substituídos pelos novos traços do ideário modernista, especialmente na arquitetura. A cidade de Nísia Floresta tornou-se de repente keath. A educação. A educação limitou-se a uma instrução acadêmica, voltada apenas para o currículo escolar, que, na época, incluía Português, Gramática, História, Geografia, Ciências e Matemática. Cultura devia ser palavrão. A utopia humanista desvanece-se, dando lugar à espera sem esperança.

A única casa em estilo colonial existente em Nísia Floresta (Fotografia feita em 1996 por minha irmã Regina Maria Freire).
 

A utopia marxista, idem. Os novos cristãos continuavam fiéis à sua religiosidade e a praticavam (ainda praticam) na Casa de Deus, onde ainda encontravam (encontram) respostas para a promessa de uma outra vida (que não é esta que levam na terra) após a morte.

A política, mais que a civilização e o progresso, tem interferido negativamente na cidade. O capitalismo político do próprio filho da terra tem sido mais devastador do que o capitalismo do estrangeiro, mesmo quando este era ainda o colonizador Porque a atinge não só no que essa terra é e representa culturalmente para o seu povo, mas também no que esse povo pensa e sente através de sucessivas gerações. À medida que essa nova sociedade capitalista avança, o povo se sente ameaçado e a cidade começa a morrer. Porque quando o homem deixa de viver e passa apenas a sobreviver, a cidade pára.

A história de Nísia Floresta é a história da cultura do seu povo.

Contudo, a Nísia Floresta de hoje é menos significativa para aqueles que defendem a cultura histórica da cidade do que a Papary de 1810, quando visitada por Henry Koster, que, juntamente com Dionísio Gonçalves Pinto Lisboa, pai da futura escritora, e em cuja casa estava hospedado, foi conhecer o lugarejo e, ali, diante do porto da lagoa de Papary esperando, ao lado do povo do lugar, a chegada dos pescadores, comparou o nosso porto ao de Bellingsgate, o mercado de peixes de Londres, mas ressaltando que era em miniatura.

Nada mais nos resta? Restou o camponês, que é hoje o homem mais sábio da cidade. Ele  não sabe ler bem escrever, mais aprendeu com seus ancestrais que utilizando os escassos recursos da própria observação, volta a cabeça para as alturas, olha atentamente para o céu e as nuvens, à procura dos verdadeiros traços da paisagem, e então sabe se vai ou não chover, para iniciar a sua plantação. E somente ele sabe que se não chover no dia-a-dia de São José, não haverá inverno, e não havendo inverno, não adiantará plantar, porque não terá colheita.

É de um homem simples como esse, mas cheio de sabedoria popular que Socorro  nos fala. Esse registro eu fiz em 2004, no Alto, bairro de Nísia Floresta.

 

NOTA: O que levantamos para essa matéria em termos de dados e fatos históricos sobre a cidade de Nísia Floresta e a escritora que hoje lhe emprega o nome, o fizemos não como historiadora, não o somos, mas como jornalista e escritora, filha da terra. Também o fizemos de forma empírica e não científica. Contudo, quando os fatos se atém à história, procuramos enfocá-los inspirados nas ideias e doutrinas da Kulturgeschichte, movimento renovador alemão, que instaura a historiografia moderna, ao abandonar a forma tradicional do historiador Ranke (que fazia a história gravitar em torno da noção de Estado: sucesso político administrativo de governantes), voltando-se a partir daí para uma focalização da cultura que permitirá ao novo historiador, a exemplo de Freytag, reconstruir a história de um povo, onde o povo deixa a posição de fundo decorativo para ser o elemento principal do quadro; ou como fez Burckhardt, que não focaliza propriamente o povo, mas cujo ponto de referência é a vida do espírito do povo - a arte, a religião, a erudição etc.

O estilo clássico de Socorro em repetir palavras ou frases ao longo de seus escritos. Aqui ela me mostra, em 2017, uma crônica poética publicada em uma coletânea nacional em que ela participou.

O historiador brasileiro João Ribeiro, nessa diretriz, ao introduzir, no Brasil, o espírito germânico que orienta a renovação metodológica da historiografia, estava apenas dando continuidade a tradição do novo movimento iniciado por Tobias Barreto e Sílvio Romero, pais da escola entre nós.” (O Poti, 1991).


* mas
…………………………………

Breve reflexão sobre a crônica “Nísia Floresta - Infância de uma cidade”, escrita em 1991, no periódico O Poti, por Socorro Trindade  - (Por Luís Carlos Freire)

Escrita há 32 anos, a crônica fala por si, mas alguns detalhes se sobressaem. O ufanismo de Socorro ao retratar o vale que mais parece o paraíso, em contradição ao estado atual (1991), envolto em decadência, o orgulho de ter nascido na terra que pariu a visionária Nísia Floresta, figura internacionalmente conhecida. “É uma dádiva ter-se uma terra para nascer. É um privilégio ter-se nascido numa cidade cujo desígnio é a realização de uma história de lutas em prol da libertação do homem, e, para isso, tem-se utilizado dos próprios filhos. É também uma felicidade ser-se filha dessa cidade que cujo o maior exemplo se chama mulher e cumpriu, até onde lhe foi possível, o ideal de lutas de sua terra, inclusive o que implica na reabilitação do próprio sexo feminino”. 

Socorro Trindade em fotografia de 1981

Socorro Trindade nasceu em Nísia Floresta/RN, em 1950. Estudou em Natal, Fortaleza e finalmente no Rio de Janeiro, onde se formou em Jornalismo na UFRJ. Inaugurou-se como escritora com a obra “Os Olhos do Lixo”, contos, em 1972. Em seguida vieram “Cada Cabeça Uma Sentença”, contos, Ed. Ática,1978; “Feminino Feminino”, ed. Universitária/UFRN,1981 ensaio sobre Nísia Floresta - Papary, RN, 1810 - Rouen-França, 1885; “Uma Arma Para Maria”, textos poéticos, Edições Ponto 8, 1982; “Eu não tenho palavras”, Codecri, 1990, Livro em branco, utilizado pela autora para fazer uma intersecção literária no processo político brasileiro por ocasião da campanha das Diretas Já!; “O Dia Público e Outros Dias”, contos, 1990, Edições Ponto Oito; História Particular de Um Poeta, 1994, Edições Ponto 8. Sobre esse último livro, a própria Socorro diz “... O que este livro pretende apresentar, afinal, é o acesso a uma coerência que já não é a nossa, a do homem, nem a de Deus, nem a do mundo. Neste sentido, diríamos tratar-se de um Livro apocalíptico, no qual se realiza também o terceiro tempo na série do tempo…”. E mais “Luz Del Fuego”, pesquisa para a obra publicada por Agnaldo Silva e levada para o cinema por David Neves; “Revolução e Progresso Cultural”, tradução e apresentação da Entrevista do jornalista Cubano Luiz Báez com o Ministro da Cultura de Cuba, Sr. Armando Hart, sobre o projeto artístico e cultural da Revolução cubana; “Os Anos de Resistência”, Anais do Seminário realizado na Faculdade Cândido Mendes do Rio de Janeiro, pela RioArte. Socorro Trindade integrou ainda várias antologias: “Mulheres da Vida”, “Chame o Ladrão”,  “Respeitável Público”, poemas; “Cariocas de Todos os Contos”; “Os Potiguares”, entre outras. Tem trabalhos publicados em jornais e revistas do país e do exterior.

Socorro Trindade participou ativamente do Movimento de Resistência Cultural nos anos 60-70. Trabalhou na Tribuna da Imprensa/RJ, onde editou o seu Suplemento Literário, 1973-75, na época, o jornal brasileiro mais censurado pela Censura Política do Governo Militar Mèdici e foi Diretora do Departamento de Literatura do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro até 1978, quando um incêndio destruiu o prédio e grande parte do acervo dessa instituição cultural. Na década de 80, atuou em projetos culturais  na Funarte e no Minc, na qualidade de Assessora Cultural do Conselho Federal de Cultura.

Em 2017 visitei Socorro Trindade em sua residência em Nísia Floresta. Foi a última vez que a vi. Aqui ela delicadamente lê para mim uma crônica poética de sua autoria


Após ter residido vários anos no Rio de Janeiro, Socorro Trindade voltou à sua terra natal, inclusive era professora do Departamento de Comunicação Social da UFRN. Na década de 80 inaugurou a “Edições Ponto 8”, editora e livraria dedicadas especialmente ao autor brasileiro, mas o projeto não se sustentou por muito tempo. No início da década de 90 Socorro estava escrevendo o livro “A História da História da Noite” e a novela “As Flores de Fallus”, proposto para publicá-los na citada década (o que não aconteceu) e nada se sabe sobre os originais dessa obra. Logo depois  ela se afastou da UFRN para se dedicar à pesquisa “Cultura Marginal Pós-68”, junto ao Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos-CIEC, na UFRJ, sob orientação da professora Heloísa Buarque de Holanda. Depois retornou ao Natal/RN, candidatou-se a deputada estadual pelo PSB-Partido Socialista Brasileiro, apoiada pela também professora universitária, Wilma Maia, mas não se elegeu.

Apresentando Socorro Trindade ao meu filho Fídias, 12 anos, em 2012, num evento na frente da igreja matriz de Nossa Senhora do Ó.

Observa-se que Socorro Trindade é aquela intelectual preocupada com as questões ligadas ao seu tempo. Ela trabalha o experimental na forma e na linguagem, para ressaltar o conteúdo social e político do tema, marcas da obra jornalística e literária da autora potiguar.

O livro “História Particular de Um Poeta” 1994, traz uma curiosidade. Teve a capa ilustrada por Lapi, poeta visual, carioca, um dos fundadores do PT no Rio de Janeiro, único brasileiro premiado com o “One World Art” (1992). Ele e Socorro foram amigos inseparáveis, “amigos de muitas lutas, amigos da resistência cultural, amigos de parcerias texto-visual, amigos amigos, amigos de ontem, de hoje e de sempre”, nas palavras dela. Por fim, Socorro pediu exoneração da UFRN na década de 90. Fixou residência em Natal e em seguida no município de Nísia Floresta, berço do seu nascimento onde se mantém até hoje.

Socorro Trindade na década de 70.

No Rio de Janeiro, para onde foi no início da década de 70, assim que concluiu os seus estudos em Fortaleza, Ceará, exerceu  cargos de grande responsabilidade em algumas instituições públicas e privadas, como no jornal “O Pasquim”, semanário alternativo brasileiro, de característica paradoxal, editado entre junho de 1969 e novembro de 1991, reconhecido pelo diálogo entre o cenário da contracultura da década de 1960 e por seu papel de oposição ao regime militar.  Trabalhou no Museu de Arte Moderna, como diretora e, depois, jornalista, responsável pelas relações públicas, trabalhou na Funarte e no Minc, como assessora Cultural do Conselho Federal de Cultura. Conheceu e conviveu com figuras nacionalmente conhecidas como Leila Miccolis, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Houaiss, Inácio de Loyola Brandão, Agnaldo Silva, Fausto Cunha, Jorge de Sá, Nei Leandro de Castro e outros. Seu primeiro livro foi prefaciado por Luís da Câmara Cascudo.

Na crônica de O Poti, Socorro escreveu “Não sei o que a vida me reserva para que eu a queira tão apaixonadamente. Sou, portanto, grata a alguém por ter-me escolhido para viver a vida. Sou grata a vida por ter tido uma terra para nascer…”. De fato, ela nunca saberia o que a vida lhe reservaria. A vida lhe reservaria o desprezo de grande parte dos seus próprios conterrâneos nisiaflorestenses e o total alheamento às suas obras e à sua história. Ela que, embora tendo todos os atributos de notável intelectual, em especial, escritora, podendo ter sido muito maior no Rio de Janeiro -, renunciou a tudo para voar de volta ao seu berço - onde, ao invés de ser redescoberta (ou descoberta) - foi ignorada. Socorro adormeceu no ninho que ouviu o seu primeiro choro. Nesse ninho ela escolheu esconder-se dentro de suas próprias asas, uma hibernação sem data para o verão. Nesse ninho ela dorme para o mundo, alheia a quase tudo. Uma vida injustamente morta. Infelizmente, hoje Socorro é uma viva-morta. Ela escolheu essa clausura por livre e espontânea vontade, para estranhamento de alguns que não compreendem que a solidão absoluta também pode ser opção.

Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885)

Quando escreveu essa crônica, em 1991, Socorro supôs ter sido Nísia Floresta “...a precursora do feminismo brasileiro e talvez sulamericano…”. Até então se sabia que esse pioneirismo dizia respeito aos limites do Brasil, mas não havia comprovação de que Nísia Floresta fora pioneira do feminismo em nível de América Latina, mas hoje está comprovado essa condição.

Um dado muito curioso abordado por ela, e quase desconhecido pelos nisiaflorestenses, que sei ainda pouco e não me vejo com material suficiente para construir um texto, é quando ela diz “... Essa terra de Papary, chefe indígena e chefe da terra..”. Ela se refere a um homem indígena que se chamava “Papary”. Há outros escritos - de outros autores -, que fazem referência a esse chefe indígena. Mas o assunto é desconhecido pelos nisiaflorestenses, os quais ligam o vocábulo “Papary” unicamente aos topônimos indígenas referentes à peça artesanal denominada “pari”, armadilha de pesca , ou “paspary”, salto de peixe, numa versão coletada por Nestor Lima (Cascudo, 1968). Antigos documentos já citavam em 1607 a “lagoa de Uparari e Iparari, inclusive cita que seu nome original era “Para-Wassu”, conforme o registro do padre Manoel de Moraes feito em 1640, depois “Paraguaçu”  (rio grande) no mapa de Marcgrave, em 1643. Havia a lagoa Paraguaçu e o Rio Papary, entidades distintas. Com isso ficamos sabendo que a lagoa Papary adquiriu esse nome muito tempo depois, e que Papary era originalmente o nome de um rio. Precisamos desvendar o período provável dessa mudança do nome da lagoa. Ressalvo que estar tratando desse personagem indígena não modifica em nada as sinonímias pertinentes aos topônimos. É só mais um dado novo e que precisa ser elucidado em outro momento. Tenho algumas informações sobre o assunto, quando me aprofundar mais, publicarei.

Casarão do Engenho Descanso - em estilo colonial -, na entrada do município de Nísia Floresta. Aqui, apareço ao lado da minha irmã Maria Sueli Freire Reigota Ferreira (Fotografia feita em 1996 por minha irmã Regina Maria Freire).


Pois bem, Socorro esquadrinha a realidade do seu município daquele tempo. Num dado parágrafo ela diz  “... Os traços coloniais da cidade foram substituídos pelos novos traços do ideário modernista, especialmente na arquitetura. A cidade de Nísia Floresta tornou-se de repente keath…” e, mais adiante: “... Essa terra de casas de tijolo ou pedra com caliça, no mais autêntico estilo colonial…” ela nos informa que predominava a arquitetura colonial no município de Nísia Floresta, o que deixa evidente que nesses termos sua arquitetura antiga estava preservada. Essa afirmação nos lembra uma gigantesca casa nesse estilo, verdadeiro cartão postal, situada exatamente na esquina de frente da casa onde Socorro Trindade reside atualmente. Infelizmente foi demolida. Hoje Nísia Floresta abriga apenas uma residência original nesse estilo. Datada de 1991, a crônica também parece informar que até essa altura muita coisa ainda estava preservada no município.

Quando ela escreve “... Essa terra que desde 1607 começou a ser descoberta pelo colonizador europeu, que despertou para a abundância de peixes ali existentes e os roçados de milho, plantados pelos índios ao redor das lagoas do Bonfim. Essa Água, Papeba e Paraguaçu, esta última logo depois denominada de Papary, e a maior da capitania do Rio Grande do Norte..”, se refere aos registros do Pe. Serafim Leite (S. J.)  jesuíta que deixou uma magnífica obra intitulada História da Companhia de Jesus no Brasil. Nesse ponto ela também nos ajuda a entender a reflexão que fiz acima, sobre o líder indígena “Papary”. Inclusive os indígenas se autodenominavam ou recebiam de seus pais nomes relacionados à natureza, fatos e fenômenos naturais.

Mais adiante Socorro, num gesto louvável, dignifica o indígena “.... Essa terra de índios armados de arco e flecha. Essa terra ainda sem pátria e sem Deus. O único Deus tinha rosto de índio…”. Ela coloca o indígena como o deus de Papary. Ele era a face de Deus num local a ser descoberto, que nem pátria o era.

A bela igreja matriz de Nossa Senhora do Ó,em Nísia Floresta, com suas características originais. Inelizmente o padre nterior ao atual descaracterizou o altar mor, destruindo ornamentos em baixo e alto relevos, folheados a ouro, e no local colocou um forro de madeira preta.

Ela também se refere a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó (1735-1755, conforme um manuscrito deixado por um dos sacerdotes que ali estiveram). “... Essa terra da monumental construção de pedra e caliça, erigida, em pleno centro do lugarejo, onde o vale faz uma pequena elevação montanhosa e onde fora encontrada pelos nativos, numa gruta de pedra, a imagem santa que daria o nome à Paróquia do Ó…”. Essa crônica traz três fotografias dessa igreja e, abaixo delas há a seguinte informação “A igreja de Nísia Floresta, uma das mais antigas do Estado, sofre ameaças de ter o seu teto no chão com vigas de madeira que já estão comprometidas”. Coincidentemente, em 1991 chega ao município de Nísia Floresta o diácono João Batista Chaves da Rocha que empreende o maior projeto de reforma já visto nesse templo, com a dádiva de se preocupar em não modificar um item, preservando todas as suas características originais, levando peças ou trazendo para o local os maiores restauradores pernambucanos. Foi a única vez que, durante uma reforma, esse templo teve respeitado as suas características originais, onde foram feitas diversas restaurações. A propósito, quando Socorro se candidatou a deputada estadual, teve apoio do padre João Batista.

Depois ela afirma “... Essa terra de Nossa Senhora. Essa terra cujo Deus tem agora o rosto de mulher…”, ou seja, a sua terra natal tem a face de um indígena - como disse acima -, e agora tem a face de uma mulher. Talvez isso seja o mesmo que dizer que a sua terra tem a face da religiosidade católica e, ao mesmo tempo, de um primitivismo em termos educacionais e culturais.

Em seguida ela tece críticas à situação em que se encontra a sua cidade  “... A Nísia Floresta da minha infância não tem mais história nem nome. É apenas mais uma cidade pobre e arrasada. Os índios oram dizimados. As lagoas não oferecem mais à comunidade tantos peixes. As suas águas ou se deterioraram ou os peixes reprodutores se tornaram estéreis. A paisagem não era mais a mesma…”. De fato, até meado de 80, todas as ruas do município eram de barro, a educação se limitava ao ensino médio, quase ninguém frequentava universidade, o município era parado no tempo, afinal o conheci exatamente em dezembro de 1991 e fiquei impressionado com suas carências. Justamente um local tão próximo à capital, Natal. E quando Socorro afirma “... os índios oram dizimados…” há uma semelhança com o que escreveu Nísia Floresta n’A Lágrima de Um Caeté, ao denunciar o índio sem identidade em pleno ano de 1847, nem selvagem nem civilizado. Mas certamente ela se referia aos nisiaflorestenses, que, mesmo com tantas limitações, não havia prejuízo para a fé que mantinham viva. Religião: bálsamo. Religião: ópio. A religiosidade talvez bastasse. Mesmo “dizimados”, ou seja, cheios de carências mínimas - como por exemplo, um ônibus que transportasse os jovens para a UFRN -, eles ainda oravam, talvez agradecendo pela desventura de não ter esperança. Aquela ideia de que “tudo é como Deus quer” e a conformação com o estado de miserabilidade como um desígnio de Deus.

Socorro deixa uma importante informação que se coaduna com um trabalho de História Oral que fiz a partir de 1992 em Nísia Floresta: “... Muitos sítios foram abandonados por seus proprietários por não estarem em condições de financiar o plantio da cultura agrícola ou a  criação de animais...”. Nas minhas pesquisas, há unanimidade nos habitantes idosos, ao afirmarem que até a década de 70 o município era um vale abençoado pela agricultura abundante, de cujos sítios e fazendas, inclusive, Vale do Capió, Pium e Hortigranjeira, saíam  semanalmente caminhões cheios de produtos da agricultura para a Ceasa, feiras de Natal e municípios vizinhos, fato que não se vê mais. Hoje a viagem é contrária. Os feirantes nisiafloresteneses, em especial, vão à Ceasa de Natal comprar hortifrutigranjeiros para montar feiras do município e vizinhas. Até os tempos atuais os nisiafloresteneses são inconformados com a estagnação da agricultura no município. Comparado ao passado, mesmo com maiores dificuldades e até precariedades, a agricultura era modelo para outros municípios. Subliminarmente Socorro pergunta o que houve com aquela agricultura tão farta e próspera?

Efígie de Nísia Floresta feita em 1851.

Ela também critica o desprezo que o seu município dá à sua filha mais ilustre: “... A escritora não tinha mais nome, idade, sexo, cor, religião, cultura; nem nacionalidade. O fato de Nísia Floresta se insurgir contra o pré-estabelecido, atacando questões de ordem política e econômica, além de combater velhos tabus e preconceitos, fez com que uma sociedade machista e reacionária silenciasse o seu nome, fato que tem sido responsável pelo total desconhecimento que as novas gerações têm dessa mulher com M...”. De fato, tendo chegado ao município em dezembro de 1991, entrevistei muitas pessoas de pontos diferentes, e com relação à intelectual Nísia Floresta, quase todas não sabiam nada, exceto dados óbvios, como por exemplo “era uma mulher importante”, “era uma escritora”, “era uma mulher muito culta”. Mas Socorro atribui esse anonimato ao machismo que, ao invés de enaltecer a figura de Nísia Floresta e sua obra, ignorou-a intencionalmente, pois enaltecê-la era enaltecer o conhecimento, a sabedoria, a modernidade. E quando uma autoridade enaltece a inteligência, inspira outras pessoas, portanto não seria bom enaltecer a inteligência. Perde-se espaço. Dá-se espaço para os “plebeus”. E quando a inteligência parte de uma mulher, pior. Feria o machismo. Lembremos que, tendo os portugueses descoberto o Brasil, e que muitos portugueses tinham sangue árabe, muito árabe veio para o Brasil dentro da mente do português. Talvez por isso os brasileiros descendentes desses portugueses-árabes-mouros fizessem tanta questão de conservar as mulheres em burcas invisíveis. Lembremos também que, quando Henry Koster esteve na Vila Imperial de Papary em 1810, tendo estado com a família de Nísia Floresta, estranhou a modernidade como foi tratado, pois dona Antonia Freire esteve presente o tempo todo, diferente do que viu em outras partes do Brasil, quando as mulheres permaneciam sempre atrás dos muxarabis.

Socorro critica a Educação “...A educação limitou-se a uma instrução acadêmica, voltada apenas para o currículo escolar, que, na época, incluía Português, Gramática, História, Geografia, Ciências e Matemática. Cultura devia ser palavrão. A utopia humanista desvanece-se, dando lugar à espera sem esperança…”, infelizmente ela não estava exagerando.

Depois ela critica a religião “... A utopia marxista, idem. Os novos cristãos continuavam fiéis à sua religiosidade e a praticavam (ainda praticam) na Casa de Deus, onde ainda encontravam (encontram) respostas para a promessa de uma outra vida (que não é esta que levam na terra) após a morte…”, de fato até hoje se vê a pregação da resignação, de dar o outro lado da face para ser esbofeteado, como se o local onde vivessem não pode ser o Paraíso (da boa escola, da universidade, da inteligência, da saúde etc), como se a Terra - ou Papary -, fosse o local de sofrer como requisito para conquistar o Paraíso que fica no céu. Só no céu. 

Alysgardênia, minha esposa, eu, Socorro Trindade e meu filho, Fídias. 2012

O comunismo, grosso modo, ou seja, no planejamento marxista, é a tentativa de se construir uma sociedade sem desigualdades, onde todos tenham o suficiente. A Islândia, por exemplo, que é uma república parlamentarista unitária, é assim. Por que outros países não podem sê-lo?

Karl Marx, ao construir a sua filosofia, inspirou-se no filósofo iluminista Rousseau. Para Rousseau, há uma explicação para que o homem se organize em sociedade e se relacione dessa forma. Essa explicação é a necessidade de relação mútua entre os indivíduos, visando progredir materialmente. Exatamente aí nasce a ordem moral,  requisito fundamental para se viver em sociedade. Mas para que os homens se relacionem entre si é necessário um contrato que delibere regras sobre esse relacionamento. Tal contrato deve conter as regras morais e que todos deveriam praticá-las. Isso é um exemplo de relações sociais fundada no direito original. Infelizmente isso só existiu em palavras, nunca na prática. Mas Karl Marx sempre ressaltou que em todas as sociedades já existentes, o contrato estabelecido entre os homens, nessa perspectiva de relacionamento, foi fundado de forma injusta. Mas por quê? Porque sempre existiu aqueles que levam vantagem sobre outros, pondo abaixo essa moral. São os exploradores, os oportunistas. E isso acontece em todos os espaços, inclusive na Papary de Socorro, na de ontem, de 1991 e na de hoje. Nesse ponto nasce as desigualdades sociais, na fundação de uma convenção social de direito ilegítimo.

Servindo-se dessa teoria de Rousseau, Karl Marx aproveitou para detonar o capitalismo, alegando se tratar de uma prática injusta, tendo em vista que no capitalismo a classe dominadora e exploradora é a burguesia, e a classe oprimida, o proletariado. Ele apontou a mais-valia, uma maneira de roubar parte do salário merecido pelo operário, em conformidade com o que ele fabrica na indústria, como a catapulta que dá origem à exploração capitalista.

Os donos dos meios de produção, donos das fábricas, ou seja, os burgueses, empregam o operário, este fabrica produtos que têm determinados valores. Em vez de ser remunerado com todo o dinheiro que vem da comercialização desses produtos, o operário, que o fez em sua totalidade, é remunerado com apenas parte, que chamamos de salário. A outra parte fica com o burguês, que nada fez, mas dessa forma lucra. Mediante a divisão do trabalho e do uso dos maquinários, o burguês ainda aumenta o seu lucro, no processo chamado de ‘aumento da mais-valia relativa’. Essa teoria está magistralmente discorrida na famosa obra O Capital, de Karl Marx.

Pois bem, diante dessa ordem social injusta, Karl Marx propôs o comunismo, que se trata de uma sociedade sem as típicas diferenças, sem desigualdades sociais. Onde todos se ajudam e todos tem o necessário. Grande parte das pessoas condenam o comunismo justamente por causa da igualdade que ele se propõe. A classe opressora - a burguesia - em todos os lugares sempre controlou a dinâmica do aparelho do estado: a educação e as forças armadas, instrumentos que lhe garantem o poder mediante a opressão e a alienação dos oprimidos. Desse modo, a sociedade comunista representaria o fim do Estado e o surgimento de uma nova era na História da humanidade.

Referindo-se ao município de Nísia Floresta, Socorro se serve dessas convenientes palavras: “... A política, mais que a civilização e o progresso, tem interferido negativamente na cidade. O capitalismo político do próprio filho da terra tem sido mais devastador do que o capitalismo do estrangeiro, mesmo quando este era ainda o colonizador porque a atinge não só no que essa terra é e representa culturalmente para o seu povo, mas também no que esse povo pensa e sente através de sucessivas gerações…” É simplesmente extrarordinária e corajosa essa reflexão de Socorro. Vejam como o capitalismo afeta o pensar, que é o maior bem do homem. Esse trecho é uma verdadeira citação, e deveria ser emoldurada num quadro e afixada dentro das escolas e instituições públicas de Nísia Floresta como termômetro aferindo  a evolução dos seus habitantes. Mas embora Socorro discorresse essas ideias num jornal de grande repercussão, ele não chegava a Nísia Floresta como devia. Não era lido. E, se lido em Nísia Floresta, por parte de uma minoria “burguesa”, era ignorado (talvez rissem). E se lido pelo povo (o que jamais aconteceu) não era compreendido. Socorro falava línguas estranhas, como durante muito tempo, sua conterrânea mais ilustre também falou. Imagine quão extra-terrestre fora Nísia Floresta ao reivindicar que a mulher pudesse governar o país. A crônica de Socorro é visionária diante do recorrente atraso do seu município.

Depois ela continua: “... À medida que essa nova sociedade capitalista avança, o povo se sente ameaçado e a cidade começa a morrer. Porque quando o homem deixa de viver e passa apenas a sobreviver, a cidade pára…”  Em outras palavras, Socorro vê os seus conterrâneos “mortos”, e um município parado no tempo. Todos impotentes diante do capitalismo. Mas, enquanto isso, a burguesia está ali, tecendo os seus tapetes vermelhos com galões de ouro - dividindo o bolo entre os seus. E ao povo, a “plebe”, dá-se circo. Mas circo sem pão.

É cirúrgico quando, sobre a Nísia Floresta daquele tempo - 1991 -  encerrando a sua crônica, ela diz “... Nada mais nos resta? Restou o camponês, que é hoje o homem mais sábio da cidade. Ele  não sabe ler bem escrever, mais aprendeu com seus ancestrais que utilizando os escassos recursos da própria observação, volta a cabeça para as alturas, olha atentamente para o céu e as nuvens, à procura dos verdadeiros traços da paisagem, e então sabe se vai ou não chover, para iniciar a sua plantação…” Ela diviniza o agricultor, (lembram que, lá atrás, ela havia divinizado o indígena?). Agora ela louva o homem do campo que, mesmo “analfabeto”, é o que mais sabe no município. Não é um deboche. Ela diviniza o saber popular oriundo das tradições, dos costumes, dos hábitos antigos. Ela diviniza o saber empírico. Merecidíssimo. Mas ao mesmo tempo isso é uma crítica nada sublimar. Se o “camponês é o homem mais sábio da cidade”, o que dizer sobre os homens da cidade? (os homens que deveriam ter uma cultura diferente) E o prefeito? E os professores? E os vereadores? E o padre? Intelectualmente falando, eles deveriam se destacar em termos cognitivos, não que estivessem no mesmo patamar da intelectual Nísia Floresta - tão genialmente -, mas que estivessem avançados e se preocupando com os avanços de toda ordem no município. Onde estariam as suas sabedorias intelectuais? Porém a cidade, “morta”, traduz os níveis de tais autoridades (ainda bem que eles não entenderam!).

Encerrada a crônica, ela apresenta uma “NOTA”, deixando claro que a “matéria” que escreveu foi construída sob o olhar de uma jornalista (Socorro era jornalista). Explica também que, mesmo tendo escrito à luz do empírico, e não do científico, e acaba dando um show de conhecimento quando “os fatos se atém à história”, que foi o caso, procurou tratá-los baseados nas ideias e doutrinas da “Kulturgeschichte, movimento renovador alemão, que instaura a historiografia moderna, ao abandonar a forma tradicional do historiador Ranke (que fazia a história gravitar em torno da noção de Estado: sucesso político administrativo de governantes)”. E o que é “a forma tradicional do historiador Ranke”, se não o olhar capitalista. Hoje, 2023, muito da história está sendo reescrita exatamente nessa perspectiva da Kulturgeschichte, justamente por terem escrito uma história que louvou e bendizeu o burguês e a burguesia, tornando os opressores - o povão -, invisíveis. Assim desapareceu Zumbi, por exemplo. E a própria Nísia Floresta, além de Luís Gama, Carolina de Jesus, Chico Rei, Felipe Camarão, Clara Camarão… E quanto idiota - hoje -, culpando o governo atual de ser o cabeça dessa visão. A coisa é antiga. O povo só quer que seja contada a história sem máscaras nem omissão.

Nesse mesmo parágrafo, Socorro diz “... voltando-se a partir daí para uma focalização da cultura que permitirá ao novo historiador, a exemplo de Freytag, reconstruir a história de um povo, onde o povo deixa a posição de fundo decorativo para ser o elemento principal do quadro; ou como fez Burckhardt, que não focaliza propriamente o povo, mas cujo ponto de referência é a vida do espírito do povo - a arte, a religião, a erudição etc”. Nesse parágrafo, numa espécie de vanguarda,  Socorro parece prever esse fenômeno tão em voga ultimamente, em que em todo o planeta o povo destrói monumentos de vilôes e exige que os verdadeiros merecedores recebam os louros que lhes foram negados.

Providencial a crônica. Vai muito além do título. Ela dá aulas. Creio que Socorro, ainda na meia idade, quis usufruir dos ares da sua cidade justamente para poder fazer algo por ela e por seu povo, mas parece que ela não queria estar subordinada ao poder municipal local (e não deveria). Algo aconteceu, pois ela também “morreu” daquela morte que nos conta na crônica. Aqui, ela parece traduzir a si própria em suas próprias palavras “... À medida que essa nova sociedade capitalista avança, o povo se sente ameaçado e a cidade começa a morrer. Porque quando o homem deixa de viver e passa apenas a sobreviver, a cidade pára…” LUÍS CARLOS FREIRE - 8.12.2023.

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Bibliografia:
TRINDADE, Socorro. Nísia Floresta A Infância de Uma Cidade. O Poti. Natal, 1991. Caderno Especial de Domingo.
___, Cada Cabeça Uma Sentença: contos, São Paulo, Ática: 1978.
___, Feminino Feminino. Natal, 1981, 76 p. Ed. Universitária.
___, Uma Arma Para Maria. Ed. Ponto 8, 1982, 1ª ed. Natal/Rn
___, O Dia Público e Outros Dias: contos; Natal. ed. Ponto 8, 1990. 148 p.
___, História Particular de Um Poeta, ilustrações de Lapi; apresentação de Francisco Ivan. Natal: Edições Ponto 8, 1994.
CASCUDO, Luís da Câmara. Nomes da Terra. Coleção Cultura. Primeira Edição: 1968; Fundação José Augusto, Natal/RN.
Jean-Jacques Rousseau – A Origem da Desigualdade
Karl Marx – O Capital.
Friedrich Engels – Do Socialismo Utópico Ao Socialismo Científico.
Marx e Engels – O Manifesto Comunista.