ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Nordestinidade em decadência.


NORDESTINIDADE EM DECADÊNCIA 
Há 27 sete anos, quando coloquei pela primeira vez os meus pés no Rio Grande do Norte, encontrei praticamente “outro país”. Da mesma forma seria o potiguar fazendo viagem contrária, pois somos países dentro de um país. Como não poderia ser diferente, as diferenças culturais variam na linguagem, alimentação, música, danças, formas de relações humanas, tradições, hábitos etc etc etc. Essa é a maior riqueza do Brasil: suas peculiaridades. 
Câmara Cascudo escreveu em 1934 que haveria um dia que o homem do interior estaria falando igualzinho ao homem da capital, atribuindo esse processo ao fenômeno do rádio. As ondas sonoras acessíveis a todo o estado, levavam o modo de falar do natalense a todos os rincões norte-rio-grandenses. Desse modo espalhava-se as gírias, os vícios de linguagem, os neologismos, e as sintaxes novas, enfim a “modernidade” natalense chegava ao homem do campo, o qual, muitas vezes nem sabia onde ficava a sua capital, mas agia como se ali morasse. 
Analisando essa reflexão, emprego o mesmo raciocínio na questão de uma espécie de decadência da nordestinidade em terras potiguares. Poderia ser apenas influência externa sem grandes impactos, mas observo que de fato é decadência mesmo, pois já é possível enxergar muitos grupos modificados culturalmente. Às vezes observo pessoas que nasceram e cresceram aqui no estado e tenho dúvidas se elas de fato são mesmo potiguares. Não entendam que defendo o engessamento da cultura, ou que, saudosista, quero o passado de volta. Não é isso, afinal nem tive esse passado, pois não nasci aqui. Minha observação diz respeito a minuciosa observação sobre mudanças impactantes na cultura norte-rio-grandense, fruto da influência do eixo Sul/Sudeste e de outros países. É fenômeno impressionante. 
Essa desnordestinização está presente na música, na literatura, na linguagem falada, na cultura popular, na dança e numa sucessão de tradições e hábito conforme veremos. Quando cheguei ao Rio Grande do Norte, em 1991, recordo-me que trouxe muitas fitas cassetes com músicas predominantemente da minha região. Eventualmente eu pegava o aparelho de som e deixava a música rolar, principalmente aos sábados. Lembro-me que vários vizinhos me perguntavam que músicas eram aquelas. Uns detonavam. Outros achavam interessantes. Não entendiam como alguém podia ouvir Tonico e Tinoco, Almir Sater, Tetê Espíndola, Hermano Irmãos, Chico Rey e Paraná, Dino Rocha, Zé Correia, Tião Carreiro e Pardinho, Elinho, Irmãs Galvão, As Marcianas, Lourenço e Lourival, Milionário e José Rico e outros. Sempre gostei do sertanejo de raiz, o chamamé (que é uma influência paraguaia desde que o MS surgiu na geografia do Brasil), assim como as guarânias. 
Nascido na terra de Almir Sater, eu não poderia trazer em minhas memórias o gosto musical por bandas como Forrozão Chacal, Banda Grafite, Ferro na Boneca, Forró do Muído, Impacto Cinco, Terríveis, Cavaleiros do Forró, Colo de Menina, Banda Líbanos, Desejo de Menina, Mala Sem Alça e uma infinidade de outras bandas e grupos musicais que embalavam o Rio Grande do Norte desses últimos tempos. É óbvio que não há brasileiro que não conheça Luiz Gonzaga, Elba Ramalho, Fagner, Zé Ramalho e uma infinidade de clássicos da música nordestina, mas estou me referindo às bandas locais que tocavam dia e noite nas emissoras de rádio no período entre 1991 a 2000 mais ou menos. 
Certa vez uma professora perguntou quase se benzendo: “como você consegue ouvir esse tipo de música”? Uma amiga às vezes zombava de mim, dizendo que eu adorava “choradeira e cantor miando”. Tinha aversão aos ritmos sertanejos (estou falando do sertanejo dos anos 90 para trás: música de verdade). Na realidade, gosto de todos os estilos musicais: clássico, sertanejo tradicional, rock, orquestras, enfim todo tipo de música predominantemente dos anos 90 para trás, pois depois disso surgiu um sertanejo esquisito, tão esquisito que denominaram “sertanejo universitário”. Hoje, aparece uma pérola no sertanejo! Na realidade, nunca mais vi nem pérolas. 
Pois bem, nos anos 90 quase nenhum potiguar apreciava a música sertaneja de raiz. Confesso que naquele tempo conheci apenas uma pessoa que gostava (um pouquinho) porque tinha passado um tempo no interior de São Paulo. Atualmente parece haver uma globalização dos estilos musicais com prejuízo para o Nordeste, salvas as devidas exceções. Não estou generalizando. Digo “com prejuízo” porque se um potiguar for ao Rio de Janeiro, a São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul não verá a influência do forró por ali, tampouco sua supremacia. Mas isso ocorre por aqui – ao contrário - ou seja, os potiguares deram uma esquecida do forró de raiz para abraçar o estilo musical sertanejizado. Digo assim porque o que vemos, hoje, é uma coisa nova e esquisita denominada “sertanejo”, mas não é. O cantor cearense Wesley Safadão é um protótipo da transição do forró com um misto de sertanejo universitário e outros estilos. 
O próprio Luan Santana, que iniciou carreira com excelente influência do sertanejo tradicional no Mato Grosso do Sul, tornou-se uma espécie de Wesley Safadão do Sertanejo. Sua música não reflete mais os ares sertanejos do seu estado de origem. 
Outra figura curiosa é Michel Telló, um artista completo, mas mutante. Para quem não sabe, ele iniciou a carreira no Mato Grosso do Sul, no início da década de 90, numa banda chamada “Tradição”, coisa esquisitíssima. Era um pedaço do Rio Grande do Sul no Mato Grosso do Sul. Havia o predomínio do “Vaneirão”, ritmo gaúcho. Inclusive estudiosos de Cultura sul-mato-grossense o criticam muito pelo fato de ele ter contribuído com a diluição do sertanejo sul-mato-grossense, imputando ritmos gaúchos. Depois que Michel Teló se projetou nacionalmente o sul-mato-grossense até achou bom, pois não o viu tão presente por ali, descaracterizando a música local com uma cultura que não era do Mato Grosso do Sul. Um exemplo de artista com forte respeito às suas raízes é o genial Almir Sater. 
Mas, retornando ao Rio Grande do Norte, observa-se uma influência maciça da música sertaneja, abrangendo de norte a sul do estado, muito embora se trate de um sertanejo descaracterizado. São poucos cantores potiguareis atuais que se inspiram em Luiz Gonzaga (que é uma verdadeira enciclopédia do Nordeste). Suas músicas são poemas belíssimos, que encantam. Conhecer Luiz Gonzaga é conhecer o Nordeste. Distanciar-se de Luiz Gonzaga é distanciar-se do Nordeste. É perder a identidade e assumir identidade alheia. Suas músicas revelam a nordestinidade na sua forma mais pura. Trata-se de uma fonte inesgotável de saberes e tradições do povo nordestino, sem contar suas melodias, seu modo impressionante de se apresentar ao público etc. Poucos potiguares se inspiram em Fagner, Zé Ramalho, Belchior, Clemilda, Marinês, Dominguinhos, Elino Julião, Alceu Valença, Canários do Reino, Genival Lacerda, Rita de Cássia, Sivuca, Trio Nordestino, João do Vale, Sirano e Sirino, Flávio José e outros. Quais artistas atuais se inspiram ou estudam os forrozeiros potiguares Marcos Lopes, Forrozão cabra da Peste, As Nordestinas, Forró Meirão? Em outros estilos, quem se inspira nos artistas potiguares Ismael Dumangue, Donizete Lima, Ademilde Fonseca, Dusouto, Núbia Lafaytete etc etc? 
Não se trata de doutrinação do forró, até porque as pessoas são livres para os seus gostos musicais. Os estilos musicais são múltiplos e estão em todo o Brasil. E devem ser assim mesmo. Minha reflexão se prende a questão de o forró, que nasceu no Nordeste, sofrer considerável descaracterização - pasmem! -  provocada pelos próprios potiguares. Quando algum mecenas do forró aparece para salvar o forró verdadeiro e a nordestinidade, soa como algo folclórico e até mesmo pitoresco, como se o forró fosse uma coisa que desonrasse. E esse comportamento se justifica com a releitura das palavras de Cascudo, mas numa dimensão incomparavelmente maior e mais impactante, graças às redes sociais, canais fechados de TV, Youtube, enfim uma infinidade de mecanismo que tornam o rádio de Cascudo fichinha. O povo potiguar está se permitindo influenciar muito mais pelas coisas que vem de fora de que as coisas de sua própria identidade. O forró, que deveria estar presente nos 365 dias do ano, parece mais restrito ao período junino, como se fosse meramente um elemento folclórico. Isso se parece com a Rede Globo, a qual se lembra do Nordeste apenas durante o São João. 
Dia desses houve uma overdose de sertanejo universitário no Arena das Dunas. No segundo dia de venda de ingressos, esgotou tudo. O estádio superlotou. Contam que se formaram “pipocas do sertanejo” do lado de fora do estádio, numa quantidade quase igual aos que estavam dentro do show. No palco estava Maiara e Maraísa, Marília Mendonça, Jorge e Mateus e muitos outros. Isso não seria questionável se até hoje, na história do Rio Grande do Norte, nenhum show com artistas nordestinos gerasse tanto público. 
Questionável! 
Vá ao Rio Grande do Sul e veja se eles dão esse trato à cultura deles. São quase bairristas. Primeiro a cultura deles. Depois as influências externas, desde que não sobrepuje os gauchismos. O que é de fora é enxergado como efêmero de cara. Vá ao Pernambuco e verifique se o “Axé” assumiu os sons de seu Carnaval. Nunca. Primeiro o deles! Com predomínio para o frevo. Agora olhe o Carnatal local. É a Bahia no Rio Grande do Norte! Não há uma identidade local. Já nasceu sem a cara potiguar, mesmo havendo músicos e sambistas potiguares respeitáveis.  Quando criaram o Carnatal, deveriam ter colocado como critério principal elevar a cultura musical potiguar, mesmo que trouxessem material de fora. Mas que a “potiguarânia” predominasse.                          
Como disse acima desnordestinidade é um fenômeno que acomete muitos pontos da cultura potiguar, e diz respeito a literatura também. Atualmente observo os leitores potiguares mais interessados por literaturas estrangeiras de que pela literatura regional. Digo isso porque observo muito. Onde vejo gente lendo, observo o que ela está lendo. Principalmente o público infanto-juvenil. Quase todos leem quase todos os principais autores ingleses, americanos, franceses, italianos, dinamarqueses, alemães etc. Mas... e os autores do Rio Grande do Norte? Quem conhece Ana Cláudia Trigueiro, Zila Mamed, Ferreira Itajubá, Françoise Silvestre, Francisco Martins, Nei Leandro de Castro, Tarcíso Gurgel, Madalena Antunes, Clotilde Tavares, Nivaldete Ferreira, Thiago Gonzaga, Manoel Onofre Júnior, Gilvânia Machado, Salizete Freire, Otacílio Alecrim, Zila Mamed, José de Castro etc etc etc. E os grandes autores do Nordeste, como Graciliano Ramos, Jorge Amado, João cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector etc etc etc? 
Não entendam nenhuma dessas reflexões como bairrismo da minha parte, até porque aprecio autores do mundo inteiro – em todas as áreas da Arte – mesmo conhecendo os grandes nomes da minha terra natal. Refiro-me aos escritores potiguares que produzem quase-cópia do que vem de fora, inclusive de outros países, negando a própria cultura. Esses, fazem jus ao “santo de casa não faz milagre”, pois os escritores locais não lhes inspiram.  
Mas no caudal dessa reflexão, também observo escritores nordestinos – embora poucos - certamente atentos a essa espécie de decadência da nordestinidade – contribuindo com a desnordestinidade. Eles assumem uma postura que é espécie de tentativa de cópia de alguém - mas alguém-estrangeiro. Quase como se quisesse ser aquele/la autor(a) famoso(a). Isso também não é bom, pois o leitor percebe o joguete! Não é legal se espojar nessa perda de identidade em busca meramente de lucro, pois prejudica a própria cultura. Todo autor tem influências. Óbvio. Mas não vem ao caso dessa análise. O bom é seguir uma linha. Todo autor famoso tem uma linha... uma característica. É por isso que de repente explode inclusive no exterior. 
Creio que faltam escritores que usem a palavra como arte. Como alguém já disse “que usem a palavra para dizer”. Faltam Gracilianos Ramos, Flaubert, Rimbaud, Baudelaire, Adélia Pardo, Padre Vieira, Graciliano Ramos, Fátima Abrantes. Nossa literatura é nova. Tem menos de 500 anos. Precisamos aprender também alguma coisa lá fora. Mas no Brasil há alguns monumentos inspiradores. Ao invés de estarem estudando grandes autores e construindo o seu próprio caminho, se diluem e se distanciam de suas raízes. 
Escrevi sobre música, de literatura, mas a desnordestinidade é visível em muitos espaços. É fácil perceber o fenômeno. Em termos de linguagem, na década de 1990, quando cheguei ao RN, todos diziam “visse!”. Tinha o efeito de “certo!” (adjetivo). O “visse” desapareceu da boca do potiguar. Naquele tempo a emissora de televisão “Rede TV” tinha um programa que usava muito a expressão “tá me tirando?” (tá zombando de mim?). Em pouco tempo os potiguares colocaram debaixo do tapete “tá mangando”, substituindo-o por “tá me tirando”. Escrevi um longo trabalho sobre linguagem. O planeta da descaracterização da linguagem regional potiguar - substituída por linguagem típica do eixo Rio/São Paulo é gigantesco. Não vou me estender no assunto agora. É muito abrangente. Em outro momento escrevo a minha opinião sobre outros pontos dentro dessa desnordestinização. E viva o Nordeste!

quinta-feira, 16 de julho de 2020

O QUE TEM A VER “O GRITO DO IPIRANGA” COM “1808 FRIEDLAND”? PLÁGIO OU A MESMA ÓTICA DOS VELHOS DIÁRIOS EUROPEUS?

 
Desde criança conhecemos essa bela e épica ilustração nos livros de História do Brasil. É a reprodução de uma imensa tela pintada pelo genial pintor nordestino José Américo, cujo nome é “O Grito do Ipiranga”. Curiosamente, ainda nos tempos da Universidade, estudando História da Arte, surpreendi-me quando o professor apresentou as duas telas e fomos estudá-la. Vi que durante anos fui - fomos - enganados. Ou quase isso... Hoje, aproveitando a Quarentena, trouxe o assunto à baila, pois com certeza ainda existem muitos que, iguais a mim passaram anos sem saber.
 
 
Todos nós sabemos tintimportintim o que ela retrata, graças aos nossos velhos professores. Vou comentar apenas a questão do impacto visual. A ilustração é uma alegoria de tudo o que é positivo, numa matemática perfeita. Ao centro um homem muito bem apessoado, segura uma espada em riste. É D. Pedro II. Ele monta um lindo e imponente cavalo puro sangue, e dispensa comentários. Cheio de caras e bocas, dá o famoso grito “Independência ou morte!”. Está rodeado de soldados que trajam vestimentas impecáveis, embelezando ainda mais o cenário. 
 
No lado esquerdo, um trabalhador conduz uma junta de carros-de-boi cheia de toras de madeira de lei. Certamente o homem passava por ali e findou pincelado pela história para todo o sempre. Ele não estava só. Percebe-se que o local era uma vereda e tinha certa movimentação, a julgar pelos demais elementos mostrados pelo artista. São Paulo ainda era cercada de mata nativa, portanto de seus ventres escorre o rio Ipiranga. Vê-se à direita uma casinhola de taipa, cujos paulistas chamam “adobe”, ou “pau-a-pique". 
 
Pois bem, a pintura retrata coragem, garra, audácia, otimismo e mudança para um novo tempo. Ela impressiona pelas pinceladas e o seu aspecto fotográfico, revelando a genialidade de seu autor. Mas teria sido, de fato, desse jeito? Havia todo esse positivismo? Havia Positivismo em seu sentido de doutrina filosófica como era tão comum àquele tempo? Veremos isso mais adiante. Agora quero explicar acerca da pintura intitulada “1807 Friedland” que está no lado direito desta postagem, a qual foi pintada pelo famoso artista francês Jean-Louis Ernest Meissonier. 
 
Nessa tela o também extraordinário pintor Jean-Louis retrata Napoleão Bonaparte e todo o seu estado-maior prestando continências e deferência ao regimento dos Curaceiros, poucos minutos antes da Batalha de Friedland.
Observe que ela é quase igual, e engana a muitos. Se as crianças e jovens não prestarem a devida atenção, poderão cometer a imperdoável gafe de a apresentarem num trabalho escolar, em substituição à tela “O Grito do Ipiranga”. É até universitários, diga-se de passagem.
 
Vejo isso como plágio, embora alguns enxergam como "material de inspiração". Pode ser, afinal alguns preferem ser mais elegantes, ou se enganar, ou enganar os outros.
Falei lá em cima sobre a Doutrina do Positivismo. Sabemos que o Positivismo trazido da Europa impregnava tudo, inclusive a Bandeira Brasileira e tantas coisas mais. A lógica era autenticidade e retratação da verdade nua e crua. Mas não foi o caso da tela “O Grito do Ipiranga”. Se nós recorrermos aos alfarrábios da verdade, verificaríamos que a tela teria de ser muito diferente. Não diria “feia”, mas verdadeira. Faltou verdade na tela. 
 
“O Grito do Ipiranga”, pintado em 1888, treze anos depois do quadro “1807 Friedland”, não diminui em nada o extraordinário brilhantismo do nosso famoso pintor paraibano. Ele era um gênio. Impecável. Romântico, inclusive. Mas romantizou tanto que alegorizou. Idealizou. Penso que é justamente por ele ter sido esse pintor monumental que deveria ter retratado o fato como ele ocorreu, sem mentir no pincel. 
 
Pedro Américo vivia na Itália, cercado da nata artística do Velho Mundo. Quando foi convidado para criar tal pintura, viajou ao Brasil e conheceu toda a região onde o fato se deu. Grandes artistas devem fazer exatamente isso. Mas na hora de pintar, fantasiou. Ele pintou a tela na Itália, onde foi inaugurado antes de ser trasladado para o Brasil. 
 
As Artes Plásticas têm o poder da liberdade. Talvez seja a mais livre das expressões artísticas. Ela permite a criação, a deformação, o surreal, a dúvida, a retratação... ela confunde os sentidos etc. Mas nesse caso, creio que D. Pedro tenha solicitado uma tela que retratasse o real. Ou não? 
 
Pois que bem. 
 
Mas como de fato deveria ter sido a tela de Pedro Américo? Isso já é perguntar demais. Vamos começar pela DIARREIA: fatalmente o nosso Dom Pedro estava acometido de uma deplorável desinteria justamente no momento do grito “Independência ou Morte!”. Ele apeou inúmeras vezes do animal para espirrar líquidos intestinais sobre pobres formigas desavisadas. E num tempo que papel higiênico não era comum ao Brasil, com certeza machucou muito o “fiofó”, esfregando certamente folhas de “velame” (folha que substitui o papel). Resumindo: o pobre imperador não tinha condições de se mostrar tão imponente, tampouco teria energia suficiente para o famoso grito. 
 
E de onde Pedro Américo tirou aquele IMPONENTE CAVALO puro sangue? Com certeza dos tantos que ele via na Europa, pois aqui só existiam jegues, jumentos, mulas e uma tropa equina desses conformes para menos. Com certeza ele retratou os gigantescos cavalos “Lipizzano”, típicos da Itália alguns países vizinhos. Impensáveis para o Brasil!
 
Na ocasião que ele veio ao Brasil para contemplar a região do rio Ipiranga, a topografia era completamente diferente. Havia mata nativa, cortada por muitas veredas e poucos descampados. Toda a área era de varjões e ribanceiras. Nada lembrava o CENÁRIO que ele retratou. Havia se passado muito tempo do grito do Ipiranga. A paisagem estava mudada, mas nem de longe ela lembra como de fato foi no dia do grito. 
 
A COMITIVA que acercava D. Pedro I era de menos da metade da que se vê na tela de Pedro Américo. Aquele acontecimento não combinava com aglomeração de muitas pessoas, pois foi um encontro casual. Não havia razão alguma para o Imperador estar com um grande séquito no meio do mato. 
 
Para finalizar a explicação sobre a alegoria impregnada ao quadro “O Grito do Ipiranga”, pasmem - ninguém usava UNIFORME/FARDAMENTO algum, e sim, roupas normais para aquela época. Como usar fardas se ainda não haviam sido pensadas? Curiosamente, uma das contribuições mais originais de Pedro Américo para o Brasil, além dessa magnífica pintura, é ter desenhado – sem querer – o figurino que se tornou o uniforme dos “Dragões da Independência” (aqueles que desfilam no dia 7 de setembro em Brasília, e fazem guarda ao palácio do Planalto e Palácio da Alvorada). Ou seja, ele nunca imaginou que tal figurino fosse o resultado mais genuíno de sua obra. Vejam como as coisas são interessantes!
 
Muito tempo depois, Pedro Américo foi questionado sobre isso. Ele, ao seu modo, explicou sua imprecisão. Disse o que todos artistas sabem. Ninguém precisa ser necessariamente fiel à História quando produz Arte. Porém, de certo modo, é estranho, pois ele criou uma obra por encomenda, portanto deveria ter sido fiel aos fatos, mesmo criando um cenário imaginário. Alegou que teve a intenção de dar notoriedade ao evento a partir de sua beleza imagética, mostrando pessoas bem vestidas, animais imponentes, cenário agradável etc, para impressionar e arrastar um tom épico de coragem e audácia. Para ele, isso se casa melhor quando se conta a História, quando se vê o quadro. 
 
Américo alegou também que a obra levava os brasileiros a sentirem orgulho, inspirando-se em homens notáveis. Para ele não ficaria bem retratar um homem alquebrado pela diarreia, montado um jegue ou mula esquálida às margens de um rio tomado por uma floresta. E repleto de uma homarada mambembe o guarnecendo. A presença de pessoas comuns na localidade transmitia o prenúncio da urbanidade que se desenhava no Brasil. 
 
Na realidade o genial pintor fez alegações muito interessantes. Tão interessantes que impressionam (convém o leitor pesquisar em estudos sérios), mas particularmente enxergo isso como a criação de mais um engodo para o povo brasileiro que foi tão acostumado a isso. 
 
A tela “O Grito do Ipiranga” foi pintado na Europa. Sua inauguração deu-se na Itália, cujo artista se viu cercado por D. Pedro e a aristocracia europeia. Pessoas de extremo bom gosto, acostumadas a tudo de mais fino e requintado na música, na pintura, no teatro, na ópera, na escultura enfim. Suponho que ele não quis receber o deboche de muitos. Particularmente entendo que o próprio D. Pedro I deu as coordenadas também sobre como seria conveniente o quadro. Obviamente a pintura teria ficado engraçada. História é isso? Arte, sim, é isso! 
 
Para mim, Pedro Américo foi um artista!!! 
 
Finalizando, me lembrei da nossa também genial Nísia Floresta Brasileira Augusta. Ela detestava a imagem deturpada que os europeus registravam em passeios e estudos pelo Brasil. Eles tinham a mania de mostrar no Velho Mundo um Brasil inventado, assim como fez o nosso Pedro Américo em seu “Grito do Ipiranga”. Luís Carlos Freire.

sábado, 11 de julho de 2020

“CORINGA” É FILME QUE CONTA A NOSSA HISTÓRIA - O QUE “O CORINGA” ME DISSE - QUANTOS DE NÓS SOMOS CORINGAS? QUANTOS SOMOS PALHAÇOS? QUANTOS USAMOS MÁSCARAS? QUANTOS MATAMOS?

 
 
“CORINGA” É FILME QUE CONTA A NOSSA HISTÓRIA - O QUE “O CORINGA” ME DISSE - QUANTOS DE NÓS SOMOS CORINGAS? QUANTOS SOMOS PALHAÇOS? QUANTOS USAMOS MÁSCARAS? QUANTOS MATAMOS? 
 
Sou daquelas pessoas que raramente assiste a um filme em sua estreia. Confesso que não me empolga. O último que assisti nesse sentido foi “Titanic”, certamente porque o fato me impressiona desde criança. Antes de ontem, fazendo jus à Quarentena, assisti pela primeira vez ao filme “O Coringa”. Ontem, assisti novamente, e achei pertinente escrever sobre ele. É constantemente desconfortável. O enredo incomoda o tempo todo, qual espinho espetando. Mas tudo tem a ver com a gente, inclusive com o Brasil. Vou primeiramente contar o filme e divagar a minha insignificante opinião. Encerrarei compartilhando o que o filme me disse.
FAÇO QUESTÃO DE ADIANTAR – EM CAIXA ALTA – QUE TUDO QUE ESCREVEREI TRADUZ MINHA OPINIÃO PESSOAL. É UM SIMPLES CIDADÃO DANDO ‘PITACO’ TENDO COMO FUNDAMENTAÇÃO A SUA EXPERIÊNCIA DE VIDA. Não sou crítico de filme, nem da área médica, já que o filme navega fortemente as águas da psiquiatria, da psicologia, da assistência social, da enfermagem... Mas, diga-se de passagem, a história passeia em outros rios:a educação, politica, filosofia enfim... Também não atinarei para os perfis originais do formato histórico dessa HQ. Apenas arrastarei a história para as nossas vidas. O que ela tem a ver conosco?
Na primeira cena do filme ele se olha no espelho, enfiando os dedos na boca para alargar o sorriso. É desconfortante. Dá impressão que ele vai rasgar a boca. O sorriso é forçado. Há lágrimas nos seus olhos. E mais tarde compreenderemos a razão de ele dizer a frase mais impactante do filme: “eu nunca fui feliz em toda a minha vida”, dentre outras colocações que falam por si. Vê-se logo que, ser palhaço não significa ser feliz. Mas de longe imaginamos o terror vivido por aquele artista que cumpre fazer os outros rirem, afinal palhaço cumpre felicidade. É o que supomos!
Logo no início, ele se destaca numa calçada, vestindo as cores elétricas de um palhaço, descombinando totalmente com o cenário opaco e esquisito de uma metrópole cheia de desigualdade social. Na realidade Artur é funcionário de uma empresa que loca artistas, inclusive ele trabalha com uma placa nas mãos, atraindo clientes para uma empresa em vias de falência. Toda Godan City (nome da metrópole), parece problemática. As emissoras de rádios anunciam greves diversas, inclusive de lixeiros. As ruas estão imundas.
De repente um pequeno grupo de adolescentes toma a sua placa. Ele corre para recuperá-la e é barbaramente espancado. Os chutes parecem desferidos em nós. Dessa vez ele apanhou de meninos pobres, chamados de “marginais”, ou membros de “gangue” (não são pessoas de bem). Para “equilibrar” os fatos, lá pelo meio do filme, ele apanhará de três jovens ricaços, impecavelmente vestidos, chamados pela sociedade de “pessoas de bem”. Tudo muito parecido ao que vemos, hoje, no Brasil, tipo esses “patriotas” e que estão em alta. Artur é fruto de múltiplos espancamentos, como veremos.
Seu sonho é fazer stand’up comedy, ou seja, ser humorista que se apresenta sozinho para grandes plateias. Tem como referência um grande apresentador de televisão local, semelhante ao que foi o nosso Jô Soares Onze e Meia, que entrevistava brincando, e embora também tratasse de assuntos sérios, provocava situações hilárias o tempo todo.
Artur mora com a mãe, ou melhor, a mãe mora com ele. É velha e muito doente. Ele sustenta a casa com dificuldades. Chama a atenção o amor e o cuidado que ele tem com ela: dá-lhe banho, passa perfume, penteia os cabelos, dá-lhe comida na boca. Ele dá uma aula de amor filial. É um exemplo para a sociedade brasileira, na qual muitos menosprezam, discriminam, descartam os idosos, sem contar uma parcela que roubam sua aposentadoria e os espancam.
Artur é doce como uma criança e parece que a mãe o trata como tal, afinal ele também é doente, inclusive acompanhado por assistentes sociais da prefeitura local e recebe remédios gratuitamente. Tem uma disfunção cerebral. Quando se desagrada tem descontrolada crise de gargalhada, chamando a atenção de todos. Será exatamente essa gargalhada ensandecida o divisor de águas na sua história, pois antes ele é somente o Artur, e depois será “Coringa”, de fato. Ele tem o hábito de brincar com desconhecidos, esboçar leves sorrisos palhacescos, fazer gatimanhos, falar coisas esquisitas etc. Como se estivesse num eterno picadeiro. E isso nem sempre agrada os estranhos. Artur tem outros problemas de ordem mental, mas o autor da história não revela exatamente o que é. Deixa para os especialistas, portanto não sei o que ele tem. Sei apenas que, mesmo com suas esquisitices, ele consegue se relacionar com a sociedade, principalmente com as pessoas mais próximas.
Logo após o espancamento ele ganha um revólver de um bolsonarista... ops! aliás... desculpe o equívoco... quis dizer: de um amigo... o qual alega que é para defesa pessoal. Muito inocente, Artur brinca com a arma em casa, fazendo-a disparar. A mãe se assusta. Ele mente que são tiros de um filme de guerra que assiste, e aumenta o som da televisão. Na mesma semana ele se apresenta num hospital infantil e deixa a arma cair, assustando a todos. É despedido com requintes de humilhação. Como ter dinheiro para sustentar a mãe? Ele nem pensa nele.
Certo dia ele está dentro de um trem, quando entram três rapazes ricos e começam a assediar uma moça. É alta madrugada de vagões quase vazios. Artur se incomoda com o assédio e percebe que a moça é impotente diante dos homens. Logo tem um surto de gargalhadas que rouba a cena. Os “cidadãos de bem” começam a debochar de Artur. O trem pára e a moça foge. Logo o trio o espanca de uma maneira tão covarde que dói nos nossos ossos. Seu corpo é esquálido e fraco. Nossa revolta se amplia quando reconhecemos a vida sofrida daquele cidadão fracassado, que luta para vencer, e é do bem.
Ao invés de correr e pedir socorro nos outros vagões, ou descer e sair gritando e pedindo socorro pela estação, Artur dá tiros para todos os lados e mata dois “cidadãos de bem” logo de cara, inclusive um dos tiros atravessa a face de um deles. O filme é bem violento. O trem pára, o último “cidadão de bem” desce correndo, Artur o persegue, o mata e desaparece na madrugada.
Abre-se uma das mais belas cenas do filme – fotograficamente falando - não fosse o horroroso significado. Ele dança com a delicadeza de uma pluma, como se de fato tivesse ficado leve e flutuasse. Certamente por ter matado o ódio, representado naqueles três “cidadãos de bem” que certamente teriam estuprado a bela moça. A dança também parece uma metamorfose, pois até então não reconhecíamos o Coringa em Artur. O coringa surge praticamente aí.
No outro dia ele se apresenta num programa de Stand’Up Comedy. Leva um caderninho contendo frases prontas de um humor que só ele compreende. É típico dele anotar coisas. Ele parece estar sempre imitando, como se ele fosse um fracasso e só os outros fossem brilhantes. Nessa plateia está uma namorada que reside em seu mesmo condomínio. Ele não agrada a plateia e gargalha sem parar, certamente percebendo que o público não corresponde. Mas a namorada lhe parece o bastante. Nesse interim a polícia já está no encalço dos palhaços de Godan City, afinal algumas testemunhas viram um palhaço correndo no exato momento do crime. Coincidentemente, logo batem na casa de Artur – sem saber que era ele – mas cumprindo investigar e levantar dados. Assustada, a velha tem um AVC. Quando ele retorna para casa, encontra a mãe sendo acudida. Ela está saindo para o pronto-socorro quando ele a acompanha.
O vídeo da exibição de seu stand’up viraliza pelo aspecto cômico de sua gargalhada espaçosa e esquisita, e cai nas mãos do famoso apresentador e humorista que ele é fã. O “papa do humor” pega exatamente esse recorte e o exibe no seu programa de televisão. Artur tem um rompante de felicidade ao se ver mostrado para toda a Godan City, mas logo entende que era objeto de ridicularização por parte do homem que ele tanto admirava. Ele ri. Sua vida é uma sucessão de golpes no estômago.
Godan City está em polvorosa devido à crise. A metrópole pega fogo. Instigados pelo assassinato dos três “rapazes de família”, as ditas “pessoas de bem”, os revoltosos estão nas ruas em protesto. Logo aderem a imagem do palhaço como símbolo deles. Era a guerra dos palhaços, (na pessoa dos pobres e humilhados), contra os ricos (na pessoa dos três jovens ricos que foram assassinados no trem).
O fato de um simples palhaço ter “matado” aquela representação, aquela alegoria, promove nos revolucionários de rua a sensação de força e poder. Então eles também poderiam vencer se “matassem” o patrão (metáfora para simbolizar conquista de direitos trabalhistas e vencer o patrão dominador e escravagista). Isso é o Brasil de antes, de hoje e pelo visto, do futuro, acaso não “matemos” os patrões e os políticos que que massacram o trabalhador – salvas raríssimas exceções. Para agravar a situação um bilionário da metrópole - então candidato a prefeito – faz um discurso preconceituoso, associando palhaços às pessoas fracassadas, que sentem inveja de quem “venceu na vida”. A revolta aumenta.
Artur encontra uma velha carta em sua casa e descobre que é filho de um bilionário de Godan City. Percebe que a mãe se humilha nessas correspondências e é completamente ignorada por seu pai que – diga-se de passagem - é o candidato a prefeito de Godan City explicado anteriormente. Ele vai à exuberante mansão do pai. Dá de cara com o irmão (uma criança) e brinca com ela do lado de fora do portão. O menino é o retrato da indiferença, portanto Artur força-lhe um sorriso com os dedos (como fez no início do filme). Uma espécie de mordomo aparece e o trata com hostilidade. Ele diz ser filho do bilionário. O homem, que sabia de sua história, o hostiliza e diz que a mãe de Artur era louca. Percebe-se então que ela fora empregada da casa, e explorada sexualmente pelo bilionário, gerou Artur . Como disse antes, sua vida são golpes sucessivos.
Fracassado o contato com o pai, ele se aproveita da revolta da população na principal avenida de Godan City e entra no mais famoso teatro da metrópole, onde o importante apresentador e humorista faz um show. Ele sabe que seu pai está ali. O autor do filme usa um estratagema interessante para colocar Artur dentro do teatro que só entrava “gente de bem”. Curiosamente, Artur se disfarça de funcionário com aquelas roupas típicas de cinemas e teatros, talvez para dizer que apesar de tudo, Artur ainda guardava inocência dentro de si. Era só uma criança em busca do pai. E dá certo! Na realidade ele nem pensava na riqueza do pai. Queria apenas o amor paterno.
Ele percebe que o pai se dirige ao banheiro e o segue. Ao vê-lo, fita-o com aquele olhar amoroso de filho. Contemplação pura. O bilionário pergunta se podia ajudá-lo. Ele revela ser seu filho e fala o nome da mãe. O bilionário o deprecia e diz que sua mãe era louca, e que ele era adotado. Ele se decepciona ao ter a mãe ofendida e pela revelação de ser adotivo. Logo a sua doença se manifesta numa gargalhada doentia. Leva um terrível soco na cara. Talvez isso tenha sido o seu pior espancamento.
Ele vai até o sanatório onde a mãe foi internada durante um longo período. Rouba a documentação. Desabam sobre ele verdades terríveis. Descobre que a mãe tem graves transtornos mentais, inclusive “psicose delirante”. Na pasta estão os papéis de sua adoção. A decepção é gigantesca quando lê os registros das assistentes sociais. A mãe o espancou muito, teve vários namorados e alguns abusaram dele. O estopim para separá-lo da mãe foi quando ela e o namorado o amarraram no radiador de um carro, torturando-o. Isso nos choca diante do amor imenso e verdadeiro que ele lhe devotava. São muitos contrastes. As descrições doem na alma. É exatamente nesse momento que ele diz “é muito difícil acabar sendo o tempo todo feliz”. Ele também viveu um longo período internado. Certamente não se lembrava com nitidez das torturas sofridas porque era muito criança.
Todo amor que ele não pode dar ao pai, transferiu para a mãe. De repente descobre que ela era um monstro. Talvez culpada por sua doença e por seus tantos fracassos. Artur corre no hospital e a mata asfixiada num travesseiro. Vai para casa e dá gargalhadas sem fim. Seu sorriso é sua dor. É ferida que sangra. O bilionário plantou os documentos de adoção na documentação da mãe de Artur. Era um “homem de bem”. Casado. Se encaminhava para a política. Precisava defender sua “honra”. Uma boa propina pode ter calado a boca do diretor do hospital nesse complô. Dinheiro não era o problema. Artur seria irmão do menininho do portão da mansão?
O mais importante programa de humor de Godan City telefona para ele, e o convida para uma entrevista com o humorista que ele mais admirava. Se é que ainda o admirasse. Aquilo era o seu sonho de consumo desde que ele se descobriu por gente. É a sua grande chance. É o ápice. Chegou a hora de finalmente deslanchar como humorista... Pelo menos é isso que somos levados a imaginar.
Ele coloca fitas de VHS e ensaia, faz cenas, faz caras e bocas. Quer sair impecável, pois estará adiante do gigante do humor. O programa cobre todo o país. A campainha toca. Artur se arma com uma tesoura no bolso. Ele já pressentia que os investigadores estavam cismados. Mas são seus amigos da empresa locadora de artistas. Um deles é um anão. O homem de estatura normal conta-lhe que investigadores de polícia estiveram na empresa para colher novos depoimentos dele. Artur tem um rompante, crava a tesoura no pescoço do amigo e o golpeia inúmeras vezes com requintes de ódio. Chateou-se com a informação? Poupa o anão e o deixa sair. A cena é icônica e desconfortável, pois o homenzinho não alcança o trinco da porta. Artur abre, dá um beijo em sua careca e ele dispara, assustado.
Essa permissão para o anão sair permite-nos supor que ele não se incomoda de o amigo a denunciá-lo. E acaba revelando que Artur tem planos. Mas até então não sabemos o que é. Ele se reorganiza e dispara para a sua Brodway do Humor. Logo está numa escadaria sem fim. É uma das cenas mais interessante, pois ele dança e está feliz. Por que a “felicidade”? Logo os investigadores o chamam no topo da escadaria. Ele entende tudo, mas desobedece. Não pode ser interrompido na maior chance de sua vida. Sai em disparada, entra num trem abarrotado de palhaços em protesto. A cidade está um inferno. Dentro dos vagões todos são iguais pelo efeito de máscaras e roupas de palhaço. Os investigadores ficam confusos. Um tiro é disparado, matando um dos revoltosos.
A multidão desce do trem e começa a linchar os policiais, os quais são acudidos pela guarda local e levados em estado grave para o hospital. Artur chega ao programa de TV e fica aguardando no camarim, onde a TV já anuncia o caso dos policiais espancados que se encontravam em estado grave no hospital. O entrevistador vai até ele para conversar rapidamente e ele pede que o anuncie como “Coringa”. Uma senhora era entrevistada antes dele, e o apresentador fala do entrevistado que viria a seguir. Diz achar que ele tinha um monte de problemas e precisava de um médico. Mostra o vídeo de sua famosa gargalhada e o ridiculariza mais uma vez, dizendo que honestamente as pessoas estavam precisando rir. Artur assiste a tudo pela TV. Quando é anunciado, faz uma entrada apoteótica, afinal conseguiu atingir o ápice. Está diante de um ícone do Humor e num programa ao vivo, visto em todo o país. Sua “felicidade” é tanta que ‘tasca’ um beijo numa senhora idosa que fora entrevistada antes. Todos aplaudem sua impecável performance.
O apresentador fala sobre os protestos e pergunta se sua caracterização de palhaço tem relação com o evento. Ele diz que não é político, e que está apenas fazendo todo mundo rir. O apresentador debocha: “será que está funcionando”? O “Coringa” esparrama uma bela gargalhada. Enfim pega seu caderno de piadas e começa a falar piadas de péssimo gosto. O público protesta junto com o apresentador. Então ele diz que a semana esteve difícil para ele desde que matou aqueles três investidores. O apresentador comporta-se com incredulidade. Ele insiste na revelação e o apresentador pede razões para acreditar. Ele diz não ter mais nada a perder... “nada mais me machuca, minha vida não passa de uma comédia”. Perplexo, o apresentador pergunta se ele achava que matar aqueles caras era engraçado. Ele responde que é, que acha engraçado, e cansou de fingir que não é. Diz que a comédia é subjetiva. Pergunta para a plateia: “não é isso o que vocês dizem? Vocês é que decidem tudo, o sistema e vocês são quem decidem o que tem graça e o que não tem”. Alguém na plateia pede para retirá-lo dali. O apresentador, sem acreditar, pergunta se ele fez aquilo para começar algum movimento. Artur pergunta se ele o vê como um palhaço capaz de começar algum movimento. “Eu matei aqueles caras porque eles eram péssimos, todo mundo é péssimo hoje em dia, é o que basta para a gente enlouquecer”. O apresentador diz que ele é louco e pergunta se isso era uma desculpa para matar os outros. Ele diz que não, diz que todos estavam preocupados com “aqueles caras”, e que se fosse ele todos passariam por cima. E diz que todos estavam solidarizados com “aqueles cara” apenas por que fulano de tal (o milionário - pai dele) chorou por eles na televisão. O apresentador pergunta se ele tem algum problema com o dito bilionário e ele diz que sim, sem dizer que ele é o seu pai, e pergunta se o apresentador sabia o que era estar lá fora, se por acaso ele saia dos estúdios, que as pessoas só gritam e berram, que nunca alguém é educado, que homens como o bilionário não sabem o que é ser igual a ele, que todos acham que as pessoas vão gritar e todos vão ficar calados como meninos bonzinhos. O apresentador diz que nem todos são iguais. Ele diz que o apresentador era péssimo. O apresentador pergunta por quê. Ele diz: “você passou o meu vídeo”, e que ele havia feito aquilo para transformá-lo numa piada, por isso ele era igual a todos. O apresentador condena o que ele fez com os três homens e com os dois policiais, que o povo se rebelou e que Artur ficava rindo sendo o responsável. Ele pergunta se o apresentador pergunta se ele queria ouvir mais uma piada. O apresentador diz que não. Artur, já gritando, diz “o que você consegue quando cruza com um doente mental solitário quando a sociedade abandona ele e o trata como lixo?”. O apresentador pede que a produção chame a polícia. De repente Artur dá um tiro em seu rosto, matando-o a queima roupa. Ele olha a plateia,, horrorizada e ri contemplando-a. Em seguida coloca o rosto na câmera principal e diz “não se esqueçam, a vida é...” (a produção corta, evitando completear: “uma comédia!”). Segundos depois, todas as TV’s dão a notícia. Godan City está perplexa.
O filme finaliza com Artur no carro da polícia passando pelas avenidas pegando fogo, carros sendo queimados, virados, lojas sendo apedrejadas e saqueadas. É a multidão de “palhaços” destruindo tudo. Ele externa um riso mórbido de satisfação com o cenário. Começa a dar gargalhada. Os policiais criticam a atitude e diz que tudo aquilo é culpa dele. Ele concorda e diz que tudo aquilo era bonito. Um veículo colide com o carro e os policiais morrem. A multidão, que havia visto Artur na TV, agora sabe quem é o herói dele, e o retira do carro. Enquanto isso, o milionário-seu-pai sai desesperado do teatro ao lado da esposa e o filho. Eles presenciaram o crime. Um palhaço os segue e os assassina a tiros. Instigado pelos “palhaços” enlouquecidos, Artur começa a dançar no capô do carro, ovacionado. Todos estão eufóricos diante do seu “mito”. Com uma expressão de terror, ele realiza a mesma dança plumática de quando matou os três “cidadãos de bem”. Então ele faz o seu típico gesto de alargar o sorriso com os dedos. Mas dessa vez usa sangue que sai de seu nariz e de sua alma. Logo faz uma deferência à multidão naquele picadeiro de horror.
A tela fica preta e divide a próxima cena. Surge o seu sorriso que para nós é um símbolo máximo de dor mais no coração que no físico tão espancado. E numa predominância da cor branca ele aparece numa espécie de prisão, ou hospital de loucos. está diante de uma assistente social, ou psiquiatra. Ele ri assustadoramente o seu choro. A mulher pergunta qual a graça. Ele diz que era uma piada. Ela pede para ele contar. Ele diz “você não iria entender”. Nesse momento toca “That’s Life”, na voz e combinação perfeita de Frank Sinatra. Em seguida ele aparece solitariamente, caminhando num corredor como executando a coreografia dessa obra de arte musical, que traduzindo, diz: “... Essa é a vida/ E é tão engraçada quanto possa parecer/Algumas pessoas têm prazer pisoteando sonhos/Mas eu não deixo, deixo que me faça mal/Por que esse velho e belo mundo continua a girar...”). Impressionante! Tudo é branco e contrasta com as pegadas vermelhas de sangue deixadas “inexplicavelmente” no piso. O filme finalmente é encerrado com um funcionário do hospital correndo atrás dele.
É um filme de mil reflexões. Mil possibilidades. A “interpretação” depende do lado que você vê. Na condição de educador, imagino quantos Artur existem nos países com desigualdade social. Sabemos que pessoas com transtornos mentais podem ter qualidade de vida desde que devidamente tratadas e acompanhadas por profissionais competentes, seja pelo estado ou pelo sistema privado. Quantos Artur nunca foram tratados por psiquiatras e médicos, portanto passaram pela vida sorrindo choros de dor e terror, vitimados por um eterno bullying. Quantas foram tratadas por profissionais medíocres que mal contribuíram com suas vidas. Quantos profissionais se tornaram medíocres pelo desprezo do Estado. Quantos lares do nosso imenso Brasil têm pais e mães desiquilibrados, criando desequilíbrio em seres inocentes? Quantas escolas brasileiras têm condição de lidar com crianças que apresentam transtornos mentais? Quantos professores medíocres marginalizaram ainda mais crianças e jovens com tais transtornos? Quantas escolas brasileiras contam com professores preparados para lidar com esse público, ou pelo menos dar-lhes amor?
Artur era fruto da desigualdade social. Uma metrópole de minoria milionária torna invisível os pobres, doentes, idosos, as pessoas especiais etc. Ela enxerga essa massa problemática como degrau para, por exemplo, ganhar uma eleição. É o que o milionário-seu-pai postulava. Artur é fruto de relacionamento de patrão com empregada. A mãe, bela quando jovem, serviu de brinquedo para um “homem de bem”, igual a esses que estão em alta ultimamente: os famosos “patriotas”. Com a gravidez, ele descartou a amante num sanatório e plantou uma fictícia adoção de Artur. Dinheiro permite quase tudo! Entre idas e vindas, Artur andou por instituições que abrigavam crianças vitimadas por violência. Ele sofrera abusos sexuais, torturas pelos outros amantes da mãe e dela própria. Artur era um espancamento em vida, portanto nem tentando sorrir era alegre. Seu sorriso era choro.
Fatalmente é nas mãos dessa vítima da sociedade que vai parar uma arma de fogo e realizar um divisor de águas em sua história. Já imaginou um Brasil com o povo armado? A condição de Artur o torna vítima de todo tipo de injustiças da sociedade que “mata” e depois vai rezar o terço, ou dizer Ô glória, estou salvo, aleluia! Artur era uma máscara em vida: brincava, tentava parecer feliz para alegrar pessoas e manter as aparências. Isso é a vida de muitos. Quantos priorizam esse comportamento socialmente e principalmente nas redes sociais. Há uma obrigação de ser feliz a cada segundo. É uma ficção ridícula. Mas se não for alimentada, cai-se na depressão ou num vazio que precisa ser preenchido. Há necessidade de se parecer feliz por que os colegas postam fotos sorrindo, felizes, em lugares bonitos, mesmo que muitos é mero cenário. Há necessidade de alimentar esse comportamento doentio e vergonhoso. Se eu não for igual aos felizes, aos melhores, aos bem vestidos, aos que viajam, aos que balançam chaves de carrões de luxo etc, serei patinho feio. Estarei fora do grupo. E quantos alimentam essas máscaras às custas da exploração alheia, como certos políticos, certas autoridades religiosas e muitos patrões. Quantos estão à beira do suicídio para manter essas caríssimas máscaras? Aparência pura! O mundo construiu um comportamento deplorável, que infelizmente contamina alguns perfis humanos, os quais deveriam ser o oposto. Quantos dão gargalhadas em Dubai ou nos Champes Elisèe, mas são gargalhadas de choro. É uma máscara. Esses são os palhaços atuais. Esses são os Coringas atuais. E Artur, de fato, era patinho feio, feito feio pela sociedade, pelas autoridades, pelos políticos... Seu mundo era idealizado. Sua namorada era uma imaginação. Coringa é o filme de terror da vida de muitos!