ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

quinta-feira, 20 de março de 2014

VOCÊ SE SURPREENDERÁ COM UM TEXTO ESCRITO HÁ 76 ANOS – INTITULADO “TERRAS DE PAPARI” TERRAS DE PAPARI - COMENTADO



O texto foi escrito em 1938. O autor inicia elogiando à exuberância da natureza em Papari (hoje Nísia Floresta). Nenhuma novidade, mas algo chama a atenção. Ele usa a lagoa Papari para explicar o atraso em que os  nisiaflorestenses já em encontravam naquela época. Vejam como isso é curioso: “A lagoa, que é uma tradição da alegria, do bom humor e da paciência resignada dos habitantes, explica, em parte, o atraso de uma comunidade esquecida de que sua prosperidade está na dependência imediata do trabalho agrícola mesmo pelos processos rudimentares usuais”.
Ele segue comentando sobre a decadência em que se encontra o município. É interessante como existem vários textos antigos que retratam Papari de forma deprimente. Alguns, escritos há mais de cem anos, mostram o município como lugar semiabandonado. O primeiro livro sobre o Rio Grande do Norte, escrito por Ferreira Nobre mostra uma terra desolada e parada no tempo.
Vamos ver o que o autor diz mais adiante: “Em algumas visitas que tenho feito à terra natal de Nísia Floresta, o que mais me surpreendeu foi a decadência implacável de um dos mais antigos núcleos da população do Rio Grande do Norte, em contraste flagrante com os elementos naturais favoráveis à produção de todas as sementes alimentícias ou de plantas adequadas a fins industriais”.
Outro detalhe curioso ocorre quando o autor comenta sobre a degradação da lagoa, cuja microfauna e microflora veem-se depredadas pelas redes de pesca. O texto parece ter sido escrito hoje, pois os nativos atuais têm os mesmos discursos. Todos falam do passado de piscosidade dessas águas nas épocas dos avós. Vejam que, muito antes de seus avós e bisavós, já se notavam essa decadência.
Esse texto é importantíssimo porque retrata com realismo uma época. O autor elogia o patrimônio natural de Nísia Floresta, mas não se priva de observar os sinais de destruição da lagoa.
Esse trecho nos faz lembrar um dos livros de Nísia Floresta denominado “A Lágrima de Um Caeté”, o qual, diferente dos livros de cunho indianista, que mostravam um índio herói, parecido com os cavaleiros medievais, mostra um índio derrotado e triste por ver a sua natureza sendo destruída.
Revejam o que o autor escreveu: “A própria lagoa tem apresentado deficiências no tocante a quantidade de fauna ictiológica, evidentemente prejudicada pelos métodos de pescaria impróprios à defesa das espécies em concorrência, com a falta de limites do tempo em que podem ser feitas. Se é certo, como ali se afirmaram, que a sua profundidade não diminuiu nem modificou a potabilidade da água, não há como negar os prejuízos advindos à produção e desenvolvimento dos peixes e saborosos camarões, hoje, menos famosos do que em tempos idos”.
Adiante é possível verificar um fato histórico, sobre a famosa cheia de 1924, comentado até hoje. Nesse episódio está implícito um fenômeno que não se restringiu apenas a lagoa Guaraíras, mas que abarcou a lagoa Papari, ou seja, a salinização de suas águas.
Outro detalhe importante – não contido no texto – deve ser trazido à tona para ajudar-nos a entender melhor. Trata-se de outra famosa cheia, a de 1974, a qual deixou rastros parecidos com os de 1924. Tudo isso influiu nas águas da lagoa Papari, principalmente no que se refere ao seu assoreamento. Tenho slides de época. É inacreditável como as águas chegaram até próximo ao quintal da casa onde hoje mora a professora Ana Barros. Da Floresta ao Porto tudo ficou submerso.
Vejamos o que o autor escreveu: “Enquanto sua rival, lagoa de Guaraíras ficou inteiramente salgada, depois da cheia catastrófica de 1924, que alargou a barragem de Tibau, numa extensão de duzentos metros e os famosos camarões de Arês, primitivamente idênticos aos de Papari, foram substituidos pela espécie Vila França, pertencente à fauna marítima a lagoa lendária continuou a criar os mesmos e variados peixes, embora diminuídos no tamanho, pela impropriedade das redes empregadas nas colheitas, cujas malhadas são tão apertadas que, com peixes maiores, se acumulam piabas minúsculas, na proporção de muitas centenas de quilos”.
Vejam como é interessante o trecho abaixo, quando o autor dá uma puxada de orelha no povo de Papari: “Não se esqueçam os habitantes de Papari de que as suas terras agrícolas proporcionalmente à área total, representam vantagens inatingidas nos mais férteis municípios do Estado”.
Ele pede que as pessoas sintam remorso por serem donos de terras tão ricas, que n’outros tempo eram repletas de roças exuberantes, se resumir em pasto para gado. Curioso é que hoje (2014), nem para pasto vem servindo. São muitas as áreas cujo mato se reinstaurou. Boas partes das terras estão legadas ao nada. Isso é de causar realmente remorso, principalmente por saber que são inúmeros os programas do Governo Federal para incentivo à agricultura, inclusive para o pequeno produtor.
O autor só falta dizer que quisera o povo do sertão ser dono de tão férteis terras. Nenhum município potiguar chega próximo de tamanho potencial.
Veja o que o autor diz: “Reflitam que a quase totalidade dessa área, é bastante irrigada graças ao milagre das vertentes procedentes de camadas profundas de sub-solo. Contemplem com remorso, essas terras, outrora de lavouras alimentícias e, hoje, transformadas em zona de pastoreio em prejuízo da saúde da população e economia coletiva”.
Outra informação histórica emerge no texto, quando ele se refere aos engenhos. É válida uma observação. O município de Nísia Floresta já passou por várias mudanças em suas divisas territoriais, não apenas em 1853, mas, inclusive, no início do século XIX.
Por tal motivo não estranhe quando ele lista os engenhos “Dedo” e “Ribeiro” como situados em Papari. Naquela época realmente estavam em terras paparienses. Em caráter de observação temos o “Monte”, o qual, com a última divisa territorial, ficou metade de São José de Mipibu e metade de Nísia Floresta, conforme pode ser constatado.
Constate o que ele escreveu: “Não faz muitos anos que, no município de Papari, safrejavam quarenta e quatro engenhos, embora, subordinados à forma das almanjarras. Lá estão ainda visíveis, as ruínas dessas fábricas de açúcar mascavo, substituídas, apenas, pelos engenhos a vapor “Dedo”, “Descanço”, “São Roque”, “Monte”, e “Ribeiro”.
Uma curiosidade realmente surpreendente ocorre quando – referindo-se a famosa “Cachoeira” o autor diz: “Resta ainda acrescentar um fator importante ao desenvolvimento econômico do município, objeto destas linhas apressadas. Quando ali estive a última vez, um antigo papariense me informou, que na velha propriedade denominada “Cachoeira”, pertencente ao Sr. Inácio Lopes de Macedo, existe uma queda d’água que, devidamente aproveitada, pode produzir, num mínimo, cento e vinte cavalos de força”.
Vejam como é animada a suposição do potencial energético da referida cachoeira. Não podemos desacreditar no informante, pois há muito o que se considerar. Assim como o autor fala da degradação das lagoas Papari e Guaraíras, a “Cachoeira” também é alvo de degradação digna, sim, de remorso.
Nativos mais idosos me relataram que a vazão de água da mesma era incomparável à atualidade. Falam do “ronco da Cachoeira”, ou seja, do barulho das suas águas. Há quem afirme que a altura da queda d’água era três vezes superior a atual.
Hoje essa atração turística está limitada a um pequeno filete, embora sua beleza natural é inegável. Certamente o fato de o proprietário impedir a entrada de visitantes tem contribuído ao menos com a manutenção do que restou
E assim o autor conclui: “Essa cachoeira é formada por um pequeno rio, tornado perene pela revência das lagoas “Urubu”, “Escura”, “Bom Água”, “Ferreira”, “Ferreirinha”, “Redonda” e “Redondinha”, fontes estas situadas à montante e à pequenas distâncias.
Vejam como são animadas as expectativas do papariense que informou o fato ao autor do texto: “O volume do rio aumenta bastante no inverno e a força prevista seria suficiente para iluminar Papari, São José, Arês e Monte Alegre. Não respondo pelo otimismo do informante, mas a indicação é bastante para determinar uma investigação concludente”.
Para encerrar, analisem a decepção do autor quando finaliza:
 Que falta, pois, para incentivar o progresso de Papari? Espero dos seus próprios habitantes a resposta adequada, que não pode ser outra senão: trabalho consciente, continuado e corajoso.
Veja como é inacreditável que passados 78 anos outras e outras pessoas, sejam nativos ou não, quando escrevem sobre Papari – hoje Nísia Floresta – continuam finalizando os seus textos da mesma forma. Todas estão erradas?


CONHEÇA AGORA A TRANSCRIÇÃO DO TEXTO

TERRAS DE PAPARI
“Papari é um município de clima benigno e de sedutoras paisagens. A terra é dadivosa. O vigor da vegetação constitue índice de fertilidade convidativa a várias atividades agrícolas compensadoras.
A lagoa, que é uma tradição da alegria, do bom humor e da paciência resignada dos habitantes, explica, em parte, o atraso de uma comunidade esquecida de que sua prosperidade está na dependência imediata do trabalho agrícola mesmo pelos processos rudimentares usuais.
Em algumas visitas que tenho feito à terra natal de Nísia Floresta, o que mais me surpreendeu foi a decadência implacável de um dos mais antigos núcleos da população do Rio Grande do Norte, em contraste flagrante com os elementos naturais favoráveis à produção de todas as sementes alimentícias ou de plantas adequadas a fins industriais.
A própria lagoa tem apresentado deficiências no tocante a quantidade de fauna ictiológica, evidentemente prejudicada pelos métodos de pescaria impróprios à defesa das espécies em concorrência, com a falta de limites do tempo em que podem ser feitas. Se é certo, como ali se afirmaram, que a sua profundidade não diminuiu nem modificou a potabilidade da água, não há como negar os prejuízos advindos à produção e desenvolvimento dos peixes e saborosos camarões, hoje, menos famosos do que em tempos idos.
Enquanto sua rival, lagoa de Guaraíras ficou inteiramente salgada, depois da cheia catastrófica de 1924, que alargou a barragem de Tibau, numa extensão de duzentos metros e os famosos camarões de Arês, primitivamente idênticos aos de Papari, foram substituidos pela espécie Vila França, pertencente à fauna marítima a lagoa lendária continuou a criar os mesmos e variados peixes, embora diminuídos no tamanho, pela impropriedade das redes empregadas nas colheitas, cujas malhadas são tão apertadas que, com peixes maiores, se acumulam piabas minúsculas, na proporção de muitas centenas de quilos.
Não se esqueçam os habitantes de Papari de que as suas terras agrícolas proporcionalmente à área total, representam vantagens inatingidas nos mais férteis municípios do Estado.
Reflitam que a quase totalidade dessa área, é bastante irrigada graças ao milagre das vertentes procedentes de camadas profundas de sub-solo. Contemplem com remorso, essas terras, outrora de lavouras alimentícias e, hoje, transformadas em zona de pastoreio em prejuízo da saúde da população e economia coletiva.
Não faz muitos anos que, no município de Papari, safrejavam quarenta e quatro engenhos, embora, subordinados à forma das almanjarras. Lá estão ainda visíveis, as ruínas dessas fábricas de açúcar mascavo, substituídas, apenas, pelos engenhos a vapor “Dedo”, “Descansço”, “São Roque”, “Monte”, e “Ribeiro”.
Resta ainda acrescentar um fator importante ao desenvolvimento econômico do município, objeto destas linhas apressadas.
Quando ali estive a última vez, um antigo papariense me informou, que na velha propriedade denominada “Cachoeira”, pertencente ao Sr. Inácio Lopes de Macedo, existe uma queda d’água que, devidamente aproveitada, pode produzir, num mínimo, cento e vinte cavalos de força.
Essa cachoeira é formada por um pequeno rio, tornado perene pela revência das lagoas “Urubu”, “Escura”, “Bom Água”, “Ferreira”, “Ferreirinha”, “Redonda” e “Redondinha”, fontes estas situadas à montante e à pequenas distâncias.
O volume do rio aumenta bastantes no inverno e a força prevista seria suficiente para iluminar Papari, São José, Arês e Monte Alegre.
Não respondo pelo otimismo do informante, mas a indicação é bastante para determinar uma investigação concludente.
Que falta, pois, para incentivar o progresso de Papari?
Espero dos seus próprios habitantes a resposta adequada, que não pode ser outra senão: trabalho consciente, continuado e corajoso”. 
____________________________________________
REF. SOUSA, E. - O presente texto, dentre outros, foi encontrado num Sebo, pelo ex-governador norte-riograndense, Juvenal Lamartine, o qual teve o cuidado de recuperá-lo e trazê-lo para o RN.


domingo, 16 de março de 2014

DR. ANTONIO DE SOUSA, O 'POLYCARPO FEITOSA' - HISTÓRIA E BIBLIOGRAFIA - POR LUÍS CARLOS FREIRE




         Antonio José de Melo e Sousa, o Polycarpo Feitosa, nasceu aos de 24 de dezembro de 1867 no Vale do Capió, quando Nísia Floresta tinha o nome de Vila Imperial de Papari. É o filho mais velho do casal Antonio José de Melo e Sousa e Maria Emília Seabra de Melo e Sousa, os quais eram católicos fervorosos.
Seu pai, apesar de proprietário de grandes extensões de terras em Papari, e dono de escravos,  inclusive os Engenhos Capió e São Luiz, ocupava a função de tenente coronel da Guarda Nacional, espécie de secretário de segurança do estado – se comparamos à atualidade. Possuía fazendas em outros lugares, como São Tomé, Barcelona e no Pajeú.
O envolvimento futuro de Antonio de Sousa na política certamente teve influência do seu pai, pois o mesmo era chefe do Partido Conservador e foi presidente da Câmara Municipal.
Ali mesmo, no Engenho Capió nasceram os treze filhos do casal, sendo dez homens e três mulheres: Antonio José, José Augusto, Luís Augusto, Francisco José, Brás Florentino, Celso Victor, Anísio Otávio, Tarquínio Bráulio, Cícero Franlin e Augusto César, Ana Luísa, Maria Amélia e Isabel Emiliana. Os primeiros anos escolares foram feitos em Papari e São José de Mipibu. Depois foram estudar em Natal.
         Dr. Antonio de Sousa, o futuro Polycarpo Feitosa foi único a estudar no Recife. É interessante ressaltar que ele tinha um tio, por parte de pai, Dr. Tarquínio Bráulio de Sousa Amaranto, jurista, cuja história estudaremos em outra ocasião. Era padrinho de Antonio de Sousa, portanto achou melhor levá-lo para Recife, onde concluiria o curso primário e só sairia de lá após se formar em Ciências Jurídicas e Sociais.
Era o ano de 1876, e no lombo de um cavalo e com dois jumentos carregando a bagagem e comida, saíram tio e sobrinho rumo à terra de Nunes Machado. Foram oito dias entre Papari e Recife. Viagem cansativa, mas naquela época não existia a estrada de Ferro, a qual seria construída em 1881. Era normal andar de cavalo, fosse rico, fosse pobre. Ao menos nisso eram iguais os viajantes que cruzavam as estradas pelo Brasil a fora. Tio e sobrinho se abalaram até Natal e embarcaram na Companhia Pernambucana. Chegaram em Recife na tarde de 9 de novembro de 1876.
         O garoto Antonio de Sousa, nunca havia saído de Papari. A surpresa foi grande quando chegou em Recife e viu o trenzinho de Caxangá (FOTO), apitando, no dia seguinte à sua chegada. O máximo que ele conheciam eram os carros-de-bois, as carroças e as carruagens de Papari, todas movidas a força animal. A admiração foi grande, pois Recife era uma das cidades mais populosas e movimentadas do Brasil. Os bondes, o trem, as carruagens, as seges se entrecortavam numa badalada movimentação.
Trenzinho Caxangá - Recife-PE.
         A saudade da família foi grande. De repente, o menino esperto e inteligente, que já aos oito anos encantava a todos recitando de cabeça os versos de Luís Gama, publicados no jornal Correio do Recife, trazidos pelo tio,  teria que sobreviver em meio a pessoas adultas, diferente do ambiente cheio de calor maternal.
         Dr. Tarquínio era jurista e vivia em trânsito constante por outras paragens e províncias. O pequeno Antonio de Sousa foi matriculado no Colégio São Tomás de Aquino, onde estudou apenas três meses. Em seguida foram para a Corte, no Rio de Janeiro. Ali ele vivenciaria uma das suas experiências inesquecíveis, tendo conhecido pessoalmente o Imperador Dom Pedro II, em companhia do tio durante um importante evento.
Dom Pedro II e Imperatriz Teresa Cristina, sua esposa.
         Na corte Antonio de Sousa frequentou três estabelecimentos de ensino, entre os quais, o São Salvador. Em 1877 retornou para Recife e foi matriculado no Ginásio Pernambucano e pouco tempo depois no Dois de Dezembro, em 1879.
No período entre 1881 a 1884 foi matriculado, em regime de internato, no Colégio Sete de Setembro. Todos esses estabelecimentos em que ele estudou mantinham regimes rígidos, muito comuns àquela época, como isolamento, “bolos”, dentre outros castigos. Para quem não sabe, bolos eram pancadas dadas nas mãos com um objeto chamado “palmatória”. Imagine um pirulito gigante, todo de madeira, com uns sulcos no meio. 
Ginásio Pernambucano - Recife - PE.
 Bastava a criança errar que tomava bolos, ou sejam, pauladas nas mãos. Mas o tempo foi passando e, agora jovem, Antonio de Sousa conseguiu um verdadeiro feito nesse referido educandário: substituir o professor no curso primário e ministrando aula de Português do curso secundário.
Palmatória original, usada até pouco tempo em muitas escolas - Era a forma "educativa" de punir o aluno que errava uma tarefa.
         Logo em seguida iniciou-se na Faculdade de Direito de Recife, formando-se em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1889. Retornando para o Rio Grande do Norte, ocupou o cargo de promotor público, na comarca de Goianinha, de 1890 a 1892. De 1892 a 1895 exerceu o cargo de Diretor Geral de Instrução Pública, ao lado do mandato de deputado ao Congresso Legislativo do estado, 1892/1894. De 1895 a 1899, foi procurador da república, seção do Rio Grande do Norte. Ainda em 1899, foi nomeado secretário do governo do estado, ocupando, em 1900, o cargo de procurador geral, com assento no Superior Tribunal Federal de Justiça.
         Eleito governador em 1907, governou até 1908. Eleito senador da república, na vaga aberta com o falecimento do Dr. Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, voltou, mais tarde, a exercer o cargo de governador, no período de 1920 a 1924, presidindo, portanto, as grandes festas do primeiro centenário da “Independência do Brasil.
         Deixando o governo, foi nomeado Consultor Jurídico do estado, cargo em que se aposentou, em 1935. A Revolução de 1930, com todo um processo de vindictas e violências, desmanchando reputações e entronizando novos deuses, não dispensou os seus serviços, chamando-o a colaborar nas Interventorias Federais do Comandante Hercolino Cascardo e Dr. Mario Leopoldo Ferreira da Câmara, nas quais assumiu o governo oito vezes.
Escola Normal - Mossoró-RN.
         Luís da Câmara Cascudo, resumindo a sua ação à frente do Governo do estado, diz textualmente: “Criou a Escola Normal de Mossoró, decreto nº 165, de 19 de janeiro de 1922, instalada a 2 de março do mesmo ano e equiparada à de Natal pelo decreto nº 698, de 16 de julho de 1934 (Interventoria Mario Câmara); a Escola Profissional do Alecrim, (24 de abril de 1922), com cursos de serralheria, marcenaria, sapataria e funilaria; a Escola de Farmácia de Natal, pela lei nº 498, de dezembro de 1920; e o primeiro Grupo Escolar do estado, “Augusto Severo”, inaugurado a 12 de junho de 1908, mas criado pelo decreto nº 174, de 5 de março de 1908. Em ambas as administrações interessou-se intensamente pela saúde pública, imprimindo um desenvolvimento notável a esses dois departamentos.
Grupo Escolar Augusto Severo - fica ao lado do Teatro Alberto Maranhão
         Criou a Diretoria Geral de Agricultura e Obras Públicas, pela lei nº 568, de 19 de dezembro de 1923. Suas mensagens são modelos de nitidez, coragem e fidelidade ao ambiente real, sem retórica e disfarces.
         Como governador do estado, durante as eleições presidenciais, em que saiu eleito o Dr. Artur da Silva Bernardes (FOTO), pleito disputadíssimo, manteve a mais absoluta imparcialidade e foi talvez o único chefe de governo que não influiu e não teve candidatos.
         São de louvar as suas ideias  sobre o problema agrário, corporativo, educacional, expostas nas “Mensagens”, documentos formalmente diversos da literatura convencional desse gênero inútil de promessas e explicações e promessas oficiais. Jornalista e escritor, tem publicado vários romances sob o pseudônimo Polycarpo Feitosa.
      Festejou condignamente o centenário da Independência Nacional, inaugurando a estátua da praça sete de Setembro e prestigiando a Semana da Pátria que foi imponente.
            Elevou a vilas as povoações de Parelhas (lei 478, 26.11.1920), e a de Barriguda com o nome Alexandria (l n. 572, de 3 de dez. de 1923) e à cidade a vila de Lages (l. n. 572, de 3 de dez. 1923).

Alexandria - RN
Lajes - RN.
         O elogio do Dr. Antonio de Sousa está na verdade integral destes períodos com que se despediu dos deputados estaduais (mensagem de 1º de novembro de 1923): “Nunca um magistrado recebeu pedidos da administração nem mesmo quando interesses do estado se debatiam; nunca um professor foi nomeado ou removido por exigência ou solicitação de políticos; nunca o serviço de arrecadação das rendas esteve sujeito a conveniências ou influências dessa espécie. Por isso algum dissabor deve ter havido, mas os funcionários estavam seguros e os serviços se faziam com desassombro”. (Governo do RN, pags. 70/71).
         Intelectual dos mais brilhantes, Antonio José de Melo e Sousa começou a sua vida de imprensa muito cedo. Ao lado das primeiras leituras, veio infalivelmente o desejo de escrever. Iniciou-se pelo logogrifo, em que era habilíssimo, ao contrário dos que começavam fazendo versos. Estudante de geografia, comprazia-se em escolher nomes de cidades russas e paulistas, por sinal muito longos, cheios de consoantes e vogais, dos quais formava nomes de acidentes geográficos, rios, cabos, montes, ilhas. Desse inocente exercício passou aos artigos, escrevendo no jornalzinho do seu amigo Laurentino Vitoriano de Borba Cavalcanti, O Republicano, em que se iniciou. Estimulado por esse, trabalho de iniciação literária, fundou também o seu jornal, A Ideia, manuscrito, como o do seu colega. Daí passou à letra de forma, colaborando no jornalzinho – O Tentamen, órgão do Comício Literário, sociedade de calouros, que tinha como redatores e colaboradores Macedo França, Gervásio Fioravanti, Pacífico dos Santos, Luís Seráfico, Anísio Dantas, Pedro Paulo, além de outros. “Os primeiros artigos n’O Tentamen, diz ele, eram, já se vê, referências, variações, presunções sobre coisas lidas”.
         Na sua província, colaborou na Gazeta do Natal, - n’A República, no Almanaque do RN, na Revista do Rio Grande do Norte, n’O Lavrador, na Revista do IHGRN, no Diário de Natal, além de outros de reduzida e esporádica publicação.
         Escritor, jornalista, poeta, jurista, historiador, contista e romancista, Antonio José de Melo e Sousa dedicou-se principalmente ao conto e ao romance de costumes, escrevendo e publicando vários livros de ficção entre os quais se destacam Flor do Sertão, 1928, Gizinha, 1930, Alma Bravia, 1934, Encontros do Caminho, 1936, Os Moluscos, 1938 e Gente Arrancada, 1941, além de outros.
         Grande parte de sua obra literária, publicada em jornais e revistas da província, permanece dispersa, à espera de quem, amorosa, e diligentemente a recolha, dando-lhe feição duradoura e permanente.
         Este volume, que o Departamento de Imprensa do estado faz publicar, em colaboração com a Academia Norte-Riograndense de Letras e o IHGRN, na passagem do primeiro centenário do seu nascimento, representa o primeiro passo, no sentido de resgatar uma dívida que o RN e o povo têm com uma das maiores figuras da sua história política e literária.
         Antonio José de Melo e Sousa, “retraído por índole e modesto por necessidade”, como costumava dizer, escreveu quase toda a sua obra sob pseudônimo de Polycarpo Feitosa, utilizando ainda os de Lulu Capela, Francisco Macambira, Johannes da Silva, Antonio Josino de Tal e Coisa e a primeira inicial do seu próprio nome. Poucas vezes assinava Antonio de Sousa. Nos atos oficiais assinava com todas as letras, Antonio José de Melo e Sousa.
         Rômulo Chaves Wanderley, perguntando-lhe certa vez, desde quando e porque usava o pseudônimo Polycarpo Feitosa, respondeu textualmente: “desde 1897 que escrevo com este nome”. E acrescentou, fazendo blague (???): “É menos banal que o meu próprio. Há tantos  Polycarpo Feitosa por aí... Os arquivos da polícia estão cheios deles”...
         Raimundo Nonato da Silva, fabuloso contador de “casos” da história norte-riograndense, registrou, em uma de suas crônicas, o conceito que o matuto Vitorino da Caeira fazia dos homens públicos do estado, dizendo: “no RN só há dois homens: Felipe Guerra, pela inteligência, e Antonio de Sousa, pela honestidade”...
         Governador do estado, Antonio José de Melo e Sousa era, como em tudo, de uma austeridade estarrecedora. Conta-se que, chegando, certa vez, em casa, em dia de aniversário de uma de suas irmãs, esta mostrou-lhe um presente que havia recebido de um alto comerciante de Natal. O Dr. Sousa, olhando o objeto, determinou incontinente: “devolvo-o”!
         Dois ou três dias depois, voltando de Palácio, disse à irmã:
“Está vendo, aquele presente tinha endereço certo. O seu generoso doador queria um favor do Estado que eu não lhe podia conceder. Indeferi o seu requerimento”.
Era assim Antonio de Melo e Sousa, um homem de bem, um cidadão da República, dos mais austeros, dos mais limpos, dos mais puros, dos mais nobres, dos mais justos, dos mais clarividentes, dos mais argutos, dos mais cultos, dos mais patriotas, dos mais amigos da sua terra e do seu povo.
Honras lhe sejam dadas, na passagem do primeiro centenário do seu nascimento. E que os seus atos, os seus gestos e as suas atitudes sirvam de exemplo à mocidade de nossos dias para que assim possa servir também ao RN e Brasil.
Antonio J. de M. e Sousa faleceu na cidade do Recife, no dia 5 de julho de 1955, sendo sepultado em Natal, no cemitério do Alecrim.

NOTAS AVULSAS

O texto abaixo foi publicado no Jornal do Comércio, em Recife, em 1967, escrito por Nilo Pereira, o qual também deixou alguns escritos sobre Nísia Floresta. Coincidentemente, ontem, dia 15 de março de 2014, à tarde, estive no Cemitério do Alecrim – na tentativa de localizar o túmulo do Dr. Antonio de Sousa e acabei encontrando o túmulo de Nilo Pereira.

“Há alguns anos falecia no Recife o Dr. Antonio José de Melo e Sousa. Governou duas vezes o estado do Rio Grande do Norte. Conheci-o governador – alto, hierático, extremamente míope, talvez um tanto cético, retirou-se para Recife; aqui vivia recolhido como um asceta, lendo, meditando, escrevendo. A morte o colheu no dia 5 de julho de 1955, leio uma anotação feita no seu livro “Dois Recifes – com sessenta anos no meio”, Imprensa Industrial, Recife – 1945.
Desse livro é que eu desejo falar. Daquele homem de raras conversas – ora essa, pelo menos, a impressão que nos dava, à distância – não se podia esperar um livro de bom humor, leve, irônico e sutil. Parecia-nos que ele era severo demais para tanta leveza. E, no entanto, ágil na pena, essas suas memórias quase nos lembram o Visconde de Santo Tirso.
Os dois Recifes são os da adolescência e da velhice. Na adolescência cursou o colégio do Dr. Barbosa, do qual nos deixa uma forte pincelada, quase impressionista. E da velhice, o retrato conventual do tempo decorrido, porque ele o compôs com as tintas quase religiosas da lembrança. Escreveu o seu livro como quem se recolhe para alguma oração em silêncio, diante da lâmpada votiva.
O Recife do último quartel do século XIX é a sua maior vivência. Sua descrição chegada de Nabuco, com um preto de joelhos, na rua a louvar o tribuno da Abolição, é todo um Recife como o podemos imaginar agora. E os vivas que foi obrigado a erguer a José Mariano – sob pena de severa reprimenda – são alguma coisa que fica entre o fanatismo da multidão e o seu terror inicial diante da política.
Veio depois a quietude no Espinheiro, onde residiu por último, com as lembranças amáveis que estão no seu livro, hoje esgotado. Por que não o reeditam?”

EM MEMÓRIA DE UM ESCRITOR

A Academia Norte-Riograndense de Letras, juntamente com o Instituto Histórico e Geográfico, esteve em sessão solene (28 de Dezembro), para comemorar o centenário do nascimento do Dr. Antonio José de Melo e Sousa que, em 1897, adotou o nome literário de Polycarpo Feitosa. Em entrevista concedida a Rômulo Wanderley, jovem repórter d’A República (17/3/40) dizia que achava o seu nome próprio banal e muito conhecido, especialmente na polícia. “Há tantos Antonio de Sousa por aí. Os arquivos policiais estão cheios deles”. Declarou que escrevia por duas razões: não ter outra ocupação e para estimular os moços.  Já havia publicado Jornal da Vila (1939), sexto livro depois de “Flor do Sertão”, 1928, “Gizinha”, 1930, “Alma Bravia”,1934, “Encontros do Caminho”, 1936 e “Os Moluscos”, 1938.
O Dr. Antonio de Sousa chamava os seus livros “livrecos”. Suas notas literárias eram escritas em grego (informa o repórter) para livrar-se dos curiosos. Nesse tempo, há vinte e nove anos, havia críticos “tantos quantos os poetas, mas a maior parte é de café”. Insistia em dizer que apenas “empurrava” os outros para a frente, pois a sua idade não era mais de ambições. Achava que Ferreira Chaves e Alberto Maranhão em seus primeiros governos foram exemplos para a “gente que lia e escrevia”, relembrando a época do Grêmio Polimático e da Revista do Rio Grande do Norte. Referindo-se ao valor da gente nova, citava Cascudo, “trabalhador como ninguém, que, além das suas ocupações na secretaria de que é chefe publica livros e mais livros, mantem seções na imprensa diária e traduz obras importantes”.
         Polycarpo Feitosa rendia  homenagens aos grandes artistas da pintura e da escultura assim como os notáveis valores da imprensa ilustrada. Eram vistos no seu gabinete de trabalho do “Retiro dos Cajuais”, bustos em longa de Virgílio e Dante e telas de Leonardo da Vinci e de Murilo enviadas pela L’ILLUSTRATION, de Paris, de que foi assinante por mais de trinta anos. A outra face do mesmo homem, o político, o administrador, Antonio de Sousa esteve efetivamente no governo do Estado duas vezes e, interinamente, oito vezes. Mas, fugindo das ruas, procurava resolver no seu retiro os problemas da administração pública e se entregava à leitura dos escritores antigos e novos e tomando conhecimento das coisas da vida social, anotando o que lhe convinha para os romances numa época em que um beijo público entre namorados provocava escândalos (Gizinha) e o chique nos salões era o fox-trot, o tango e o maxixe. Tempo em que os espectadores de cinema e teatro saiam uns antes de terminar a sessão a fim de não perderem o bonde, quase como hoje com as lotações. O crítico e escritor literário Esmeraldo Siqueira está realizando um estudo de Polycarpo Feitosa através das anotações das suas leituras e o escritor Manuel Rodrigues de Melo já entregou para a divulgação literária do Departamento de Imprensa do Estado um interessante trabalho sobre o velho escritor, cujo centenário de nascimento foi brilhantemente comemorado pela Academia que preside. (Danilo – Diário de Natal).
        
         A “VAIDADE” DO OBSCURANTISMO LITERÁRIO MATOU A OBRA LITERÁRIA DE MELO E SOUSA

         (Publicado no “Diário da Noite” do Recife, em 30/08/56 - Cópia de acordo com o texto original)

         Um anúncio de jornal levou-nos à rua Geraldo de Andrade, n. 159, no Espinheiro, residência das snras. Maria José e Isabel de Melo e Sousa, irmãs de Polycarpo Feitosa, pseudônimo em que assinava os seus grandes livros o escritor Antonio José de Melo e Sousa, personalidade marcante da intelectualidade e da vida pública do Rio Grande do Norte.
         A nossa presença ali, como acima dissemos, fora sugerida por um anúncio alfabético onde se oferecia à venda uma estante para livros, em madeira de lei, por preço de ocasião.
         Assim, com a finalidade tão somente de realizarmos, se possível, uma transação comercial, abalando-nos para o endereço indicado, onde fomos recebidos cordial e urbanamente pelas simpáticas senhoras, com as quais efetivamos o negócio em vista e, posteriormente, outro.
                        
         ENCONTRO E HISTÓRIA

         Amante contumaz e admirador inveterado de livros, porém, não nos passara despercebido uma outra grande estante, com livros artisticamente encadernados e lombarmente titulados, da qual, curiosa e amorosamente nos aproximamos, vislumbrando, entre nomes de autores nossos conhecidos, o para nós absolutamente estranho Polycarpo Feitosa, assinava os seguintes volumes: “Flor do Sertão” (romance – 1928); “Gizinha” (romance – 1930); “Alma Bravia” (romance – 1934); “Encontros do Caminho”, (contos – 1936); “Os Moluscos” (romance – 1938); “Jornal da Vila”, (poemas – 1939); “Gente Arrancada”, (romance – 1941); E Dois Recifes, (memórias – 1945).
         Confessamos, então, às senhoras presentes, a nossa total ignorância sobre o estranho autor daqueles volumes, de quem nunca ouvimos falar e indagamos-lhes quem era Polycarpo Feitosa. E ouvimos entre comovido e emocionado, já agora com outras intenções e outros propósitos, a bela história de um homem simples, generoso e sem vaidades literárias ou políticas.
         Polycarpo Feitosa, que encontráramos agora espiritual e postumamente, pseudônimo de Antonio José de Melo e Sousa, fora um expoente da intelectualidade de sua terra e lá exercera os cargos mais representativos da sua vida pública. Estávamos nós, pois, diante de duas irmãs do grande escritor e homem público-potiguar, já agora sob a emoção literária que nos sugeria a sua vida e a sua obra, vida e obra que refletem um grande espírito e uma alma de escol, servidos por uma inteligência privilegiada e uma cultura pacientemente acumulada.

         DADOS BIOGRÁFICOS

         Dr. Antonio de Sousa repousa, hoje, no Cemitério do Alecrim, por vontade sua, expressa nos últimos instantes de sua vida.  Vinte e seis anos de sua vida foram vividos em Recife, representados por uma parte de sua mocidade, quando estudante de Direito, e na velhice, quando voltou em busca de saúde. “Dois Recifes” foi a sua última obra. Vejam o que os recifenses escreveram sobre ele:
         “Antão Josino, (por certo Melo e Sousa), velho funcionário público aposentado daquela deliciosa terrinha, que é o ápice do Nordeste, (Nordeste por definição mesmo, pois só ela tem costas para o norte e leste), viveu uma dúzia de anos no Recife, desde o último da Escola primária até o da Academia, ali pela segunda metade do século passado. Depois da conquista, a vida puxou-o para a sua terra, como a tantos outros; nela vegetou cincoenta e tantos anos e agora, há uns meses, pela justificável gana de viver mais um pouquinho, voltou à luminosa cidade em busca de saúde”.

VIDA PÚBLICA
         Tanto realizou e providenciou em prol da instrução e da educação, que foi cognominado dito período de “quadriênio pedagógico”.
         Morreu pobre, deixando uma “mincha” pensão para as irmãs, com quem sempre viveu e que foram sublimes de abnegação e renúncia, assistindo diuturnamente, insones e cansadas, os seus últimos alentos de vida.

ANTONIO DE SOUSA QUASE FEZ PARTE DE UMA ANTOLOGIA ESCRITA POR GRACILIANO RAMOS

Ninguém conhecia Polycarpo Feitosa. E, a propósito, vale ressaltar, aqui, o depoimento de R. Magalhães Junior, o biógrafo de Machado de Assis e de tantos outros sucessos da literatura contemporânea. Conta-nos Magalhães Junior como, certo dia, por acaso, caiu-lhe nas mãos um livro de contos assinado por Polycarpo Feitosa. Leu-o e achou-o um delicioso contista, confessando ainda que não teria hesitado, se o conhecesse, em indica-lo para uma antologia de contistas brasileiros que Graciliano Ramos organizava e para a qual lhe solicitara alguns nomes. E continua Magalhães Junior nos contando como, tendo encontrado em alguns de seus contos a existência de possibilidades dramáticas, o que muito lhe interessava como teatrólogo, pois pretendia proceder à dramatização de um dos seus contos que muito apreciara, precisando, para isto, de sua autorização, pôs-se em campo, então, para indicar e descobrir Polycarpo Feitosa, que inteiramente desconhecia, tendo-o localizado logo, em virtude “das referências a nomes geográficos identificáveis no mapa da terra potiguar” e encontardas nos seus contos, e por intermédio dos deputados e senadores do RN.

ATITUDE LOUVÁVEL

         Bem significativa, afinal, fora a atitude literária de Antonio de Sousa, sobretudo em uma época onde os primários das letras, eunucos de espírito e de cultura, cínica e sencerimoniosamente, surgem-nos fários e bestas nos suplementos literários, nas revistas e até mesmo em livros. Chegamos à evidência, a essa altura, de que os limites de espaço que nos foi reservado para estas notas não comportam considerações mais demoradas.
         Assim, com grande pesar da nossa parte, não abordaremos outros aspectos que julgamos significativos da vida pública e literária de Melo e Sousa, deixando para fazê-lo em outra oportunidade, quando talvez possamos estudar a sua personalidade individual e literária menos superficialmente.
         Tenta-nos porém, a solidão em que sempre viveu o romancista da “Alma Bravia”, sugerindo-nos algumas linhas sobre esse seu comportamento diante da vida. Era o autor de “Gizinha” um autêntico e consumado solitário, um místico e contemplativo no lato sentido do termo como o foram Anthero de Quental, Jean Jaques Rousseau e outros ilustres solitários.
         O primoroso romancista e “conteur” admirável que se escondia com modéstia excessiva atrás de um pseudônimo era um introspectivo e, consequentemente, um volutuoso da solidão e do silêncio. E foi na solidão e no silêncio, no seu solar do Espinheiro, onde construíra o seu retiro e limitara o seu mundo, ao lado das irmãs queridas e dos seus livros muito amados, que mergulhou, serenamente, em uma noite de julho, no abismo da morte.
         BIBLIOGRAFIA DO DR. ANTONIO DE SOUSA – POR ORDEM CRONOLÓGICA

1902 –  QUESTÃO DE LIMITES COM O ESTADO DO CEARÁ – Empresa de A República – Natal.
1909 – EXPLICAÇÕES ELEMENTARES SOBRE A CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO RIO GRANDE DO NORTE – Tipografia de A República – Natal.
1916 – À MARGEM DUMA CONFERÊNCIA – Tip. De A República – Natal.
1925 – DISCURSO DE PARANINFO DA PRIMEIRA TURMA DE PROFESSORES DA ESCOLA NORMAL DE MOSSORÓ, a 15 de novembro 1924 – Empresa Tipográfica Natalense Ltda.  – Natal.
1926 – DOM PEDRO II – Conferência pronunciada no Colégio Pedro II, de Ceará Mirim – Tip. J. Pinto e Cia. – Natal.
1928 – FLOR DO SERTÃO (Costumes do Sertão do Rio Grande do Norte) – Tipografia de A República – 1928 – Natal.
1930 – GIZINHA – Tipografia do Anuário do Brasil – Rio de Janeiro.
1934 – ALMA BRAVIA (História do Nordeste Antigo) – Estabelecimento Gráfico Apolo – Rio – 1934.
1936 – ENCONTROS DO CAMINHO – Estabelecimento Gráfico Apolo – Rio.
1939 – OS MOLUSCOS – Oficinas Gráfica Renato Americano – Rio.
1941 – GENTE ARRANCADA – Estabelecimento Gráfico Friedrich Fuchs – Rio.

1954 – DOIS RECIFES – Imprensa Industrial – Recife – Recife.

sábado, 8 de março de 2014

GIZINHA - OBRA COMENTADA


GIZINHA - DE 'POLYCARPO FEITOSA' -  OBRA COMENTADA
POR LUÍS CARLOS FREIRE


      Gizinha é uma obra de ficção. Romance regionalista, publicado em 1930 sob autoria de Polycarpo Feitosa - pseudônimo de Antonio de Souza. A história de passa na Natal de 1928, permitindo ao leitor conhecer os hábitos, o comportamento social e político provinciano, os bairros badalados da época, como Tirol, Alecrim, Ribeira; os lugares frequentados pela sociedade, o serviço público, enfim ter uma ideia do contexto daquela época. Na realidade, Gizinha é uma obra ficcionista no aspecto novelístico, no âmbito da trama dos personagens, mas pincelada de realidades. Isso é constatado quando o autor menciona lugares, como o Palácio do Governo, bairros e ruas. Por outro aspecto são nítidas as suas referências a personagens políticos da época, embora ele não menciona nomes. Gizinha uma obra permeada por expressões e vocábulos típicos do interior potiguar.
      Na orelha da segunda edição do romance - publicado há oitenta anos - escreveram: " (...) A ficção era, para Polycarpo Feitosa, um instrumento de observação da vida social, de fixação de costumes coletivos. Ele construia os personagens com os modelos que a vida lhe fornecia. Foi assim que escreveu este romance, em que buscou uma compreensão mais profunda da alma feminina. Em geral, na ficção brasileira o homem está muito mais bem representado do que a mulher. Polycarpo Feitosa compreendeu a necessidade de uma reversão dessa perspectiva. O seu livro traz, por isso, uma contribuição nova à ficção brasileira. Só por esse ângulo já merece o interesse dos leitores e da crítica. Obedece à forma tradicional da novelística - o grão renovador que nele há é mais de temática , revelada no tratamento da figura de Gizinha, do que de recursos técnicos da arte de narrar. Emoção presente, poesia presente - uma prosa clara, ajustada aos objetivos do escritor. (...) Gizinha é assim um livro regional, do nível de D. Guidinha do Poço e tantos ouros romances que, escritos na província, hoje integram a literatura nacional."
      Gizinha é a forma carinhosa como é chamada Adalgiza, personagem principal, contando dezoito anos. 


Ela é filha do senhor Azevedo, próspero comerciante natalense de 54 anos, e da jovem senhora d. Regina, de 36 anos, casada desde os dezesseis. Eles são pais de um casal, sendo Renato, de dezesseis anos, o outro homem da casa
.

D. Regina debruçava toda vênia ao seu casamento, comportando-se com o devido respeito diante da sociedade atenta aos menores deslizes. Mas o amor verdadeiro parece ser apenas da parte do marido, o qual procura satisfazer os gostos da esposa com roupas, passeios próximos e certas regalias que lhe são possíveis.
      Nesse ofício de agradar a mulher e ficar retido ao comércio, descuidou-se de educar Gizinha nos moldes tradicionais e conservadores das famílias do seu padrão. Essa responsabilidade foi deixada para a esposa, a qual quebrou todas as regras. 


Gizinha tornou-se uma exceção dentre as moças natalenses de sua época, no que se refere aos hábitos modernos demais. Isso nos parece muito providencial, tendo o autor nascido na terra onde nasceu Nísia Floresta, cuja história assusta até a sociedade atual.
      Polycarpo Feitosa assim descreve o pai de Gizinha:
      "(...) Azevedo, mole e pávido diante da vontade ou dos caprichos da mulher, porque a amava e não dispunha de outro meio para obter que ela o tolerasse e vivesse em paz, era profundamente honesto, incapaz duma intransigência no capítulo da honra feminina, como num deslize da correção comercial; mas ainda por amor da mulher, tivera, desde a infância da filha, de abdicar da autoridade efetiva sobre ela, e a rapariga cresceu e se fez moça 'senhora das suas ventas', em que a mãe não pusera rédeas curtas, namorando desde os doze anos, vaidosa, galhofeira, até o limite em que só o instinto a detivera até então." (p.17).
      O trecho acima, se retirado isoladamente e exposto ao leitor atual, parece escrito hoje. Mas, devolvido ao seu contexto original, choca o leitor que espera obviamente algo mais condizente com o período em que foi escrito, onde a sociedade era muito mais apegada a tabus e preconceitos.
Nesse aspecto Polycarpo Feitosa surpreende o país com essa inovação de costumes. E continua surpreendendo a atualidade, pois muitas Gizinhas podem ser facilmente encontradas nas casas noturnas e baladas da Natal de hoje.


      A família reside na Avenida Rio Branco, numa espaçosa e elegante casa com mobília requintada e empregados à disposição. Ali o casal vive uma "monotonia conjugal", na expressão do autor, a propósito curiosa para um solteirão convicto que foi na vida real.
      O casal raramente se desentendia, salvo em casos de divergência de opinião, mas algo sutil. Os filhos eram poupados desses momentos. Ambos respeitavam o pai, mas a verdadeira obediência era dirigida a mãe, a qual - ardilosa - criava situações para que o marido pensasse - ou fingisse pensar - ser o dono da última palavra e de todas as decisões.
      Gizinha tem uma postura muito liberal, a ponto de atrair os olhares da sociedade natalense. Escolhia os seus próprios namorados e terminava os relacionamentos quando bem queria - costume nada comum para a década de 1928. 


De tradicional tinha apenas o hábito de tocar piano, tendo aprendido com bons professores. "Odiava a cozinha" e adorava dançar nos "bailes de casas amigas, nos do Natal Clube ou nos famosos maxixes políticos do Carlos Gomes, ela figurava entre as mais espevitadas dançadeiras de tango e de todas as palhaçadas de nomes anglo-saxônicos, cujos requebros e tremeliques, mais ou menos obnóxios, conhecia como profissional".
      Num desses bailes ela iniciou namoro rápido com Roberto Lima, o qual se distanciou da mesma por vê-la dois meses depois dançando com Julinho Silveira, rapaz de 23 anos, dado a raspar o bigode, praticar alteres, usar bengala e vestir belos figurinos, numa elegância de vitrine. Seus pais tinham consideráveis posses. 


Este escreveu para o Sr. Azevedo pedindo a mão de Gizinha. O pai não se opôs, mas se lembrou da figura de Roberto Lima, com o qual Gizinha se enamorou, ou melhor - na linguagem atual, "ficou", inclusive indagara a esposa sobre Cesário - amigo dele – ter perguntado se Roberto ia ser seu genro.


      Roberto, de uns 28 a 30 anos, não era rico, mas tinha suas virações e ganhava bem, inclusive ajudava dois irmãos de condição social bem inferior, pois eram órfãos. Muito bem articulado, tinha negócios em Natal e Recife. Apesar de namorador, era muito reservado.
      Na realidade Gizinha "não tinha outro intuito, além de divertir-se, sem muito vexame de se casar, e antes, como ela própria dizia, apenas o de gozar a vida enquanto era tempo". Quando admoestada por conhecidos e familiares dizia que eram invejosos e despeitados.
      Curioso é que d. Regina reprova a atitude do Sr. Azevedo, quando este diz que  Roberto é um bom partido para a sua filha "(...) um rapaz sério, com um bom emprego, e até metido na política". (...) Qual o rapaz sério que quererá para mulher uma moça, que todo mundo sabe que já namorou com fulano e beltrano?".

      É possível sentir a postura destoante da esposa - para os padrões da época - quando mesmo ouvindo o marido ressaltar as posses do pretendente e a opinião da sociedade sobre o comportamento da filha, ela o contradiz: "Isso não tem importância. Hoje não há ninguém que case com o primeiro que encontra, e deve haver liberdade de escolher".
      A reflexão de d. Regina revela o pensamento moderno de Polycarpo Feitosa, haja vista que as três décadas do novo século ainda conservavam meio intactos o costume do século anterior, no qual os pais escolhiam os pretendentes dos filhos. O autor escolheu os personagens Azevedo e d. Regina para fazer o contraponto entre o antigo e o moderno, dando um tempero interessante à obra. Se bem que a moralidade do Sr. Azevedo se dilui muito em alguns pontos, como se verá.
      Azevedo, apesar de conservador, parece manter uma postura meio isenta de responsabilidade sobre a educação da filha, mas jamais deixa de externar sua opinião diante da esposa que ri de suas colocações "(...) Bons tempos, em que uma filha ata e desata um negócio dessa ordem sem a mãe saber, nem aconselhar". D. Regina diz que ele é do tempo antigo.
      Sr. Azevedo tem o hábito de tecer reclamações inclusive sobre a roupa curta que a mesma usa: "(...) Adalgiza já anda com o vestido pelos joelhos, e por baixo só tem uma 'combinação' que não esconde quase nada". 



E aproveita para lembrar à esposa que ela também tem o mesmo costume da filha no tocante ao modo de se vestir. D. Regina solta altas risadas, reforçando a ideia que ela leva o marido em "banho Maria", satisfazendo os gostos da filha.
E os dela também.
      Essas e outras colocações de Polycarpo Feitosa permitem ao leitor perceber que d. Regina se projetava na filha e, quem sabe, queria estar fazendo o mesmo que ela. Ou pior!
      Julinho Silveira, o pretendente de Gizinha, estava encantado com a sua beleza e a queria como esposa. Ele se imaginava passeado com ela e despertando inveja e admiração nas pessoas. Isso dava-lhe satisfação e não despertava-lhe ciúmes, mas também já pensava, se casado, não permitir aquela disposição espetaculosa às danças em público por parte de Gizinha.
      Adriano Queiroz é um amigo íntimo de Julinho, o qual o visitava frequentemente, inclusive eram ligados também pelo futebol. 

Ao ouvir de Julinho Silveira a notícia de que iniciaria namoro com Adalgiza - contada com entusiasmo, como se fosse um trunfo - ficou surpreso com a admiração do amigo e pelo jeito esquisito como este recebeu a notícia.
      Julinho Silveira, percebendo, insistiu para que ele explicasse aquela reação. Após muita insistência, Adriano perguntou se ele não sabia que Gizinha tinha tido um "flirt" com Roberto Lima. Isso tinha causado muito comentário em Natal. E supôs que o relacionamento não fora um simples namoro, inclusive disse que viu os dois se beijando "numa varanda do Carlos Gomes" durante o intervalo de um concerto.
Para os costumes da época expor-se dessa forma era algo escandaloso, e nem as meretrizes o faziam em público, pois tinham lugares próprios.
      Ouvindo isso Julinho Silveira ficou sem palavras. Adriano entendia o seu alerta como uma atitude de amizade e não como delação. Ao despedir-se de Julinho, a mãe deste, d. Hortênsia, pergunta se Adriano já sabia da "cabeçada" que o filho havia dado, reprovando a relação dele com Gizinha. Tal postura era óbvia a qualquer mãe (não parecendo diferente até hoje).  Adriano desconversou e deixou o amigo ainda mais pensativo.
      Mil ideias povoaram a sua mente, temeroso de se tornar um homem desmoralizado. Temeu pela possibilidade de Roberto espalhar maledicências sobre Gizinha. Mas, embevecido de paixão, já encontrava desculpas, supondo para si mesmo que apenas Adriano havia presenciado tal beijo, e mais ninguém. Supôs que a sua amada permitira o beijo por ingenuidade. Ele sabia da postura de Roberto e via-o como um aproveitador. Mas algo era certeza: Julinho Silveira estava criando uma antipatia ferrenha pelo amigo.



      Tomado por mil pensamentos, Julinho Silveira pegou o bonde no ponto da Avenida Rio Branco e se abalou até o Tirol, onde morava Roberto Lima. Pretendia certamente ‘colocar os pingos nos is’. Eles eram amigos, mas ultimamente não estavam tão aproximados. No bonde se encontrou com o futuro cunhado Renato Azevedo, o qual se dirigia a um clube de futebol.
Julinho Silveira sempre o tratou de forma amável pelo fato de ser bem mais novo e, certamente, para conquistar o futuro cunhado. Mas o jovem, embora o tratasse bem e o respeitasse, não sentia muita simpatia por ele.
      Chegando ao seu destino, e já contando com alguns minutos de conversa, pergunta se o amigo sabia que ele pedira a mão de Gizinha em casamento. Roberto, sem manifestar surpresa e sem parabenizá-lo, diz que não sabia. Logo em seguida pergunta sobre o relacionamento de Roberto com Gizinha.



Roberto diz ter sido um simples "flirt", nada mais. Julinho o indaga se tinha sido realmente só isso, tendo a mesma resposta. Meio sem graça, muda de assunto e logo se despede, livrando-se daquela desconfortável conversa entre dois homens.
      Sr Azevedo via Julinho Silveira como um bom rapaz, filho de pais decentes e gente abastada. Reprovava o seu apego ao jogo valendo dinheiro, embora confiasse numa mudança futura. A esposa também não se opunha.
      No desenrolar da história é possível encontrar verdadeiras pérolas, como essa referência a Julinho Silveira: "(...) Acendeu o charuto, e como Renato se tivesse esgueirado, conforme o costume, logo depois do café, ficou só na sala de jantar, espichado numa cadeira de lona, fitando um quadro de frutas e legumes, a que o reflexo das lâmpadas dava tons de pintura futurista". (p.36). 



     Esse trecho estampa uma fotografia imaginária, ressaltando o advento do futurismo, haja vista o frescor da Semana de Arte Moderna. A propósito o modernismo está impresso na própria obra de Polycarpo Feitosa não apenas por referências óbvias, mas como um todo. Ele é modernista por criar um personagem com comportamento avançado para a época, embora precisamos constatar até onde vai esse modernidade.




Mais adiante ideias modernistas emergem novamente, veja esse trecho “(...) Tinha acabado o almoço, a copeira substituía a toalha pelo grosso pano de ramagens, sobre o qual Adalgiza alisou um estreito ‘caminho de mesa’, ornado de desenhos futuristas, pondo-lhe ao meio um alto e esguio vaso de vidro opalescente com rosas e dálias, circundadas de folhas e crótons e begônias”.
Os “desenhos futuristas” e o vaso “esguio” e “opalescente” não são mais que elementos do modernismo, impressos na decoração da casa daquela família rica e, de certo modo, moderna.



      Nota-se também nuanças de política contornando alguns personagens, como o Coronel Queiroz, o qual conhecia profundamente a crônica política de seu estado. Era amigo de velhas datas dos pais deles.



 A descrição desse personagem permite ao leitor suspeitar que Polycarpo Feitosa se referia a algum conhecido seu - ou quem sabe a si próprio - haja vista ter assumido vários mandatos políticos e cargos de confiança. Lembrando que ele era amigo pessoal da família “Maranhão”, destacando-se Pedro Velho.
PEDRO VELHO DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
 A propósito, em sua terra natal, Nísia Floresta, residia o bufento Coronel José de Araújo, interventor de Papari, homem autoritário, o qual, cometia desmandos sob proteção politica dos referidos oligarcas.
      Parece que o autor buscava inspiração para compor seus livros em fatos do próprio cotidiano – o que não é novidade – disfarçando alguns detalhes e características para não ficar muito óbvio. Isso não é perceptível apenas em Gizinha, mas em outras obras, em especial nos romances “No Tempo da República” e “Diário Dum Recolhido”.
      Coronel Queiroz tinha mais de sessenta anos e habitualmente aconselhava o casal nos momentos de desentendimento promovidos pelas pirraças e manhas de d. Regina. Como não podia ser diferente – e com muita sabedoria – quase sempre favorecia o Sr. Azevedo. Dava bons conselhos a d. Regina, mas ela nunca os seguia.
      Passeiam sutilmente pela obra Gizinha as personagens Margarida Lopes e sua filha Nair, moça de "linguinha afiada de que muita gente tinha medo" (p. 38), conselheira e confidente de Adalgiza



Quando esta diz sobre a carta com o pedido de casamento, Nair mal consegue disfarçar a inveja. Contava com 26 anos, sonhava com um príncipe encantado, mas recusava os poucos que apareciam. Até porque era meio desprovida de beleza. Para compensar vivia presa aos trabalhos manuais e arrumando inimigas dado a sua língua felina.
Seu pai fora homem riquíssimo, mas falira, deixando apenas a casa onde viviam e duas casinholas para aluguel.
      Em outro momento Polycarpo Feitosa escreve sobre um baile no palácio do Governo, "promovido por amigos em homenagem a outros amigos".



Para o evento fora convidada a nata da sociedade natalense. E a família do Sr. Silveira foi uma delas. O baile deu-se no mais alto requinte, com ornamentações e iluminações encomendadas em Recife, orquestra e comidas e bebidas finas.
      Ao descrever os cuidados com esse evento Polycarpo Feitosa dá uma alfinetada em governos anteriores quando diz: "(...) Para o provimento das despesas corriam subscrições pelo comércio e pelo funcionalismo, porque o 'Tesouro não entrava', conforme diziam ser de uso em obscuros tempos passados (...)".
      Polycarpo Feitosa descreve o baile com tanta perfeição e riqueza de detalhes que transporta o leitor para o luxuoso cenário, participando, contemplando e interagindo com as figuras presentes.



Curiosamente, não há como não se lembrar do conto de fada Cinderela, quando o autor comenta sobre o alvoroço provocado em Natal, desde o momento dos convites, a divulgação na imprensa, o luxo na ornamentação, os comes-e-bebes, as vestimentas, Adalgiza e as pessoas invejosas e fofoqueiras que a observavam, tais quais as filhas da ‘rainha má’ do citado conto. Até um "toucador" (espécie de salão de beleza) fora improvisado no palácio.
      Os homenageados - sua maioria - políticos, tinham seus nomes expostos em escudos pintados de dourado, colocados em locais estratégicos, com canhões de luz direcionados para os mesmos, dando uma impressão de serem de ouro. Quando chegavam eram recebidos ao som da banda. Todos os homens usavam "smokings".



Nota-se muitos excessos e glamour no evento em si. Tais bailes teriam sido comuns durante as gestões do governador Antonio de Souza?
      O evento parecia virar Natal de ponta cabeça, a ponto de mudar o ritmo do comércio – de olho nas vendas. Era um corre-corre de madames a procura das melhores lojas de tecido e das mais apuradas costureiras, ou "modistas".



E barbearias? Naquele tempo não existiam cabeleireiros do século masculino nos moldes de hoje - pelo menos em Natal. Existiam apenas barbearias para ambos os sexos, as quais podiam ser requintadas ou não. E os barbeiros tinham uma postura completamente diferente dos cabeleireiros atuais.



      Polycarpo Feitosa pulveriza muita ironia como: "(...) As lojas de fazenda não paravam de retalhar, nem as modistas de coser o que havia de melhor, se não na finura dos tecidos, pelo menos na grossura dos preços" p. 43). Outra vez informa ao leitor que no início do baile a orquestra tocava inicialmente a boa música "(...) desejosa de ressalvar previamente os seus créditos, possivelmente comprometidos pela posterior emissão de músicas 'de frege' (...)". Nota-se que naquela época já se reprovavam as músicas não muito agradáveis aos ouvidos mais apurados – como ocorre hoje. Eram as músicas de “frege”, as quais certamente divertiam a mocidade da época.
      O Sr. Azevedo compareceu com a esposa, os filhos e Julinho Silveira. Gizinha chamou atenção pelo vestido sumário e pela beleza inebriante, a qual ofuscava a pouca roupa. Alguns rapazes, cujo autor não lhes dá nome, comenta que Gizinha deveria ter vindo sem nada a usar apenas minúscula roupa.
Esse capítulo permite ao leitor conhecer, além do luxo das festas e o alvoroço da moda, os estilos musicais da natal de 1928. Absolutamente diferente de hoje, como se verá. Nota-se que a mudança foi grande! Sepultou-se todo um romantismo.
 Julinho, ansioso para ser o primeiro a dançar a valsa e exibir o troféu tão cobiçado, teve que aguardar a vez concedida ao cunhado.
      Ao som de um tango o casal começou a dançar e roubou todos os olhares, os quais, no dizer de Polycarpo Feitosa, "a expressão clara era de inveja". Nada mais despertava a atenção do público que olhava para os dançarinos com verdadeira contemplação.



 Veja como esse trecho nos remete ao conto infantil acima citado. Roberto Lima era um dos observadores, mas o casal não o percebera.
O autor, certamente para deixar claro o quanto era destoante o comportamento da personagem principal, ironicamente diz "(...) segundo a velha comparação chinesa, uma gota d'água não podia passar entre ambos". Gizinha, muitas vezes externara uma "leviandade infantil", provocando fantasias nos assistentes.
Quem seriam as Gizinha de hoje?
      Para ferver mais o tempero da história Polycarpo Feitosa faz surgir nesse baile outro personagem: "José de Castro, considerado um tanto filósofo", de pouco mais de trinta anos.

Algumas de suas características também parecem ser a do próprio Polycarpo Feitosa, este é descrito nos anais da história como enérgico e de hábitos incomuns. Alguns até exagerados.
Homem de honestidade inquestionável e altamente crítico. Sobre tal postura narram-se vários episódios interessantes. Quando governador guardou na garagem do palácio o carro oficial que deveria ser para o seu uso. Retirou a bateria para que nenhum desavisado bancasse o esperto.
Num dos seus relatórios de governo gaba-se de nunca ter perseguido funcionários públicos, transferindo-os para lugares distantes, principalmente desafetos políticos.
      Mas vamos ao romance. A descrição de José de Castro é tão interessante que merece ser transcrita: "(...) Era um amigo de Julinho, José de Castro, considerado um tanto filósofo, apesar de contar pouco mais de trinta anos, empregado numa repartição qualquer, descrente de tudo, dizia muito sério, menos na honestidade feminina e da altivez dos homens.
      Tipo dos mais pitorescos de Natal, tanto pelas atitudes quanto pelos paradoxos, todo o conheciam, mas da sua vida particular apenas constava que não bebia senão água, comparecia indefectivelmente à repartição em todos os dias úteis do ano, e... era solteiro, mas não solitário. Dizia-se também que se acidentalmente, em reunião de rapazes, aceitava um copo de cerveja, perdia logo a cabeça e mostrava 'uma linguinha feroz', mas só para os homens.
Desprovido de pretensões a elegância, apresentava-se todavia com a sua melhor farpela, um terno, já bastante sovado, de jaquetão, com umas calças muitos curtas, abaixo das quais umas meias brancas saiam de sapatões escovados havia mais de um mês.
      Sem nada de romântico, apesar do aspecto boêmio, José de Castro era um remanescente daquela antiga casta de empregado público de Natal, hoje rara: pobre, honesto e altivo, não adulando os grandes, só se juntando com os de sua classe, e por isto mesmo passando dez, vinte e mais anos no mesmo lugarzinho de 150$ por mês" (p.52).
      Observe a crítica que o autor faz ao tipo de funcionário público já escasseado em sua época. O que ele diária hoje?
Ao ouvir um grupo de rapazes moralistas, criticando a postura de Gizinha, exatamente no momento em que um rapaz considera despudor e afronta às famílias presentes, Polycarpo Feitosa parece emprestar a Castro a sua personalidade irônica quando este contra-ataca "(...) Todos êles são tão bons quanto tão bons. Os que exigem a exiguidade do vestuário são exíguos noutras coisas até mais consideráveis..."
      Polycarpo Feitosa monta uma cena curiosa sobre Castro no baile. Episódio passado "(...) Ao lado do quadro de Miguelinho, como abrigados sob aquela sombra, alguns velhos, pacatamente, palestravam discretamente". (p.55). O quadro referido por Polycarpo Feitosa  encontra-se até hoje no local, atualmente Pinacoteca do Estado.
      O referido baile fora organizado para políticos, e essa atmosfera os envolvia. Cesário diz que naquele momento tinham "(...) gente nossa para governar, mas quem nos diz que amanhã não nos mandarão estranhos, como os presidentes do império?".
Isso era uma crítica. Até porque sabe-se de forasteiros que governaram o estado e a capital. Curioso é que ele filosofa bastante com Cesário sobre isso. Ao final, Queiroz expõe o seu temor diante da possibilidade de os potiguares terem que aceitar algum deputado ou senador nessas condições.
Inicia-se um diálogo no qual Polycarpo Feitosa parece querer externar a sua própria opinião, na pele do Sr. Queiroz, criando um dito curioso:
      - "Em política tudo se conserta e acomoda, o gato com o cachorro, a onça com o bode".
      Cesário vem com a réplica
      -"Mas sempre um sai apanhando..."
      E Queiroz sai com a tréplica:
      -"Dará depois. Cada um tem o seu dia".
      O amigo retorna, dizendo:
      - Isso era quando havia partidos, hoje não. Hoje uns dão a vida toda, outros apanham a vida inteira.
      - E Queiroz finaliza:
      - "Não é tão raro assim. O mais comum é darem e apanharem simultaneamente. Apanham numa coisa, dão noutra, e tudo vai bem".
      A conversa continua sobre quem dá e quem apanha dos políticos, até que Queiroz sentencia: “Vamos para adiante...”.
      O episódio mais crítico do referido baile – no tocante aos personagens principais – foi protagonizado por Roberto Lima. Este, que acabara de preparar um pratinho de doces, vendo Gizinha e o noivo se aproximarem do "bufete" (bifê) de guloseimas, se dirige à ex-namorada e lhe oferece. Esta – que não costuma conservar protocolos – aceita sem cerimônias. 



      Julinho disfarça o gesto que considerou afrontoso. Roberto, aparentando absoluta normalidade, se afasta naturalmente. Mais adiante questiona a atitude da namorada, mas esta, "num tom galhofeiro", diz que não poderia ter recusado uma gentileza. Julinho retorque, dizendo que ela não deveria ter aceitado.
E nesse arrufo se despedem do evento, acompanhados por Azevedo e Regina. Esta também havia sido muito cortejada e observada devido a sua beleza. E dançara com algumas figuras importantes, como era de costume na época.
      O próximo personagem a entrar no romance – e atiçar a imaginação do leitor – é Fernando Ribeiro, de dezesseis anos, filho de um freguês e grande amigo do Sr. Azevedo. Ele passa a morar num quarto dos fundos de sua casa, a pedido do amigo, haja vista uma epidemia de tifo que grassara em Natal e vitimara muitos na pensão em que ele anteriormente morava quando chegara do interior.
      O rapaz fazia o "curso de preparatórios" (59), inclusive estudara no Ateneu com o irmão de Gizinha. Era excessivamente tímido. O episódio que será desencadeado tem uma nuança que lembra a história real de Ana de Assis e Euclides da Cunha, embora com outra roupagem e final completamente diferente.
      D. Regina, "por uma espécie de perversidade trocista", percebendo o modo interiorano e o jeito retraído de Fernando, passa a brincar com a situação de forma insinuante e maliciosa, deixando-o embaraçado.
Certo dia, voltando de um baile, encontra-o lendo – por ironia do destino – Minas de Prata, de Alencar. Ela se aproxima demasiado próximo para ver o que ele lia. "(...) Sentindo tão perto o perfume e até o calor daquele corpo, o adolescente, estonteado, ia talvez 'fazer asneira', mas viu Gizinha que o fitava com um sorrizinho irônico".
D. Regina toma-lhe o livro, olha, vê não ter o que a sua imaginação fértil lhe instigara, e o devolve. A partir de então Fernando pareceu nutrir por D. Regina um sentimento, misto de adoração ódio, desejo e medo. Ele não tinha malícia para compreender o que realmente aquela atraente mulher estava fazendo.
Percebendo isso D. Regina passou a brincar com a situação, flagrando-o várias vezes o rapazote contemplando o seu corpo, como se imaginasse coisas. Ela estava segura de jamais permitir que tudo não passasse daquilo. Pelo menos é isso que inicialmente Polycarpo Feitosa diz. Aqueles jogos a excita, e ela não quer destruí-los.
Certo dia o marido viaja até Recife e ela aproveita para jogar pimenta na brincadeira. Inicia um diálogo insinuante com o rapaz. Era cedo da noite e os filhos se demorariam fora.
Fernando, nervoso e apaixonado, age monossilábico. E tem início um diálogo no qual ela pergunta “que fez hoje?”
- “Nada”
E num ímpeto de audácia:
- Pensei na senhora.
(...) – Pensou como?
- Como em todas as horas da vida, como se pensa no céu”. (p.64).
A perversidade e os modos insinuantes de D. Regina são tão fortes – a ponto de agrupar o corpo, a fala, os trejeitos naquela conversa maliciosa – que o rapaz agarra a sua mão e começa a beijá-la.
Num rompante ela se recompõe, retoma uma seriedade inexplicável e recrimina o rapaz, sentenciando-lhe “eu sou casada”.
O garoto, envergonhado, desmancha-se em pedidos de desculpas. Ela recomenda-o dormir. Ele sai e a deixa pensando sobre o acontecimento, ciente que fora ela a causadora de tudo.



Mas a sua esquisita inclinação pelo garoto fez com que ela se dirigisse ao quarto do rapaz, causando-lhe grande surpresa. Ela também sentiu um nervosismo esquisito. O rapaz começou a chorar. Ele disse que ela sabia a razão daquela emoção. Ela usou argumentos para dar-lhe a entender que ele estava carente devido à ausência dos pais e que ela era uma “amiga velha, uma segunda mãe, que o estimaria e o ajudaria na vida”.
Eles se abraçam, surge um beijo, mas a acanhada reserva de pudor que lhe restava faz com que ela se desvencilhe de seus braços e corra meio arrependida, pensando na besteira que quase se configurara.
Fica pensando na sala, inclusive sobre a possibilidade de conversar com o marido e pedir a retirada do rapaz de sua casa, mas faltam-lhe argumentos. O rapaz era uma pessoa tranquila e educada. O que alegar?
Sem imaginar a extensão do seu ato, ela arrastou para si um problema que poderia ter sido evitado, cuja consumação poderia encerrar em tragédia.
Certo dia, na dúvida entre casar ou não, motivado pelo histórico liberal da amada, Julinho Silveira tem uma conversa com o “filósofo” Castro o qual acaba convencendo-o sobre a decisão que tomaria.
Sobre D. Regina, Castro diz “(...) apesar da beleza e duma suspeitada desarmonia íntima com o marido, nunca se divulgaram mexericos” (76). Esse trecho deixa clara a hipocrisia da sociedade natalense, pois motivos não faltavam para que mãe e filha fossem ‘pratos cheios’ para os mexericos daquelas rodas. Ainda mais numa Natal provinciana, cujo advento do rádio e da televisão ainda não eram conhecidos. Certamente, tal qual hoje, a situação abastada da família do Sr. Azevedo blindava esse ofício.



O casamento deu-se ainda em 1928, na residência da família “com aparato e danças até depois de meia-noite” (p.81). Gizinha parecia indiferente a tudo. Essa atitude era isolada, dentre muitas que viriam. Apesar do comportamento incomum à época, era moça de coração bondoso. Muitas vezes nuanças de infantilidade cruzavam com seu espírito. Assim era Gizinha.  
Pensaram em passar a lua-de-mel no Rio de Janeiro, mas se decidiram pelo sítio que o Sr. Silveira tinha no sertão de Serra Caiada. O pai a presenteou com um belo automóvel, e o veículo ajudara na decisão.
Certamente Gizinha foi a primeira mulher a dirigir um carro – pelo menos em romance – no Rio Grande do Norte, reforçando essas lufadas de modernidade de Polycarpo Feitosa, embora quem fez a viagem foi o “chauffeurClaudino.
O local, pela descrição do autor, pode ser o seu próprio sítio, ao qual ele era apaixonado e se abalava para lá eventualmente.
Logo o autor descreve o estado em que andava o referido casamento “(...) Gizinha se acomodava pouco a pouco à vida nova, interessava-se pelo arranjo da casa, que estavam provendo para quando regressarem do campo; mas no íntimo do seu ser, a espécie de afeição, ou antes de camaradagem, que tinha ao marido, e se poderia talvez se transmutar em amor, ia aos poucos se tornando vulgar indiferença doméstica, amálgama de solidariedade material e de hábitos, com uma boa fração de menosprezo, que constitui a vida de muitos lares, como aquele em que nascera e vivera.” (p. 85).



Essa viagem permite ao leitor conhecer detalhes curiosos sobre a geografia ao longo de Natal a Serra Caiada: vegetação, flores, serras, acidentes geográficos etc.
No sítio o casal passou os dias acompanhado pelos empregados, recebendo visitas de pessoas simples, conhecidas da família, eventualmente cavalgando pelas proximidades.
Apesar de todas as demonstrações de carinho do marido, Gizinha tinha rompantes constantes de  indiferença, a ponto de o mesmo estar sempre lhe perguntando se ela estava bem, se algo estava acontecendo etc. Foi uma “lua-de-mel” não muito agradável. Durou quase um mês, quando retornam para a casa dos pais da noiva.
Passado o clima de casamento recente, o casal começa a vivenciar uma relação desgastante, na qual um passa a fazer o contrário do que o outro quer. Uma espécie de provocação constante. Sem brigas, mas psicologicamente deprimente.
Como Julinho a amava acabava cedendo algumas vezes, dando preferência aos gostos da esposa, mas esta, ao perceber que ele favorecia algo que ela tinha proposto, mudava de ideia no mesmo instante.
“(...) Mais duma vez Julinho teve de devolver objetos comprados, ou de fazer encomendas, pois ela achava defeitos naqueles, ou adiava estas, alegando, para amofiná-lo, motivos de economia”. (p.108).
Assim que eles retornaram do sertão o pai de Gizinha propôs a Julinho que ele deixasse o emprego e se tornasse seu sócio no armazém. Ele recusou, mas devido a insistência do sogro, aceitou, assumindo a função de “guarda-livros”, espécie de contador.



No início tudo caminhou bem, mas certamente devido ao relacionamento doentio entre o casal, passou a sair depois do jantar e retornar tarde da noite. Pior, retomou o antigo hábito de jogar baralho valendo dinheiro no Clube Poti. Quando solteiro via o dia nascer nessa atividade que agora o reencantava.
Como acontece com os adeptos de jogo, começou a fazer reiteradas investidas no dinheiro do armazém, outras vezes tomava emprestado do sogro. Este conversou com D. Regina sobre sua insatisfação, mas a esposa não quis intervir.
Sr. Silveira comunica ao pai de Julinho sobre o comportamento do genro, mas esse, apesar de ter-lhe feito um sermão, não o sensibilizou. Julinho lhe tomara emprestado duzentos mil réis num dia e pouco tempo depois retornou pedindo mais mil réis. Sempre inventando uma mentira diferente, embora este sabia da real finalidade.
O velho, deprimido, aconselha-o, dizendo que  ele era homem casado e deveria ter responsabilidade com o futuro da família, mas o mesmo continuava alegando ser a última vez e que não o incomodaria mais.
No Clube Poti ele sempre se encontrava com Roberto Lima, onde também jogava, mas seu desafeto não fazia apostas vultosas, nem se fizera dominar pelo jogo.
Interessante os comentários que Polycarpo Feitosa tece sobre o esquema que rege o jogo de roleta, o qual exerce uma espécie de fascínio sobre o jogador, viciando facilmente pessoas que não tinham a firmeza de resisti-lo. Era o caso de Julinho.



O simples fato de ver qualquer jogador levando uma bolada para casa o instigava mais e mais. É uma espécie de atração incontrolável, na qual o jogador não se vê como perdedor em nenhum momento. É o vício.
Certa noite, foi ao Clube Poti com cem mil réis no bolso, e logo perdeu tudo. Deu-se ao luxo de tomar emprestado ali mesmo no próprio caixa do clube a alta importância de dois contos, perdendo tudo logo em seguida.
Essa espécie de doença ocasionava nele sensações físicas indescritíveis, associadas à inapetência, boca amarga, nervosismo, frio no corpo. O dinheiro deveria ser devolvido em vinte e quatro horas, e ele iria para casa com enorme fardo de preocupação, sem saber de onde tirar dita quantia. A cena fora testemunhada por Roberto Lima, seu maior rival, o qual externou um rizinho de troça assim que ele deixou o clube.
Julinho chegou em casa de madrugada. Gizinha estava acordada e o tratou com a mesma indiferença de sempre – o que o irritava mais. Houve o prenúncio de discussão. Habituada a dormir em outro quarto, foi dormir separada.



Ele estava arrasado e a cama foi-lhe como se tivesse espinhos. A preocupação que teria no dia seguinte de conseguir o dinheiro o incomodava. Muito mais o fato de não saber onde consegui-lo e o medo de ser desmoralizado no clube.
Logo cedo procurou a mãe, D. Hortência. Ela disse que não tinha o valor. Pediu que ela pedisse ao pai. Ela, muito triste, alegou que não saberia o que justificar. Então ele pediu que ela visse com o seu sogro, Silveirinha. Sabia que acumulava débitos com este e seria um contracenso procurá-lo novamente. A mãe seria uma espécie de escudo.
D. Hortência recusou-se e disse que se ele quisesse ela daria as economias pessoais dela, no valor de seiscentos mil réis e que tentaria obter mil réis com o marido. Ficaria faltando quatrocentos.
Julinho sabia que o pai jamais daria o dinheiro. Passou o resto do dia martirizado pela sanha de conseguir, em vão, o restante. À noite dirigiu-se ao Clube Poti com apenas os seiscentos réis dado pela mãe.
Mesmo sabendo da humilhação que passaria, pensou em arranjar uma desculpa. Chegou ao caixa do clube, falou da dívida e foi informado que o seu inimigo havia pago tudo. Ele havia percebido tudo o que ocorrera na noite anterior e acertou assim que saiu, pedindo o recibo. Julinho ficou fora de si, mas disfarçou.
A partir de então mil pensamentos lhe afloraram a mente, inclusive a insanidade de supor que Gizinha tinha um caso com o seu rival.
“(...) Despiu-se o casaco e o colete e estendeu-se na cama, mas apesar do cansaço que sentiu, era-lhe impossível dormir. Continuava a cuidar, mas o pensamento consistia em remoer o mesmo problema: ‘Porque teria aquele sujeito pago dois contos de réis por ele?’ Sem nenhum razão que o convencesse, nem o dissuadisse, não tinha dúvida de que Gizinha era a causa daquela esquisita amabilidade.” (p.121).
A partir daí recomeça outro sofrimento: pensar como conseguir o dinheiro para devolver ao seu rival.
      A ansiedade para resolver o problema martiriza Julinho a cada segundo. Ele procura o amigo Castro, e juntos veem esgotar-se todas as possibilidades de conseguir o dinheiro. Castro sugere que ele procure o rival para conversar. Sem saída ele o faz.
      Roberto Lima o recebeu com uma cordialidade nunca vista, deixando-o transtornado, pois ele sente que tanta deferência era pura falsidade e tinha algum propósito, mas é obrigado a suportar a pressão psicológica e manter a serenidade.
      Julinho agradece-o por ter pago a sua dívida, faz menção de entregar-lhe o dinheiro que a mãe lhe emprestara, ressaltando que o restante seria devolvido nos próximos dias.



      Roberto Lima recusa-se a receber, apesar da insistência de Julinho, ciente de que seu rival exercia aquela mesura para "tê-lo preso pela dívida" (p. 124). Ao deixar a casa o rival ainda disse "eu apareço".
      "(...) Roberto Lima era um desses indivíduos em cujo caráter predomina a tendência de esconder dos outros os sentimentos e impressões, que nunca se confessam, e cujas paixões ninguém conhece, porque ele sabe que quem conhece as paixões de outro está sempre a cavaleiro deste, e em dadas circunstâncias o pode dominar” (p. 127).
      Intimamente, Roberto Lima tinha interesse em Gizinha. Esta andava revoltada com as atitudes do marido, o qual não lhe dava mais a necessária atenção, preso às consequências deprimentes de suas jogatinas. Sua ausência na casa havia se tornado comum, despertando dúvidas se era unicamente motivada pelo vício ou se tinha outro motivo. Mas jamais lhe passara pela mente a ideia de traí-lo. Roberto Lima era uma página virada da sua vida.
      Certo dia Roberto Lima, logo após ter constatado que Julinho se encontrava no Clube Poti, e que recentemente havia perdido em jogo todo o dinheiro que a mãe lhe emprestara, resolve fazer uma visita a casa do amigo a pretexto de vê-lo.
      Lá, encontra Gizinha acompanhada da velha amiga Nair Lopes, presença esta que já começa a incomodá-lo. Ela o recebe com indiferença, mas o convida para entrar. Diz que o marido não se encontrava. Ele começa a puxar conversa e a "olhá-la com indiscreta admiração e um desejo tão claro de cortejá-la, que Nair teve um risinho de mofa" (p. 131).
Na maioria das vezes Gizinha conversa de forma indireta, usando a amiga para dizer coisas que pensava. Ele parece falar de forma impessoal, mas usa fatos que que o relacionava a Gizinha. Na realidade eles dialogam entre si usando tais artimanhas.
     Interessante esse estágio do romance, no qual Polycarpo Feitosa demonstra a importância que Gizinha dá às coisas ordinárias, em detrimento do que era mais comum, haja visto os padrões da época. Apesar de o tratar com indiferença ela demonstra-se satisfeita com os galanteios de Roberto Lima, o qual chega a elogiar o corpo da amada.
      Sabendo de suas vaidades, ele usa tal artifício intencionalmente, deixando de lado o romantismo e a tônica poética, que estariam mais condizentes com aquela época – se bem que direcionada para a pessoa errada, pois se tratava de uma mulher casada. Isso mostra uma revolução nos costumes, na qual as futilidades parecem sobrepujar.
      Polycarpo Feitosa serve-se desse gancho para fazer uma reflexão sobre a Natal dona de uma sociedade fútil, valorizadora de coisas supérfluas e o "servilismo político" (p.132) que assolava. Fala do embutimento da moral e o fato de interesses pessoais serem colocados acima dos direitos dos outros, permitindo ao leitor constatar que tal comportamento, tão em voga hoje, foi inaugurado há muito.



      Na realidade, Roberto Lima não pagou a dívida do amigo, e sim pagou o ingresso para entrar no seu lar, na tentativa de destruí-lo.
      Curiosamente é possível constatar que a casa de Gizinha era próxima da catedral, pois eles ouvem o relógio anunciar vinte e uma hora. Justamente quando Julinho chega e, de cara com o rival "(...) ficou estarrecido, muito pálido e sem poder articular uma sílaba. O coração bateu-lhe desordenado, sentiu a impressão de um frio repentino no diafragma, e durante um bom momento parou em pé, tendo ainda na mão o chapéu, que tirara ao entrar..." (p. 133).
      Roberto alega não ter vindo a negócio, mas para vê-lo. Todos ficam meio sem jeito e a visita se despede.
Mal o desafeto sai e Julinho diz “(...) Se eu encontrar outra vez aquele sujeito aqui, faço uma asneira.
      Ela devolve: “(...) Não será a primeira”.
      Ele faz a tréplica brutalmente: “(...) É verdade, a primeira foi casar com você”.
      E Gizinha encerra: “(...) Chore na rede que é lugar fresco”.
Gizinha não tinha a mesma sabedoria de sua mãe, a qual lidava com os seus problemas conjugais de forma muito natural, sem essas afetações psicológicas.
A vida do jovem casal era verdadeiro suplício. Vez em quando Julinho, aparentemente arrependido, tentava amenizar a situação com algum presentinho trazido da rua, o qual Gizinha recebia com a tradicional indiferença. Logo tudo voltava a ser igual.
Para não viver tão só Gizinha visitava os pais todas as noites, ouvia conselhos da mãe, os quais não obedecia a nenhum. Julinho chegava e nunca encontrava a esposa e sabia que também fazia o mesmo com ela. Era essa a vida dos dois.
Certo dia Julinho chega mais cedo e se dirige a casa dos sogros, encontrando a esposa acompanhada de uma roda de conversa aparentemente muito divertida, na qual estão os sogros e os amigos José de Castro e o velho Queiroz.
A conversa toma um rumo filosófico e mais uma vez Polycarpo Feitosa coloca o assunto política como tema principal. É possível encontrar frases irônicas, pautadas por crítica, faladas por Castro e Queiroz, como “(...) “O coronel já foi político, e essa mazela é como varíola, deixa vestígios indeléveis” (p.141). Em outro momento: “(...) Todos os verdadeiros políticos são soberbos como pavões” (p.141). E ainda sobre o perfil dos políticos de então, encerram com essa: “(...) Há duas categorias principais: uns são bonecos de porta de alfaiataria, tesos, repuxados e lustrosos, olhando mais as leis da moda que os artigos da constituição...” (p.141). Como já refletimos acima, Polycarpo Feitosa – altamente crítico e enérgico, certamente se referia a alguns personagens reais que lidou.
Ainda nessa conversa é possível colher uma frase que parece ter sido escrita hoje e para a atualidade “(...) Aí está o maior mal: se todos se queixam do meio, e ninguém se esforça para melhorá-lo, nunca passará do que é” (p.141).
Julinho assiste a toda essa conversa em silêncio e sem prestar atenção. O contrário da esposa. Com o adiantar das horas eles se despedem, deixando os pais de Gizinha conversando sobre o estranho comportamento do genro.
Julinho conseguiu pagar os dois contos que devia a Roberto Lima, mas isso não foi o bastante para que o rival deixasse de sondar os menores passos do amigo, ávido por uma nova falha na qual ele pudesse repetir a prática anterior. Ademais suas intenções com Gizinha permaneciam intactas.
Julinho teve um rompante de seriedade e se afastara das jogatinas de roleta, limitando-se ao poker e ao bacará, inclusive passou a voltar para casa mais cedo. Algumas vezes nem saia. Mas o novo comportamento apenas amenizou as discussões. O resto continuou igual.
Nair Soares se casara com Florêncio, abastado comerciante de Mossoró, adiantado na idade. Resolvem residir no sertão, onde também levaria a mãe D. Margarida. Antes de partir faz visita a Gizinha.



Nair diz que o marido é muito bom para ela. Gizinha pergunta: “(...) E isso assim tão bom... a todas as horas?
Nair responde: “(...) Ah, sim, a todas as horas”.
O questionamento de Gizinha permite ao leitor suspeitar que ela não era feliz sexualmente com Julinho. Certamente tanto desprezo era fruto dessa insatisfação. Urge as perguntas que jamais serão respondidas: no que consistia exatamente essa insatisfação sexual? O que Gizinha pensava ou conhecia sobre sexo?
Nair, pelo contrário, conta-lhe ser feliz sexualmente e isso deixa Gizinha arrasada. “(...) Gizinha contemplava a amiga, e com a continuação daquela conversa íntima o seu enfado aumentava, não porque a outra fosse favorecida pela sorte, que ingenuamente supunha caber a todas as casadas, mas porque ‘só ela não a tinha’ (...)”.
Em que consistiria essa ‘felicidade sexual’ que a amiga dizia vivenciar?
      Natal não falava outro assunto, exceto o caso do incidente do tiro em Roberto Lima.
      "(...) Sem perspicácia nem experiência para distinguir amor de desejo, nem podendo conhecer a índole egoísta e a vontade pertinaz do antigo adorador, para quem todos os caminhos eram retos desde que o levassem à satisfação dos seus desejos, ela via naquela intervenção uma prova de amor, que não descobria nas declarações anteriores. E, involuntariamente, apesar do sólido fundo de honestidade do seu caráter e da firme resolução de manter-se digna da família e da consideração social, um vislumbre de simpatia e de gratidão substituiu-lhe no ânimo o antigo ressentimento contra Roberto". (p.152).
      Gizinha percebe que o seu casamento seria eternamente daquela forma, e para agradar a sociedade nada faz para mudá-lo. Busca inspiração em sua mãe a qual agia sempre com maturidade e sabedoria diante dos problemas com o marido, embora suas diferenças matrimoniais eram totalmente diferentes da de Gizinha.
      Gizinha se auto-avaliava como uma pessoa superior ao marido sob o ponto de vista da inteligência, pois este não acompanhava o raciocínio desta quando os assuntos eram leitura e ideias. As ideias da esposa não batiam com as dele.
      Julinho era de uma geração que se auto-afirmava através do esporte, julgando-se em tudo superior, inclusive nos músculos, no futebol e no box, onde Gizinha jamais poderia competir com ele.
      A atitude de Roberto Lima de livrá-lo dos dissabores da responsabilidade de um crime acabava criando uma espécie de cumplicidade indesejável entre os dois. Julinho trazia a certeza de que também existia um laço entre a sua esposa e o seu rival. Ele julgava-os amantes, e que o rival assumira aquela culpa por remorso. Isso alimentava ainda mais o ódio para com a esposa e o suposto amante. Ele chega a pensar em suicídio, mas via nessa atitude a certeza de que a esposa iria definitivamente para os braços de Roberto Lima.
      Essa situação nos reporta a Dom Casmurro, publicado quase trinta anos antes, no tocante àquele misto de dúvida e certeza sobre a traição da esposa.
      O convívio entre o casal torna-se intolerável. Não se falavam. Não se colocavam mais juntos à mesa das refeições. Intimamente ele amava Gizinha. Era um sentimento de posse, e esta parecia apenas sentir por ele uma espécie de piedade e ao mesmo tempo raiva, aliás raiva de ambos terem chegado àquele ponto.
      Enquanto Julinho se trancava em seu mundo, sem desabafar com ninguém, Gizinha encontrava conforto nas longas conversas com a mãe, a qual faz colocações para a filha que permitem ao leitor refletir sobre a vida vegetativa e sem dignidade a qual a maioria das mulheres viviam naquela época, presa às amarras de um casamento infeliz. Isso tudo para se livrar da crucificação social que eram submetidas aquelas que rompiam as raias do matrimônio para viver a sua própria vida.
      Percebe-se claramente que o autor tinha conhecimento da história da intelectual Nísia Floresta, sua conterrânea, a qual escolheu separar-se do marido e cumprir um destino de apedrejamento social, que dura até hoje, mesmo passados cento e vinte e nove anos da sua morte.


NÍSIA FLORESTA BRASILEIRA AUGUSTA
      Dona Regina com certeza choca o leitor de época quando mostra as opções que a filha tinha: "(...) se temos a consciência tranquila, só há dois caminhos: ou desprezar, ou separar, e este é mais grave diante da opinião dos outros". Tudo bem que a composição do personagem de D. Regina oscila entre conservador e moderno, mas não é imaginável que ela dê margem a separação da filha diante da "crucificação" social que essa sofreria, e também da própria cultura das senhoras da época, as quais se submetiam às piores humilhações em nome do matrimônio. As próprias mulheres apedrejavam aquelas que tivessem a ousadia de romper as raias do matrimônio. Do dia para a noite estariam legadas ao piores adjetivos.
      Gizinha ainda questiona: "(...) De modo que tenho que sacrificar a minha felicidade à opinião dos outros?" (p.161).
      A atitude de Julinho torna-se cada vez mais inconciliável com a vida em comum. Passava o dia fora de casa, e quando junto à esposa, mostrava-se incomunicável.
      Certo dia ele faz as malas e desaparece. Apenas a empregada testemunha a sua muda saída. Não foi dada satisfação a ninguém. Assim que ambas as famílias tomam conhecimento reúnem-se juntamente com amigos mais próximos na casa do Sr. Silveira.



      Dona Regina desenrola todo o novelo da história. Nos últimos tempos Julinho suspeitara que Gizinha recebia cartas, bilhetes, souveniers e se encontrava em algum lugar com o seu rival. Estava paranóico com tais suposições.
      José de Castro, ouvindo atentamente, filosofou: "(...) Em suma, o que se infere em tudo isso, enquanto caminhavam pelas calçadas da Avenida Rio Branco, é que, nos melhores casos, e nas condições mais favoráveis, o amor conjugal vai se tornando um mito" (p.167).
      E, (...) O que há é que hoje os costumes sendo menos regrados, mais livres de qualquer freio, pois que deram um ponta-pé na velha moral do meu tempo, e não a substituiram por outra".
Num dado momento, a conversa entra num contexto no qual alguém associa vestidinhos sumários a degradação. O “filósofo” diz que nem sempre, pois “(...) vestidinhos sumários se harmonizam com a honestidade perfeita e com a retidão do procedimento, como essa que há pouco vimos” (p.168). Em ambos os casos fizeram referência à Gizinha, até porque, apesar de seu comportamento ultramoderno, nunca traiu o marido, mesmo tendo oportunidade.
Mais adiante Castro diz que os homens não mudaram, pois ainda não compreendiam as mulheres. E outro diz: “(...) ou não podemos”.
Essa colocação é uma das pérolas do livro, a julgar pelo sentido filosófico e por estar à frente da época. Lembremos que a própria conterrânea do autor também disse isso – muito tempo antes – com outras palavras.
E continuando a roda de conversa ainda sobra tempo para falarem sobre o interesse que a mulher vem apresentando até mesmo na política. Esse último assunto, é claramente influenciado por uma grande novidade que o Rio Grande do Norte proporcionou ao mundo, elegendo Alzira Soriano como a primeira prefeita do Brasil. 


ALZIRA SORIANO AO CENTRO
O episódio ocorreu em Lajes, em 1929 – onde Gizinha e Julinho passaram a lua-de-mel – e na vida real Polycarpo Feitosa possuía uma granja. Esse fato ocorreu um ano antes da publicação de Gizinha.
Ainda sobre política, foi na Mossoró de 1927 que a natalense Celina Guimarães tornou-se a primeira eleitora do Brasil. Curiosamente, em 1934, o Rio Grande do Norte elege a curraisnovense Maria do Céu Fernandes como uma das primeiras deputadas do Brasil.



Poucos meses depois encontravam-se na casa do Sr. Azevedo, nas tradicionais rodas de conversa noturna, Queiroz, Castro, Gizinha, Dona Regina e Fernando, o qual havia chegado recentemente de Recife, onde fora aprovado no exame vestibular na Academia.
De repente chega Azevedo, sem dizer uma palavra e entrega um telegrama para Dona Regina.
Julinho havia falecido recentemente, em Manaus.


Fim

PERSONAGENS: Claudino (chofer); Rosendo e Oliveira (rapazes vizinhos do sítio onde Gizinha passara a lua-de-mel).
DITOS: "Cada um sabe as linhas com que cose". (p.15) - "Em política tudo se conserta e acomoda, o gato com o cachorro, a onça com o bode" (p.55). “Todos os verdadeiros políticos são soberbos como pavões” (p.141).
PALAVRAS REGIONAIS: galhofeira, espalhafato - espevitada, vexame (pressa), "danado" - contanto que não "brome" - encalacrado - somiticaria - "dar para trás" - diabo de tanto baile! - como o diabo -'senhora das suas ventas',  róseo - maninhas - uma linguinha feroz'; “ronceiro” (p. 86);
DANÇAS: fox-trots, tango, rag-times, maxixes, valsa
GÍRIAS: dar o fora, "flirt" (paquera por olhares e piscadas), “aperuar”,
BAIRROS E LUGARES: Avenida Rio Branco - Ribeira - Tirol - Alecrim - Baldo – Areia Preta, Praia de Redinha, Genipabu, Rio de Janeiro; Macaíba, Serra-Caiada; as vedetas de Borborema; região de Potengi e Trairi; Serra de “Joana Gomes”; Serras do Olho d’Água, Salgado, Vermelha, Santa Rosa, São Pedro, Serra Preta; Santa Cruz; Clube Poti, Mossoró,
RUAS: Rua da Conceição, Rua Santo Antonio,
INSTITUIÇÕES: Ateneu, Teatro Carlos Gomes (hoje Alberto Maranhão), Cinemas, Forte dos Reis Magos,
EXPRESSÕES ESTRANGEIRAS: "set" (pessoas de classe mais simples) - "crepe Georgette" - strass - - caften - bufete - "plafonniers" (espécie de imensos abajures) - smokings
OBJETOS:  - óculos de celulóide escuro