ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

domingo, 31 de outubro de 2021

Outubro: mês de pensarmos sobre uma grande dívida que temos com Nísia Floresta...

 

Todo dia pode ser o dia de tudo. É querer. Por isso, ao longo do ano, gasto os meus verbos com homenagens a Nísia Floresta e aos povos indígenas, principalmente, dentre textos que edificam e conscientizam, muito embora há um perfil humano que não faz e não deixa fazer. O que não deve nos limitar, pois tais arengas acontecem da Academia a Delegacia, como dizia minha mãe. Mas como não me encaixo nesse balaio - nem é minha intenção tirar o mérito de nada - trago uma reflexão que reconheço como fundamental para o atual momento. Ela pertence a todos.
 
Ontem, percebendo que outubro de vinte e um dava os últimos suspiros, meu juízo latejou aqueles pensamentos de sino, badalando, cobrando texto como se tivesse domínio sobre o meu cérebro… Eu estava muito cansado mentalmente e não obedeci. Eis que hoje pego do lápis e do papel, passo a gastar grafite e desenhar o que você lê. Só insisto que não vejam o resultado como garatuja, como algo pessoal, mas como a homenagem que faltam fazer a Nísia Floresta Brasileira Augusta daqui adiante. Não é nada extraordinário. É respeito. É civilidade...
 
Escolhi esse mês para escrever um texto que será entregue - fisicamente, inclusive protocolado - à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, ao Conselho Estadual de Cultura e ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

O documento expõe a situação em que se encontra o túmulo e o monumento existente no sítio Floresta, ressalta a relevância da intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta para o mundo e, consequentemente, a necessidade da garantia de um espaço digno, que contenha atributos que combinam com o estado de pessoa visionária que foi a referida intelectual, e jamais um acanhamento tão grande como se encontra.
 
O atual estado desses dois elementos (monumento/1909 e túmulo/1954), reflete desprezo e desrespeito, deixando dúvidas se as homenagens ali feitas - depois da construção do prédio lateral - são de fato homenagens, com todo respeito a quem evoca Nísia Floresta naquele espaço. Refiro-me às condições em que se encontram, sufocados por construções de alvenaria, e o silêncio de todos, como se não enxergassem isso. A impressão que tenho é que há uma intenção de esconder o túmulo e o monumento, como se a alma de alguém continuasse de plantão, ali, detratando o que restou da nossa Nísia Floresta, aguardando que não sobrasse nem mesmo o pó do túmulo e do monumento. Pior é que fotografias antigas mostram a existência de um espaço maior que separava a cerca e túmulo; bastante diferente do que vemos hoje. Cabe à Prefeitura de Nísia Floresta localizar localizar o documento antigo de doação do terreno, cuja história está no meu blogue.
 
Nísia Floresta deixou de presente para Papari (hoje Nísia Floresta), ter nascido ali, e muitos parecem não terem se dado conta disso até hoje. O povo e as autoridades devem tratar esse bem como a mesma modernidade que ela coroou as suas ideias. Falta uma ação visionária a esse espaço. Uma cidade tem vereadores, secretários e prefeitos para vigiar e constatar os fatos, portanto todos viram quando os alicerces da obra que hoje macula o túmulo e o monumento teve início. O prédio não foi colocado ali, mas construído ali. 
 
Houve tempo para as autoridades procurarem a família Gondim e conversarem com civilidade e respeito, propondo indenizar os gastos feitos com o alicerce, pedindo que eles construíssem de maneira que deixassem uns cem metros de distância do túmulo, enquanto buscariam parcerias para levantar o devido valor do terreno, comprando-o, demolindo o prédio e construindo ali o que se deve. Vejam como é simples. Não há nada de extraordinário na proposta. Não acredito que alguém seria contra algo tão nobre e justo. Não está-se pedindo para proteger um curral, mas um espaço onde existe a memória de uma pensadora que atrai gente do mundo inteiro. Vale dizer que do outro lado está a residência da família Paulino, a qual também precisa ser revista com civilidade.
 
Confesso que sinto vergonha quando vejo, principalmente estrangeiros chegando ali. Recordo-me, em 2016, quando uma professora universitária sueca esteve ali, depois entrou em contato comigo, por rede social, e indagou horrorizada, por que tratavam o espaço com tanto desprezo. Ela estudou a obra de Nísia Floresta e veio só conhecer o local. Saiu perplexa. É o que sinto. E quantos saem dali revoltados sem que nada possam fazer?
 
É muito fútil e pequeno ver pessoas se engalfinhando por questões miúdas ao invés de enxergar o que é tão visível. Um respeitável professor contou-me, antes de ontem, que houve uma espécie de confusão por questão de autorias de homenagem no município de Nísia Floresta, algo como plágio, no tocante a um cortejo feito do centro da cidade ao sítio Floresta. Isso é tão bizarro que soa inacreditável. Homenagens a Nísia Floresta, que eu saiba, acontecem ali - mesmo com lapsos de tempo - desde 1909. Cada uma do seu modo. Umas parecidas, outras, não, mas plágio nisso?
 
Há quase 80 anos Luís da Câmara Cascudo esteve ali com grande dificuldade, pois o centro da cidade era muito úmido e mais florestado, portanto pisando em água por onde andasse, só para visitar o túmulo. Quer dizer que se hoje eu saísse de Natal para ver o túmulo, seria um plágio? Que bizarrice! Homenagens a Nísia Floresta se intensificaram mais a partir de 1970, depois, na cidade em específico, se tornaram anuais, através dos cortejos organizados pelo professor Jorge Januário de Carvalho, então diretor da Escola Municipal Yayá Paiva. Com esse raciocínio desvalido, de plágio, significa dizer que, doravante, quem encetar um cortejo até o túmulo estará plagiando? Assim sou um plagiador, pois fiz muitas alvoradas com repiques de sino na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, em homenagem a nossa Nísia. Jorge Januário também fez. Foi plágio? Essa barbaridade tem uma explicação: não querer que os outros também façam. Está mais para o campo da maldade.
 
Seja quem for, venha de onde vier: instituições, intelectuais, povo etc devem lembrar de Nísia Floresta. Vale não esquecer. O mês de outubro, em especial, é para as escolas e instituições de cultura e educação - preferencialmente - evocarem o nome de Nísia Floresta. Isso não é plagiar ninguém.
 
Pois bem, mas retomando o desenho - a propósito para não virar garatuja, como alertei - o povo nisiaflorestense precisa perceber que o monumento e o túmulo de Nísia Floresta pertencem - em primeiro lugar a cada nativo - em seguida, ao mundo. Essa consciência continua em falta. Não adianta apenas meia dúzia de pessoas terem essa consciência, se boa parte a tem de forma diluída, sem a mesma profusão. E a consciência deve ser ainda maior por parte das autoridades, pois eles têm o poder nas mãos, eles têm o poder de fazer milagres, se quiserem. Mas algo é certo: Nísia Floresta deixou uma mina de ouro ali onde está o seu túmulo e o seu monumento. É só pensar.
 
PROJETANDO... 
 
O que poderia ser construído ali? Desde que se desse a compra dos terrenos laterais, poderia-se construir um ambiente de sociabilidade para o mundo. A primeira ideia seria um projeto arquitetônico - que, sem sombra de dúvida - poderia ser feito pela jovem nisiaflorestense Patrícia Cota, extraordinária arquiteta que faz jus ao dito “santo de casa não faz milagres”. O engenheiro faria uma réplica da casa onde morou Nísia Floresta para abrigar o museu que falaremos logo abaixo, e que essa construção ficasse em torno de uma réplica do “Jardim de Luxemburgo”, compatível com o tamanho da área total. Um bom paisagista enriqueceria o espaço com árvores exóticas, tipo abricó, gameleira, samaúma, baobá e outras espécies interessantes, sem esquecer uma alameda matizada com mangueira, abacateiro, coqueiro, como ela descreveu a sua “Floresta”.
 
O “Museu de Nísia Floresta”, diferente de ser uma “desomenagem”, seria um poema de amor a ela, um sinal de respeito e agradecimento pelo fato de ela ter sido luz numa época de escuridão. Ela deixou fogo para nós, e sua chama arde. O museu ficaria no centro desse complexo, de maneira que fosse construído uma réplica da casa que existiu ali, onde ela viveu com os pais e seus irmãos. Nesse espaço deveria estar apenas a sua família, e jamais quem quis destruí-la gratuitamente, pois assim seria um museu do horror, como se até nós a desonrássemos. Penso na reconstituição de um ambiente antigo, característico ao tempo de Nísia Floresta em termos de mobiliário, com escrivaninha, sala, quarto num primoroso estudo de especialistas, de maneira que, conforme o grupo de visitantes passeasse pelos cômodo - acolhido por pessoas caracterizadas com vestimentas de época - visse os retratos de Nísia Floresta, fotografias de lugares onde ela andou, réplicas das capas originais de suas obras expostas sobre os móveis etc. Tudo isso primorosamente permeado com riquezas de detalhes de época. Como se a casa estivesse congelada no tempo. A cozinha teria uma réplica original de fogão a lenha com os mínimos detalhes de uma cozinha.
 
A sala teria livros antigos que fizesse desaparecer as paredes, significando que só os livros nos podem nos tornar iguais a Nísia: “ver adiante do tempo”. No alpendre estariam pedaços de pedra sabão, destacando-se a réplica da peça que o pai de Nísia Floresta fez na sacristia da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó. 
 
Ao lado da casa-museu, haveria uma edificação moderna, com auditório e salas amplas, de maneira que o visitante interagisse com Nísia Floresta, assistisse documentários, filmes, ouvisse o hino em homenagem a Nísia Floresta, conhecesse a letra, dentre outras músicas e poemas afins, numa proposta de inclusão. Uma sala especial contaria com hologramas https://olhardigital.com.br/.../cientistas-criam.../
 
permitindo que os visitantes estivessem cara-a-cara com Nísia Floresta, ouvindo-a declamar parte de seus poemas, frases clássicas e suas principais ideias, além de dialogarem com ela. Esse espaço reuniria tudo o que existe até o momento alusivo a Nísia Floresta seja no município ou fora dele (uma imensa galeria de fotografias dos principais acontecimentos). Ou seja, seriam dois museus, o da casa (no passado) e o atual.
 
O local abrigaria uma grande biblioteca, onde os visitantes teriam acesso a todas as obras de Nísia Floresta principalmente, cuja coordenação das edições ficaria a cargo de Constância Lima Duarte. Somaria-se ao acervo obras de autores norte-riograndenses e franceses, como Auguste Comte, Flaubert, Victor Hugo, Simone de Benvoir, Jean Paul Sartre, Alexandre Dumas, Exupery e Voltaire. A biblioteca seria uma obra em parceria com o Governo Francês, cuja ponte seria a Aliança Francesa.
 
Ao lado teria-se o Teatro Municipal de Nísia Floresta com aulas de dramaturgia, cuja história de Nísia Floresta seria a atração principal, exibida ao longo do mês de outubro, com ampla divulgação em todo o país (tenha certeza absoluta que essa dramatização assumiria patamares imprevisíveis, podendo se tornar uma das grandes atrações do país). O teatro teria um anexo para aulas de dança em parceria com o balé de Bolshoi (esse detalhe é um processo construído. Santa Catarina conseguiu uma parceria com Bolshoi devido a muita qualidade; é a única extensão de Bolshoi em todo o mundo. Por que não em Nísia Floresta?). Esse espaço seria uma referência.
 
A área contaria com lojas que disponibilizassem artesanato e lembrancinhas da cidade, com destaque a cartões-postais com todos os retratos existentes de Nísia Floresta ( o que ajudaria - e muito a extinguir essa confusão que fazem entre Nísia Floresta e I.G.), dentre folders com retrato e biografia de Nísia Floresta em portguês e inglês.
 
Haveria uma sala com a reconstituição daquele retrato em que Nísia Floresta aparece de corpo inteiro, segurando um livro, levemente encostada num pilar clássico. Teria-se disponível réplicas do vestido e um livro, permitindo que pessoas do sexo feminino o vestissem e se fizessem se fotografar em reconstituição ao retrato, além de fazer fotografias em outros ambientes do complexo.
 
Os “Jardins de Luxemburgo” teriam muitas esculturas: dos pais e irmãos de Nísia Floresta, além de “Pepé” (uma espécie de ama, ou babá que Nísia Floresta teve), e de Augusto, o grande amor da homenageada, além de esculturas de indígenas locais. Numa das alamedas se perfilariam esculturas dos filósofos e escritores que Nísia Floresta conheceu na Europa, como Castilho, Alexandre Herculano, Auguste Comte. O complexo seria emoldurado por um estacionamento arborizado com Pau-Brasil.
 
O complexo abrigaria também três réplicas que evocassem o passado, sendo uma casa de farinha nos moldes originais (conforme tantas que existiram em Papary), um alambique (conforme tantos que existiram em Papary) e um engenho de cana de açúcar (conforme inúmeros que existiram em Papary).
 
O riozinho próximo poderia garantir a água para uma pequena lagoa artificial que oferecesse curso de mergulho e fotografias aquáticas para atrair turistas, aulas de natação para crianças e fisioterapia e lazer para idosos. Esse espaço seria uma alusão à lagoa Papary, reverenciada por Nísia Floresta. A partir do momento em que se criasse dispositivos contraditórios dentro desse complexo, com certeza teria-se gente o ano inteiro ali, considerando, também, que haveria uma política de cunho turístico, interligada a todos os hotéis e ambientes de gastronomia do estado. 
 
Dia desses eu conversava com um nisiaflorestense, ocasião em que sugeri que ele apresentasse à Câmara Municipal de Nísia Floresta um projeto para a construção de um coreto em estilo francês na praça Coronel José de Araújo, de maneira que abrigasse a instalação de uma escultura de bronze, em tamanho natural, que poderia ser feita por um dos mais geniais escultores do mundo, que - pasmem! - é brasileiro, Ique Woitschach. Uma peça desse tipo permite a interação das pessoas com a escultura, ou melhor, com Nísia Floresta, pois se faz fotografias como se estivesse, de fato, com Nísia Floresta. Poderia-se reconstituir aquele famoso retrato de Nísia Floresta em que ela aparece de pé, segurando um livro. Vejam um exemplo nesses dois links: 
 
 
Pois então… o grande começa pequeno. É necessário o início. É necessário parcerias. É necessário lançar as ideias, comungá-las. O que posso, no momento, é oferecer esse projeto e enviá-lo para todas as autoridades mais significativas do Rio Grande do Norte, em caráter de provocação. As pessoas precisam ser provocadas para, depois, se sentar, discutir e colocar as ideias em prática. Nísia Floresta está à altura das coisas visionárias, pois somente nesses conformes as coisas se tornam referenciais. Como se diz… é o pulo do gato. Entenderam a mina de ouro que eu falei?

 

sábado, 30 de outubro de 2021

Qual a relação do Pan ran pan pan de Cuba com o pã rã pã pã da dupla Pirão Bem Mole?

 


A graça da linguagem está em permitir a interpretação. Já disseram lá atrás que “palavras tem que dizer”... É exatamente dizendo que a palavra rola, se desgasta e se transforma. Acontece assim com dizeres antigos, por exemplo, ao falar “Fulano é o pai cagado e cuspido” se deveria dizer “Fulano é o pai escarrado e esculpido”, ou “Quem tem boca vaia Roma” que virou “Quem tem boca vai a Roma”... e milhares de outros ditos, frases célebres, palavras etc.
É com esse raciocínio que trago o drama Parãpãpã, interpretado pela dupla Raimunda e Salete, de Nísia Floresta, município da região metropolitana de Natal. Infelizmente d. Raimunda se encantou há alguns anos, Salete se aquietou e as famílias não quiseram dar continuidade por questões de religião.
Pois bem, explicar o Parãpãpã da dupla nisiaflorestense Raimunda e Salete é dispensável. Já escrevi muito sobre essas duas adoráveis senhoras, que animaram Nísia Floresta por vários anos, interpretando belos dramas. O assunto, hoje, é sobre os bastidores do Parãpãpã, e justamente aconteceu com esse drama o que aconteceu com os ditos populares. Rolaram tanto no boca-a-boca do tempo que se transformaram... se lapidaram... chegaram a Nísia Floresta.
Antes de tudo, vamos visitar esse vídeo muito divertido do ”Pãrãpãpã”, interpretado por Didi, dos Trapalhões:
 
 
Quer entender o imbróglio? Então comecemos do começo. Primeiramente, vamos ler a versão interpretada por Raimunda e Salete, depois assistir aos vídeos abaixo, que nos levam a raiz da história, permitindo saber qual a relação do pãrãpãpã da dupla Raimunda e Salete com o Pan ran pan pan que veio de Cuba:
 
PÃ, RÃ, PÃ, PÃ, PÃ, PÃ... 
 
As moças que vêm de Cuba
Que vão prá praia prá namorar
Sou eu alma resguardada
Tenho vergonha de me mostrar
As moças que vêm de Cuba
Que vão prá praia toda manhã
No fim de tudo elas querem
É pã, rã, pã, pã, pã, pã... (bis)
Um dia um moço bonito
Estava querendo me namorar
E falou no meu ouvido
Segredos que eu não vou revelar
Eu não vou prás conversas
Daqueles falsos galãos (galãs)
No fim de tudo eles querem
É pã, rã, pã, pã, ninguém é besta não. (bis)
 
Agora, vamos apreciar a versão original, de autoria do artista cubano Sergio Karlo. Na realidade, o nome dessa música é "NEGRO DE HAVANA", mas, precisamos abrir uma exceção para Nísia Floresta, onde ela assumiu o apelido de "Pãrãpãpã". Se bem que há um vídeo com Ney Matogrosso com o título Pan ran pan pan. Se quiser acompanhar a letra, segue abaixo a original:
 
 
PAN RAN PAN PAN (Sergio de Karlo)
 
De todo negro de Havana
Yo soy el negro mas guapeto
Yo soy el mas cumbanchero
Que se pasea por malecon
Las negras se vuelvem locas
Por mi cintura montada en flan
Por que dicen que yo tengo
Paranpanpan
Negra mueve la cyntura
Negra echate pa ca
Dejame sentir my negrita santa
Toa tu sabrosura
Mira, que no puedo mas
Ayer una mulatica
Como queriendo me namorar
Me dijo negrito santo
Quiero que tu seas mi papá
Fuimos a su apartamiento,
Y como donde las toman, las dan
Ao verme solo con ella
Paranpanpan
Negra mueve la cyntura
De todo negro de Havana
Yo soy el unico que habla ingle
Yo se decir guachinanga
Y en un apuro contesto yes
Toda las americanas
Dicen que vievem a turistear
Pero vieven a l'Havana
Paranpanpan
 
Aprecie, agora, a bela interpretação de Ney Matogrosso para o “Pãrãpãpã”, sem a participação de Didi, dos Trapalhões:
 
Veja, agora, a letra de “Pãrãpãpã” em língua portuguesa. Observe que o enredo está anos-luz da interpretação da dupla Raimunda e Salete, embora há dois pontos de semelhança:
 
PÃ RÃ PÃ PÃ
 
De todos os negros de Havana
Eu sou o homem negro bonito
Eu sou o ma 'cubano
Que caminha ao longo do calçadão
Mulheres negras enlouquecem
Pela minha cintura montado em um flán
Por que eles dizem que eu tenho
Pa corria pão pão pão pão
Pa ran pan pan pan pan
Ai, Negra, mexa sua cintura
Ai, preto, deite-se
Deixe-me sentir, minha santa ousada
Todo o seu sabor
Sim, olha que eu não posso mais
Ontem uma mulata gostava de querer que eu me apaixonasse
Ele me disse: "Caramba, menino negro, quero que você seja meu papai"
Fomos ao apartamento dele e para onde os levam?
Me vendo sozinho com ela
Pa ran pan pan pan pan
Ai, Negra, mexa sua cintura
Sim, preto, deita-te
Deixe-me sentir, minha santa ousada
Todo o seu sabor
Sim, olha que eu não posso ma '
De todos os negros de Havana
Eu sou o unico que fala ingles
Eu sei dizer "guasimara" e com pressa respondo "sim"
Todos os americanos dizem que vêm em turnê
Mas eles vêm para Havana
Pa corria pão pão pão pão
Ai, Negra, mexa sua cintura
Sim, preto, deita-te
Deixe-me sentir, minha santa ousada
Todo o seu sabor
Sim, olha que eu não posso mais
Ontem uma mulata gostava de querer que eu me apaixonasse
Ele me disse: "Caramba, menino negro, quero que você seja meu papai"
Fomos ao apartamento dele e para onde os levam?
Me vendo sozinho com ela
Pa corria pão pão pão pão
Pa ran pan pan pan pan
Sim, preto, deita-te
Deixe-me sentir, minha santa ousada
Todo o seu sabor
Sim, olha que eu não posso ma '
De todos os negros de Havana
Eu sou o unico que fala ingles
Eu sei dizer "guasimara" e com pressa respondo "sim"
Todos os americanos dizem que vêm visitar
Mas eles vêm para Havana
Pa corria pão pão pão pão
Pa ran pan pan pan pan
Sim, Negra, mova o cinto
Sim, preto, deita-te
Deixe-me sentir, minha santa ousada
Todo o seu sabor
Sim, olha que eu não posso mais.
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Como disse lá em cima, a beleza da linguagem está em permitir a interpretação, embora, nesse caso, a beleza do “Pãrãpãpã”, da dupla Raimunda e Salete, está na graciosidade e na reinvenção, ou releitura. Confesso que não sei como ocorreu essa lapidação, mas, para mim é fantástica. Quando elas cantavam, o povo ia ao delírio... olha aí como a palavra, de fato, tem que dizer!
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Quer conhecer a história da dupla Pirão Bem Mole? Clique abaixo:
Agora aprecie uma novidade sobre o Pirão Bem Mole:
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OUTRAS INTERPRETAÇÕES INTERNACIONAIS DE PAN RAN PAN PAN:
RODRIGO BUENO:
ORQUESTRA ROMÂNTICOS DE CUBA (3ª MÚSICA, 8,04min.):

 

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Antropofagia evangélica...

 

ESCREVI O TEXTO ABAIXO NO FACEBOOK,  DIA DA ELEIÇÃO QUE ELEGEU BOLSONARO (Recebi essa lembrança e postei como reflexão, pois não faltou quem alertasse)...
 
HOJE É O DIA MAIS SÉRIO DO BRASIL - DE UM LADO O CANDIDATO QUE REPRESENTA A TORTURA E A RESSUCITACÃO DA DITADURA MILITAR - DO OUTRO LADO O HOMEM QUE REPRESENTA A DEMOCRACIA PLENA, A LIBERDADE A DIPLOMACIA E A CIVILIDADE
 
Qual o candidato que se refere aos nordestinos como raça? Sobre isso ele esquece que o Nordeste é berço de grandes gênios de todas as áreas do conhecimento, inclusive as Ciências Exatas.
Qual o candidato que bate continência, pasmem, para a bandeira de um país que está por trás de todas as guerras dos Últimos tempos no Mundo, inclusive o que se passa na Venezuela, onde estão doidos pelo petróleo dali. Lembre-se, eles estão de olho na Amazônia, nas nossas riquezas naturais, principalmEnte petróleo e água.
 
Qual o candidato que se refere aos pobres "com o titulo na mão e um diploma de burro no bolso"?
Qual o candidato que diz com orgulho que não queria im filho ou filha homossexual, como se essa excelência genética pudesse ser comparada a algo nocivo como duas ideias toscas e ignorantes ao estilo de tortura e ressuscitacão da Ditadura Militar?
 
Qual o candidato, vejam o nível de desequilíbrio, contradição e despreparo desse senhor, que cogita a possibilidade de um ator gay (se referindo ao possível governo do seu concorrente Haddad) ser seu futuro Ministro da Cultura?
 
Qual o candidato que se refere aos negros como se referissem a animais irracionais, dizendo nomenclaturas desprezíveis (usou a palavra arroba para se referir ao peso dos quilombolas), taxando-os como "preconceito", justamente uma etnia tão forte, poderosa e, pior, até hoje com sequelas da triste historia da escravidão?
 
Qual o candidato que votou contra todos os direitos das dignas empregadas domésticas em seus mandatos de deputado?
 
Qual o candidato que elogia e admira torturadores e ditadores militares?
Qual o candidato que, antes de ganhar, fala com orgulho sobre possibilidades de prisões e exílio ao pessoal de esquerda?
 
Eu voto em HADADD porque ele é o contrário de tudo o que representa o ódio e o atraso. Voto num homem que representa a democracia e a liberdade de expressão, bens nobres e fundamentais, que podem alçar o nosso querido Brasil à condição de nação civilizada e cidadã. Isso é um processo que um admirador de torturadores jamais poderia fazer, pois representa a própria tortura e não reúne condições intelectuais e equipe para tal. Seria um mamulengo com fortes possibilidades de ter o poder tomado por aliados. Suponho até mesmo que um plano escabroso esteja sendo ensaiado pela própria Direita tão acostumada a dar golpes. 
 
Nunca vi tanta torpeza, tosqueza, truculência e, ao mesmo tempo, tanto circo. A Democracia é um bem nobre e intocável, e devemos nos afastar de tudo o que for contrário a ela. Se houve erros por parte de alguns que se fantasiaram de homens de esquerda, que eles respondam perante a Justiça. Que hajam provas e a verdade prevaleça. A esquerda é a única que está ao lado dos pobres e das minorias.
Temo pelo meu filho, por ser um destemido defensor da liberdade, e já está assistindo dentro da UFRN, atos de ditadura, coisa execrável, que jamais deve ser ressuscitada. Os que defendem esse indíduo tosco e ensandecido, misto de Hitler com Trump, se arrependerão quando verem seus filhos vitimados por ditadores e torturadores. Temo por milhares de brasileiros que, iguais a nós, abominam o que já se ensaia no Brasil. 
 
Por tudo isso eu peço a todos os Brasileiros: digam não a quem admira a tortura e ditadura. Saiam dese pesadelo, desse feitiço impetrado por terrível equívoco. (28.10.2018)

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Branca Alves de Lima, ela me alfabetizou...


Professora Branca Alves de Lima. Heroína da educação nacional, nasceu em 1911, no interior de São Paulo e morreu em 2001, aos 90 anos de idade. Ela criou a cartilha “Caminho Suave” em1948, que por meio século alfabetizou perto de 40 milhões de crianças e adultos, ao longo de décadas...
 
Lembro-me, fotograficamente dessa cartilha, cuja autora usava o método analítico, hoje praticamente extinto. Cada letra do alfabeto era relacionada a uma imagem que tinha a ver com o som da vogal ou consoante. Por exemplo, a frase "Eu vejo a barriga do bebê" era mostrada de maneira que a letra b (de imprensa/minúscula) era a própria barriga do bebê. A autora explorava a letra de maneira que parecesse com algo que tivesse aquele som, ou seja "b" de barriga. Para tornar mais lúdico aos olhos infantis, ela colocava um rostinho de criança na parte de cima da letra "b", e umas perninhas abaixo da parte arredondada da consoante, de maneira que a parte arredondada fosse a barriga. E assim surgia o ba, be, bi, bo, bu, em fila, como se fossem crianças caminhando.
 
Interessante que essa lógica era usada em todo o alfabeto, de maneira que, a partir do momento que você dominasse as vogais e aprendesse as consoantes, captava no ar as palavras. Obviamente que eram palavras muito comuns e curtas, como ovo, uva, gato, cachorro, chapéu, macaco... mas assim a gente aprendia a ler o mundo. Se estivesse passando na frente de um supermercado que tivesse tais letras garrafais na parede, ficávamos soletrando, escandindo as sílabas SU...PER...MER...CA...DO... e logo dizia, num rompante, SUPERMERCADO! Em casa, olhando as coisas escritas, a gente ia decifrando lentamente, com certa dificuldade. Era uma glória de outro planeta quando interpretava a palavra ou frase. Só assim a gente falava em voz alta a frase, e de maneira rápida. Era sinal de poder. EU SEI LER! pensávamos, bem felizes.
 
Dia desses o despresidente da desrepública falou sobre essa Cartilha. Então me lembrei dela, e uns dois dias depois fui buscá-la na internet, supondo ter ainda o preço módico constatado tempos antes, numa breve curiosidade. Porca miséria! A cartilha estava superfaturada. A fala do despresidente jogou o preço da cartilha para os ares. 
 
Estou aguardando o preço voltar a ser módico. Espero que o despauterado cale a boca doravante! Disse Ludwig Wittgenstein que "sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar". Sei que isso é outra história, uma viagem para outros ares da Filosofia, mas não sei porquê senti vontade de trazer para essa reflexão.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Sobre o tombamento da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, em Nísia Floresta, Rio Grande do Norte...

 


Nos últimos dias muitos nisiaflorestenses têm entrado em contato comigo perguntando se é verdade que a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, de Nísia Floresta/RN, já está tombada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Houve quem dissesse ter ouvido de uma autoridade que ela está tombada desde 2020, MAS ISSO NÃO PROCEDE E A IGREJA NÃO ESTÁ TOMBADA. Essa solicitação de tombamento, como é de conhecimento de muitos, foi feita por mim, visando a garantia da preservação de sua arquitetura e, na realidade, todo o seu contexto de originalidade que deve ser imutável.
Em se tratando do tombamento da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, o processo está em trâmite, tendo em vista uma série de requisitos e procedimentos necessários, envolvendo uma equipe de técnicos e especialistas, todos em andamento, perpassando pela Fundação José Augusto, Conselho Estadual de Cultura, Centro de Documentação Eloy de Souza (CEDOC) e o próprio IPHAN/Natal. O que sei até o presente momento, e que me foi repassado pelo pela Fundação José Augusto, é justamente o que escrevi acima.
Muitas pessoas me perguntam qual a vantagem de se tombar um prédio histórico em âmbito de uma igreja. O tombamento impede que tal prédio venha a ser destruído ou descaracterizado. Um bem tombado deve manter as características de sua originalidade. Um exemplo é a igreja de Nossa Senhora da Apresentação (antiga catedral de Natal), a qual foi submetida a uma longa restauração de quase cinco anos, em 1996, e devolvida ao povo com todas as características originais de sua fundação. Durante o processo, que inclusive tive o gosto de contemplá-lo várias vezes - tendo em vista que o responsável pelo mesmo - era Pedro Tadeu, um professor pernambucano que tive na UFRN. Sua equipe (formada por especialistas) descobriu detalhes preciosos, sufocados há anos por antigos padres que pensam que restaurar é passar tinta a óleo em peças de prata pura. E nessa tônica eles descobriram antigas portas, antigas janelas, piso original, partes em pedra (que pensavam ser cimento), pinturas de mais de 200 anos e, impressionantemente, os restos mortais de André de Albuquerque Maranhão, que há mais de um século era procurado, em vão. Vejam quão importante é um trabalho feito por especialistas e técnicos.

Vejam o estrago feito ao teto do altar-mor, em que destruíram todos os ornamentos em alto e baixo relevos, que se harmonizavam com toda a decoração original da igreja e - pasmem! - colocaram madeira preta no lugar. Antes havia a plenitude do branco, em conformidade com a Escola Barroca, cuja ideia era que o altar-mor lembrasse o céu.
Um prédio tombado, desde que administrado por uma pessoa esclarecida, e por uma população zelosa e consciente de sua importância, prediz um olhar constante, pautado de cuidados. O problema quase sempre é a manutenção. Brasileiro parece não gostar de manutenção. Aí reside o problema. O Brasil é um dos países da América Latina que mais possuem igrejas antigas, e normalmente algumas se danificam bastante por falta de planejamento e programação com os cuidados necessários. Reformar e restaurar um prédio como esse prediz um planejamento com muita antecedência. É um projeto amplo,cuja reforma e restauração se darão ao longo de dois a três anos. Primeiro vem o dinheiro. Não se começa uma obra como se consertasse uma canoa velha. Cuidar de uma igreja é parecido com cuidar da nossa casa. Se eu costumo pintar o lar onde moro para estar bonito durante o Natal e Ano Novo, tenho que me programar a partir de junho, garantindo a tinta, as lixas, a massa corrida, o dinheiro para pagar o pintor e o ajudante e tudo mais que for necessário. Eu não posso chamar o pedreiro em dezembro, sem esse planejamento, e dizer “pinte a casa”.
Uma igreja tombada pelo IPHAN prediz justamente um planejamento e uma programação para garantir os recursos para a REFORMA e também para a RESTAURAÇÃO. São duas coisas diferentes. Há coisas que precisam ser REFORMADAS, e outras, RESTAURADAS. Para isso, forma-se um Conselho da igreja, que se junta com o Conselho formado pelo estado (inclusive no próprio município), cuja REFORMA e RESTAURAÇÃO será pensada e planejada sob o olhar de todas as partes. E será definido: 1) O que será reformado, 2) o que será restaurado, 3) a busca por recursos (parceria entre estado e iniciativa privada), 4) a garantia de especialistas em patrimônio histórico no acompanhamento (engenheiros, arquitetos, técnicos, especialistas em restauração, historiadores com especialidade nessa área). E quando se fala de uma igreja, entra, também, obviamente, os recursos do dízimo.
EXEMPLO DE REFORMA: pintura externa da igreja, adaptação de dispositivos para inclusão de pessoas com necessidades especiais, conserto da descarga do vaso sanitário, recolocação da fiação elétrica nova etc.

EXEMPLO DE RESTAURAÇÃO: pintura interna da igreja (acaso contenha afrescos: obras de arte sacra pintadas na parede da matriz), polimento de peças de prata e ouro, limpeza e conserto de imagens barrocas que sofreram rachadura, descascaram o folheio a ouro, confecção de partes comidas por cupim, feitas a partir de moldes baseados nas peças originais e recolocação de madeira de igual material ou aproximado, etc. Restaurar é manter a originalidade das coisas ou, em últimos casos, quando tudo estiver destruído, reconstituir. Fazer como era antes.
Pois bem, numa linguagem pedagógica, numa breve síntese, a grosso modo, é isso, nada mais que isso...


segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Atacar o papa Francisco é atacar um dos pilares da lucidez no mundo...

 
 Hoje me mostraram um vídeo em que o desconhecido deputado estadual paulista, Frederico D’Ávila, bolsonarista de carteirinha, xinga o arcebispo de Aparecida, Dom Orlando Brandes, toda a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o papa Francisco de “safados”, “vagabundos” e “pedófilos”. O vídeo choca qualquer pessoa civilizada pelo alto grau de desrespeito, pela falta da necessária diplomacia a seu cargo, e pelo desconhecimento sobre o catolicismo.
 
E eu pergunto: quem é esse indivíduo medíocre, que não representa com honestidade o cargo que ocupa, para atacar Dom Orlando Brantes, uma das autoridades religiosas mais respeitáveis do Brasil? Quem é ele para atacar a CNBB, chamando-a de “câncer”, um dos pilares do Brasil? Quem é ele para atacar o papa Francisco, chamando-o de “safado”, um dos papas mais lúcidos dos últimos tempos. Ele se referiu a dom Orlando e à CNBB como “gente nojenta e imunda”. Chamou todos de pedófilos. Também atacou a Teologia da Libertação, justamente um dos instrumentos da Igreja Católica que ajuda a abrir a mente das massas para se organizarem enquanto instituições e se fortalecerem na fé e na vida, como gente, como pessoas instruídas. É tudo o que os bolsonaristas detestam. Interessante ele ter elogiado as misteriosas Opus Dei e os Arautos da Fé (é algo a se refletirr bem).
 
Na realidade, esse indivíduo, muito bem orientado pela família de Bolsonaro - diga-se de passagem -, jamais atingirá a moral de Dom Brantes, da CNBB e do Papa. Ele está à procura de palco e holofotes. Mas o que ele fez é digno de processo e cassação. Sem contar o fato de chamar o arcebispo e o papa de “pedófilos”. Esses indivíduos adoram confundir as coisas com requintes de maldade, intencionalmente, pois sabem que falam para os seus aliados, os quais, infelizmente, são ignorantes tanto quanto eles, irão reproduzir suas falas e devem achar maravilhoso esse fato desrespeitoso. Infelizmente a internet está aí para comprovar um novelo grande de padres pedófilos que deveriam estar em prisão perpétua. Mas ele jamais deveria colocar dois grandes patrimônios humanos - como o papa e o referido arcebispo - no mesmo bojo. Esse deputado cometeu um crime grave, tão grave quanto a própria pedofilia. E deve responder por isso.
 
Essa turma do presidente da república - juntamente com o próprio presidente da república e sua família - está deseducando o Brasil, ensinando a violência, a calúnia, os ataques truculentos, o desrespeito, a afronta e tudo o que já foi comum quando vivíamos na Idade da Pedra Lascada. Isso é tão grave que não acredito durar muito. Não é possível. Não pode! A civilidade e a cidadania brasileiras estão em queda livre. É uma guerra!
 
Nos meus 53 anos de idade, nunca vi um Governo Federal e equipe tão violentos, bizarros, desrespeitosos, anômalos e ignorantes. Gente que parece ter saído dos porões do mal. Eles vêm conseguindo a macabra façanha de colocar a violência num patamar de valor. Muitas pessoas - principalmente crianças e jovens - sem uma boa formação estão achando que é bonito e correto essa anomalia. É como se eles tivessem se valendo de algo que faltava para lidar com opositores ao seu governo. E o ruim é que essa estupidez é típica de quem não tem condições intelectuais nem inteligência emocional necessárias para gerir o que quer que seja.
 
Atualmente está se tornando “comum” á equipe do Governo Federal atacar autoridades com palavras vulgares e tiradas da lama, sem preocupação alguma com a necessária diplomacia exigida ao cargo que ocupam, como se o ouvido dos brasileiros fosse uma lixeira a receber toneladas de verborragia. São discursos de ódio, profundamente desrespeitosos. Eles não respeitam ambiente algum, nem pessoa alguma. Estão se tornando craques em denegrir respeitáveis pessoas, já que têm sérias limitações intelectuais. São capazes de tudo, até agredir fisicamente.
 
Mas quem é esse deputado desconhecido, que poderia ter ficado famoso por motivos civilizados, por projetos cidadãos, ao invés de chamar a atenção do Brasil pelo show de desrespeito às autoridades e pelo crime que cometeu?
 
Pois bem, assim como o presidente da república diz que o livro de cabeceira dele é a biografia de Ustra, um militar sanguinário, torturador e assassino, esse tal Frederico D’Ávila admira Pinochet, outro militar sanguinário, torturador e assassino. Esse deputado sem escrúpulos é louco por militares, pelo militarismo e Exército. Há um projeto dele que transformou o primeiro dia do mês de julho na data celebrativa do Dia do Policial Militar da Cavalaria. Até aí, tudo bem, mas há pouco tempo ele propôs um ato solene em homenagem ao ditador chileno Augusto Pinochet, morto há 13 anos. Houve um escândalo na Assembleia Legislativa de São Paulo devido à bizarrice e ao desrespeito da proposta. Imediatamente o presidente da Assembleia Legislativa, Cauê Macris, que é do PSDB (vejam que nem de esquerda ele é), proibiu a homenagem, alegando “incompatibilidade com os princípios democráticos e republicanos”. Óbvio!
 
Para quem não sabe, o regime Pinochet é responsável por cerca de 40 mil assassinatos no Chile, durante a Ditadura Militar, que foi ainda incomparavelmente pior que a do Brasil. Esse deputado é produtor rural, conselheiro e diretor da Sociedade Rural Brasileira e vice-presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja. Recentemente ele pediu ao governador João Doria que viabilizasse a extinção do Instituto Florestal e da Fundação Florestal, ambos vinculados à Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente. A finalidade, segundo o deputado, é “cortar gastos”. Vejam quão mal intencionado, ladino, conservador e retrógrado é um homem desse. Num tempo de tanta degradação da natureza, espera-se dos políticos um olhar civilizado às questões agropastoris – como exemplo a Agrofloresta. Mas não. Ele quer destruir os órgãos que protegem as florestas e os mananciais de água, visando avançar as plantações de soja e a pecuária. Só pode não gostar mesmo da Teologia da Libertação!
 
É também dele a autoria do projeto que institui o Programa Cívico-Militar no ensino fundamental e médio da rede pública e privada de ensino, que – em sua fantasiosa mente - prevê aumentar a disciplina e o respeito hierárquico e estimular o “sentimento patriótico” e os “valores cívicos” nas escolas de São Paulo. Excelente proposta, mas onde está a “disciplina” e o “respeito à hierarquia” do próprio presidente da república (que é um militar) e tantos outros militares pelo Brasil? Que respeito o presidente tem pelo povo brasileiro? Que história é essa de afirmar que tais práticas cívicas não existem nas escolas? Como uma escola funciona sem disciplina e sem respeito às hierarquias? Ele deveria visitar as escolas públicas brasileiras. 
 
Esse deputado, equivocado, ao invés dessa insanidade, deveria apresentar um projeto em que o PIB da Educação fosse condizente com a sua importância na formação de uma nação, cujas escolas públicas brasileiras recebessem toda a estrutura física, educacional e cultural, e que os professores e equipe técnica e pedagógica recebessem o mesmo salário de um deputado. Nem precisaria dos tantos outros auxílios que eles recebem. Aí, sim, as escolas não precisariam de gente ignorante falando dela, propondo educação pelo medo, pelo sofrimento e outras insanidades típicas de quem fala sobre o que não conhece. Se existem algumas escolas públicas que não funcionam bem é porque deputados como ele não lhes dão a devida assistência, pois a maioria dos professores brasileiros é constituída de heróis e obram milagres. Ele, deputado, representante do Estado é, sim, o culpado pelo que condena nas escolas.
 
Outra proposta dele visa obrigar os alunos de ensino pré-escolar, fundamental e médio do estado a cantar o Hino Nacional e o Hino da Independência. Vejam só, esse cidadão é conhecido por ser admirador ferrenho dos militares e militarismo. Gosto é gosto, mas isso já existe. Ele deveria visitar as escolas brasileiras, todas, para ver os alunos nesse ato tão comum. O que se percebe é que eles plantam uma mentira (alegando que as escolas não valorizam o civismo), veiculam essa mentira no Brasil inteiro e aparecem como se eles fossem os idealizadores de uma “novidade” boa, salvadores do patriotismo, da religião, da moral e dos bons costumes. Na realidade, são hipócritas, mal informados e mal intencionados. Mentirosos, na verdade. Na verdade eles não estão preocupados com as crianças e jovens. Isso é só um marketing inventado pelo presidente. O civismo que salva o mundo é o civismo da barriga cheia, da educação de qualidade, do professor recebendo o mesmo salário dos deputados. Por que eles não estão preocupados com esse civismo? Isso é civismo, sim. Ele deveria ler a Constituição Brasileira no que se refere a essa orientação cívica. As escolas respeitam e praticam o civismo que ele diz não existir. Mentiroso!
 
Outros dois projetos inacreditáveis desse indivíduo apelidado de deputado – iguais a tantos outros - que deveria estar fazendo outra coisa, menos legislando, é o Projeto de Lei Complementar que prevê a extinção da Ouvidoria da Polícia Militar do Estado de São Paulo e alguns cargos na Secretaria de Segurança Pública. O primeiro órgão tem como função servir como um canal aberto à sociedade civil para queixas, denúncias e sugestões contra atos praticados por agentes policiais do estado. Vejam como esse deputado sem princípios e ignorante é contra o povo. Quer tirar dos cidadãos o direito de denunciar, falar, se defender e exigir seus direitos. 
 
A Polícia Militar brasileira é uma das que mais mata, pois infelizmente ela não é qualificada como deveria. Não era para ele propor um projeto para estruturar e qualificar a PM para que ela faça um trabalho de excelência? Se investissem pesado na Educação Pública e nas Polícias, teríamos um país de paz e cidadania, pois todo policial teria passado por uma escola de qualidade, teria passado por professores marcantes e, consequentemente, seria hoje um policial civilizado e cidadão. Quem só se vale de armas, jamais entenderá que a Educação e prevenção é tudo. Foi por isso que Dom Brantes disse que o Brasil "para ser pátria amada não pode ser pátria armada". Isso é de uma lucidez incrível!
 
Agora vejam outro absurdo sobre esse deputado. Ele é mal e bizarro em quase tudo. A Monarquia Brasileira acabou desde o dia 15 de novembro de 1889, depois de quase 70 anos de autoritarismo, como bem a denunciou a insigne potiguar Nísia Floresta Brasileira Augusta. Pois bem, esse confuso deputado também é profundamente apaixonado pelo regime monárquico (já imaginou bater no liquidificador monarquia com militarismo? O que vai dar de ainda mais ruim?) Recentemente ele escreveu: “Se estivéssemos na monarquia, corruptos travestidos de políticos dificilmente teriam espaço na nação. Quinze de novembro: nada a comemorar.” Ora! E porque ele não ataca a rachadinha republicano-bolsonarista?
 
Em outra publicação, esse deputado disse: “Se o Brasil ainda fosse uma monarquia, nunca teríamos uma suprema corte dominada por párias e a ameaça socialista estaria a léguas de distância. A coroa é um antídoto contra a corrupção”. Rachadinha, agora, virou coroa?
 
Um homem ignorante e bizarro como esse não tem lucidez. A Monarquia teve os seus valores, sim, mas ela pertenceu a outro tempo. Hoje é ultrapassada. Até os países que a praticam hoje, se valem da tônica republicana para sobreviver, através dos ministros. E sobre a corrupção, isso é um desvio de caráter – uma coisa humana – obviamente que abominável – mas não seria a monarquia que a extinguiria. Esse deputado deveria ler mais a História do Brasil e livros de Sociologia para saber sobre autoritarismo do governo monárquico – que “aos portugueses tudo, e aos nativos, nada”, e as mais impensáveis práticas de corrupção monárquicas.
 
Ainda sobre o episódio de ele homenagear o assassino Pinochet, quando ele propôs esse ato criminoso, que fere a Constituição Brasileira, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo condenou severamente, escrevendo: “A sessão é uma afronta ao Estado Democrático de Direito, aos princípios constitucionais do pluralismo político e da dignidade da pessoa humana, além de constituir apologia aos crimes praticados pela ditadura que, no Chile, entre 1973 e 1990, violou direitos humanos pelas práticas de torturas, estupros e desaparecimento forçado de pessoas, dentre outros crimes contra a humanidade”. Enquanto isso, o covarde passou vários dias escondido, fingindo estar doente. 
 
Na realidade ele viu o estrago que fez. Já perceberam que eles pensam que podem fazer o que dá na telha? E que quando dão conta do problema grave, recuam? Lembram do golpe que Bolsonaro tentou dar a poucos dias e frustrou os caminhoneiros? Gente ignorante age sempre assim porque não tem conhecimento. Não sabem para onde vão. E o Brasil está nas mães desses seres vazios e perigosos.
 
Há pouco tempo ele usou a tribuna da Assembleia Legislativa para intimidar a deputada Mônica Seixas (PSOL-SP) com fotos de cadáveres de militantes de esquerda. Ele começou seu discurso exibindo uma máscara com o logo de uma corporação da Polícia Militar, “em homenagem” a Mônica Seixas, que tem cobrado o uso do acessório de segurança por parte de parlamentares bolsonaristas. 
 
O deputado, então, exibiu no plenário fotos dos cadáveres de Carlos Lamarca e Carlos Marighellas, dois dos principais ativistas contra a ditadura que se envolveram na guerrilha armada e que foram mortos pelos militares golpistas nos anos de chumbo. “Quem luta contra o país acaba assim. Esse aí é o Carlos Lamarca, lutou contra o país e terminou assim. Conspirou contra o país e terminou assim. E esse é o Marighella, que é muito endeusado, e terminou assim. Vou lembrar como terminam os conspiradores da nação”, disse ao mostrar as fotos, num claro sinal de ameaça de morte à deputada. 
 
A parlamentar do PSOL anunciou denúncias por ameaça e apologia à ditadura contra D’Avila na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e na comissão de ética da assembleia paulista.
 
O que se esperar de um homem que admira um assassino, que favorece um presidente execrado pelo mundo, que comunga com ideias ultrapassadas, retrógradas, violentas, que foi eleito pelos latifundiários, grandes fazendeiros, ruralistas, plantadores de soja, gente que põe fogo nas matas nativas para avançar suas cercas e mata índio sem pestanejar? 
 
O motivo que mais me preocupa nisso tudo é ver esses seres bizarros fazendo mal uso do respeitável cargo que ocupam, inspirando perigosamente as crianças e os jovens, exercendo nelas influências maléficas terríveis, como desrespeitar pessoas da mais alta respeitabilidade. 
 
Está se tornando “normal” faltar respeito às autoridades sérias. Se ele tivesse de usar aquelas palavras terríveis, que as dirigisse ao presidente da república - embora nem a ele seria correto - pois o povo brasileiro já sabe quem é ele. Ele, sim, combina com aqueles impropérios, afinal os vídeos de seus shows de horrores estão aí para todos assistirem. Ele, sim, não merece nem tanto o respeito de ninguém, pois não dá respeito. É tosco, chulo, vulgar, megalomaníaco, mal educado, mal intencionado, corrupto, sem preparo intelectual, sem diplomacia. Está na presidência por fatalidade.
Espero que o Brasil esteja atento a esse fato e não se cale...

 

sábado, 16 de outubro de 2021

Padre João Maria, da Vila Imperial de Papary a Natal: O rastro de um santo



PADRE JOÃO MARIA

DA VILA IMPERIAL DE PAPARY A NATAL: O RASTRO DE UM SANTO

(POR LUÍS CARLOS FREIRE – 2015)

Jumento ou jerico, no nordeste brasileiro, é animal utilizado para cangalhas. Seja no serviço de transporte de cargas ou para ser cavalgado por pessoas pobres, de ínfimas condições, por empregados e agregados, o jumento é para cangalhas, no sertão nordestino. Essa é a regra geral. Cavalgar jumento sem sela é motivo para galhofas e chacotas, para referências crítica. Quem possui sela deve possuir cavalo, ou burro, para cavalgar. A exceção indica inferioridade econômica e social, perante o meio, demonstrando desajustamento financeiro, relegando ao indivíduo para iniludível rebaixamento em relação a seus pares. É índice de patrimônio acabado, de posição social inferiorizada pela falta de dinheiro”. (COUTINHO FILHO, F. Violas e Repentes: repentes populares, em prosa e em verso; pág. 237; pesquisa folclórica no Nordeste Brasileiro, 2ª Ed. Melhoramentos. Rio de Janeiro, Leitura; Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1972).

Desde que lancei meus olhos à história do padre João Maria, enxerguei um aspecto que supera a sua religiosidade. Não diria a sua santidade, até porque a meu ver ele tornou-se santo não porque foi padre, mas porque foi um ser humano incomparavelmente evoluído. Passei a admirar a sua inteligência, sua personalidade, seu estilo de vida e caráter singulares. E chamou a minha atenção de maneira muito especial ele ter sido visionário. Um ser humano muito a frente de seu tempo e isso não é divulgado como deveria.

A maioria das pessoas conhece a história de um padre bonzinho, caridoso, prestativo, montado no lombo de um jumentinho visitando os pobres etc... De fato é esse o padre João Maria, mas há capítulos extraordinários de sua vida que não são divulgados. Entendo que a santidade do padre João Maria é uma condição raríssima que acomete pouquíssimas pessoas, independente de serem religiosas ou não. Mas ele, independente de ter sido padre, foi santo na plenitude da palavra. Prova disso nos vem quando perguntamos: onde encontramos os homens e as mulheres iguais ou semelhantes ao padre João Maria nos dias de hoje? Quais os santos que você conhece pessoalmente?

Foi exatamente por isso que resolvi juntar fragmentos de matérias que li sobre ele ao longo dos anos, artigos em jornais antigos, material escrito por ele, coisas de “ouvir dizer”, livros, revistas, recortes etc. Creio que é necessário conhecermos a sua história para refletirmos com outras pessoas sobre a importância de se preocupar com o bem estar do próximo, seja mental ou fisicamente.  Ele foi exemplo em caridade, justiça, humildade e em se colocar no lugar dos outros. Sua humildade extrema não o impediu de ser um homem moderníssimo, que pensava em melhorar o futuro. É como se ele plantasse árvores de damasco, as quais – se não forem geneticamente modificadas - só dão frutos quando completam cem anos. Quem planta damasco, planta para os outros.  Ele lutou contra as desigualdades sociais. Esse é o padre João Maria que passei a admirar.

 Quando olho esse monumento humano, vem à mente uma reflexão que ainda não ouvi de outra pessoa. E essa reflexão me impressiona. Creio que a estadia desse singular sacerdote na então Vila Imperial de Papariy no Rio Grande do Norte, santificou os ares locais. Ele deixou sepultada uma semente que, muitos anos depois germinaria um projeto conhecido em todo o Brasil. Sem dúvida, mesmo involuntariamente – e mesmo que alguns não admitam ou desconheçam – ele foi o grande inspirador da Campanha da Fraternidade surgida em 1962, coincidentemente em Nísia Floresta.

Antes e depois dele, seja na Vila Imperial de Papary, ou em toda a província e futuramente estado do Rio Grande do Norte, nenhum padre se encaixa nessa condição visionária e audaciosa, no aspecto de criar ferramentas institucionais de fundamental utilidade social, dentro e fora da igreja. E essa campanha visionária que surgiria 86 anos após sua estadia na então Vila Imperial de Papary – por ironia do destino, na própria Vila Imperial de Papary (então Nísia Floresta), pelas mãos da CNBB, em especial através do padre Dom Eugênio Sales – faz-nos reconhecer o quanto o município de Nísia Floresta foi importante na vida desse santo seridoense.  Perceberemos isso no corpo desse texto que construí ao longo de anos, juntando materiais escritos e testemunhos de bisnetos de pessoas que conheceram esse sacerdote.

Padre João Maria Cavalcanti de Brito nasceu no dia 23 de junho de 1848, na fazenda Logradouro, naquela época a área onde estava plantada essas terras pertenciam ao município de Caicó. Hoje integra o município de Jardim de Piranhas. Era filho da dona de casa Ana Barros Cavalcanti e do professor primário Amaro Soares Cavalcanti de Brito, pais de treze filhos. A casa pertencia aos seus avós capitão Antonio Barros Cavalcanti e dona Felicidade Cavalcanti. A fazenda ficava a 12 km de Caicó. Para entendermos um pouco o contexto da época que o padre João Maria nasceu, ressalvemos que nos anos de 1844, quatro anos antes de ele nascer, registrava-se na província do Rio Grande do Norte uma massa populacional de 149.072 habitantes, sendo a mesma distribuída em 130.919 homens livres e 18.153 escravos. São José de Mipibu, um dos maiores centros açucareiros da província, por volta de 1855 chegou a ter um contingente de cerca de 9.816 escravos trabalhando em seus engenhos.

O casal teve dois filhos que se tornariam famosos, embora em missões completamente diferentes. A família era simples, mas viviam com certo conforto. Aos quatro anos João Maria se ajoelhava diante dos oratórios em contrição, causando admiração a todos. Era observador e contemplador das imagens religiosas e das orações que os pais faziam. Uma de suas características era a obediência aos pais e lealdade aos amigos.

Desde cedo ele manifestou curiosidade por homeopatia. Vivia perguntando aos pais sobre a serventia das plantas medicinais e assim aprendeu a propriedade dos remédios naturais para as doenças mais comuns de sua região. Na primeira vez que ele foi a uma festa da padroeira, quis entender a sua composição e o que se passava no altar. Priorizava receber a benção do padre.

O pai responsabilizou-se pela alfabetização dos filhos. Com dez anos de idade João Maria dominava as quatro operações com perfeição. Lia tudo, livros, jornais ou revistas. Os professores o apontavam como exemplo, dizendo nunca ter visto criança mais inteligente. O pai já não tinha mais condições de ensiná-lo diante das aspirações do filho, portanto confiou-lhe ao conceituado professor Manoel Pinheiro, o qual recomendou-lhe enviá-lo para Caicó. Em Caicó, o pequeno João surpreendia seus amigos de sala e os próprios professores com sua capacidade surpreendente de aprender, ordenar as idéias e externá-las.

João Maria sempre foi uma criança serena, diferente de Floriano, mais expansivo e comunicativo. Dizia aos pais que queria ser padre, e não enfrentou reprovação, mas como seu desejo era muito precoce, o deixaram livre.  Um dia confessou que seu grande sonho era ir para o seminário. Ao pedir autorização para sua mãe, ela o abraçou e disse-lhe “sim” com um beijo na testa.

Quando ele pediu novamente que o enviassem ao seminário, os pais sentiram que a intenção era verdadeira e ele estava convicto. Em 1861, aos 13 anos, o pré-adolescente foi encaminhado para o seminário de Olinda, onde proclamou-se discípulo de São Francisco de Assis, argumentando que ele era exemplo para quem quisesse se santificar. Ali cursou o seminário menor e o terceiro ano de Teologia, recebendo as ordens menores. Encerrada essa etapa, realizou os estudos de seminário em Fortaleza, capital do Ceará, onde já trazia a fama de sua ilustração e de comportamento irreputável.

Em fins da década de 1870, a província do Rio Grande vivia um momento de grande crescimento econômico, incluindo a indústria canavieira, e por isso necessitava de um número maior de mão-de-obra escrava. O Rio Grande do Norte tornava-se nesse tempo um dos mercados compradores de escravos. Desde então ampliou-se o cenário da escravidão. Isso incomodava o padre João Maria, o qual não entendia como homens que se proclamavam cristãos, eram proprietários de pessoas, eram donos da liberdade alheia.

Na terra de José de Alencar ele estudou Filosofia e Teologia. Sua ordenação como diácono se deu no dia 6 de novembro e diaconato a 30 de novembro de 1871, tornando-se presbítero. Essas ordens foram conferidas pelo bispo diocesano, Dom Antonio dos Santos. Um mês depois foi nomeado coadjutor na igreja matriz de Santana, em Caicó. No dia 10 de dezembro de 1871, aos 23 anos de idade, celebrou a sua primeira missa nesse município. O pároco daquela cidade era o Cônego Manoel Paulino de Souza. Uma multidão acolheu o jovem padre, o qual foi recebido pelas autoridades e paroquianos da capital do Seridó. Durante a festa da padroeira, celebrou na Matriz de Santana, cercado de conterrâneos e familiares..

Sua primeira comunidade foi o povoado de Jardim de Piranhas, onde residiam seus pais. Ali ele abriu uma escola para crianças pobres em sua casa, desdobrando-se como sacerdote e professor. Ele sempre demonstrou preocupação com a educação. Naquele tempo uma epidemia de varíola acometeu o Seridó, despertando a piedade do jovem padre que decidiu peregrinar o lugarejo, indicando remédios caseiros e alternativas para aliviar o terrível mal. Essas visitas eram marcadas por orações e conselhos, fatos que tranqüilizavam e traziam paz para as famílias tão isoladas e desassistidas. A presença do jovem sacerdote era como bálsamo. Desde então, para facilitar as suas atividades, ele adotou como transporte um jumentinho que o acompanharia para o resto de sua vida. Foi sua marca registrada.  Assim teve início o seu trabalho de caridade que marcaria a sua vida e a de muitas pessoas.  

O único luxo do padre João Maria – se assim se deve dizer – era um breve repouso após o almoço, fazendo jus à tradição que os portugueses espalharam por todo o Rio Grande do Norte, a famosa “sesta”. Enquanto muitos dormiam mais de duas horas entre a virada do dia para a tarde, ele repousava no máximo uns cinqüenta minutos. Sua prioridade era percorrer as cercanias de Jardim de Piranhas e Caicó, dia e noite, sob sol ou chuva, evangelizando e ajudando o povo com suas mezinhas. Amava o que fazia. Ele também foi vigário no povoado de Flores, hoje Florânia. Os seridoenses o apelidaram de “padre médico”, olhando-o com extremo carinho e admiração. Não havia quem tivesse contato com ele e não percebesse se tratar de um ser humano dotado de uma luz especial.

Sua missão em Jardim de Piranhas durou cinco anos. Em seguida ele foi transferido como vigário para Santa Luzia do Sabugi, no estado da Paraíba. Antes de deixar definitivamente a sua região, ele seguiu para Acari. Em 1876 a Vila Imperial de Papary, hoje município de Nísia Floresta, teve o prazer de recebê-lo. Ele contava trinta anos de idade e cinco anos de experiência sacerdotal,

VILA IMPERIAL DE PAPARY

Em agosto de 1876 ele chegou à Vila Imperial de Papary no lombo de um jumento trazido do Seridó. Nos burros de bagagem vieram livros, rede, lençol, algumas peças de roupa, rapadura, farinha, carne assada e moringas com água. Ali fez o curso para vigário, tornando-se vigário colado na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó. Sua posse foi marcada por uma festa simples. Paroquianos, autoridades e o padre que o antecedia o a com a alegria. Nesse dia o povo sentiu ter recebido um sacerdote muito especial.

O censo datado de 1872, quatro anos antes de o padre João Maria chegar à Vila Imperial de Papary, revelava uma população de 233.979 habitantes na província do Rio Grande, distribuída em 102.465 brancos, 30.031 de negros e o restante 101.483 classificados como pardos. A Vila Imperial de Papary ainda estava sob os efeitos de um acontecimento desagradável e que chocaria o jovem sacerdote, cuja vida era pautada por amor e bondade.

Encontrava-se em trâmite o processo que tratava da tentativa de assassinato do delegado daquela vila imperial. Ele chegou a ser baleado, e para a surpresa e decepção do padre João Maria, entre os principais suspeitos estavam o padre da localidade Manoel Fernandes Lustosa Lima, o coronel Alexandre Francisco de Oliveira (Cavaleiro da Rosa), e seu filho. O processo fora instaurado, no entanto, quando chegou ao final, não houve punição para nenhum dos acusados, e estes acabaram sendo absolvidos.

A ação protecionista do poder público beneficiava determinados segmentos privilegiados da sociedade, e naquele caso os acusados eram um padre, um poderoso coronel e seu filho, portanto pessoas intocáveis de certo modo. O próprio povo fazia vistas grossas a tais fatos, pois dependia dessas autoridades e jamais se oporiam às mesmas. O silêncio era a garantia da paz. O coronel Alexandre representava uma família de grande influência na Vila Imperial de Papari e uma na própria sociedade norte-rio-grandense do século XIX.

A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó foi construída em estilo barroco no período de 1735 a 1755. Tornou-se paróquia no dia 30 de agosto de 1833, e teve o privilégio de ter sido conduzida durante cinco anos pelas mãos santas do padre João Maria, no período de 1878/6 a 1881, antecedido pelo padre Antonio Xavier de Paiva (1878, 1893 a 1898 – 1900 a 1907 – 1911 a 1912 – 1913 a 1918). As raízes do padre Paiva estão fincadas no Engenho Descanso, que também foi berço de acolhimento de bispos e padres que visitavam Papari. Seus donos eram muito católicos, destacando-se também Yayá Paiva, que seria sepultada nas paredes dessa Matriz em 1972. Por ironia do destino seria o padre Antonio Xavier de Paiva que faria a encomendação de corpo do padre João Maria, num futuro muito distante como veremos adiante.

É importante esclarecer que durante muitos anos a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó serviu os cômodos de seu primeiro andar para diversas atividades institucionais, como alistamento militar, reuniões de autoridades e pessoas comuns, enfermaria de doentes em épocas de epidemias, e outros eventos. São os cômodos laterais, os quais eram assoalhados e estupidamente foram substituídos por laje, matando a história e as características originais desse templo. Ao amplos cômodos no primeiro andar da Matriz já serviram de escola e até provisoriamente como sede da Intendência (Prefeitura).

Desde cedo padre João Maria percebia a importância de se cuidar das pessoas espiritual e fisicamente, numa época que ninguém imaginava as mudanças que viriam com o Concílio Vaticano II, cuja Igreja Católica Apostólica Romana, a partir do meado do século XX, buscaria estratégias para arrebatar novos fiéis e combater a expansão do protestantismo e seitas que se proliferavam.

O padre João Maria tinha uma humildade natural. Ele sentia necessidade diária de estar junto das pessoas, conversando, evangelizando, medicando. Adorava conversar com crianças e idosos. Essa maneira de ser destoava dos demais padres, que normalmente eram mais reservados e presos apenas às missas e as quatro paredes da igreja.

Nesse tempo o Coronel Joaquim José de Araújo completara três anos como presidente da Intendência da Vila Imperial de Papari. Sua administração se encerraria em 1921. O chefe político era homem de confiança da oligarquia Maranhão. Não se pode afirmar, mas pelo que veremos no curso dessa história, podemos deduzir que ele não teve muito contato com os políticos da Vila Imperial, pois era avesso a essas relações.

Foram contemporâneos do padre João Maria, na Vila Imperial de Papari, o presidente da Intendência, Coronel Joaquim José de Araújo, seu irmão Accúrcio Marinho de Carvalho Araújo, dono do Engenho Boa Esperança (no Porto), o Coronel Alexandre de Oliveira (“Cavaleiro da Rosa”), Antonio José de Melo e Sousa e Maria Emília Seabra de Melo e Sousa (pais do Dr. Antonio de Sousa, que seria governador do Rio Grande do Norte), professor Manoel Laurentino de Alustau Navarro, pai de Cândido Freire de Alustau Navarro, Trajano Leocádio de Medeiros Murta, (coronel da Guarda Nacional), político e dono do Engenho Pavilhão, o fazendeiro João Batista de Albuquerque Gondim, de Urbano Égide da Silva Costa Gondim (1806-1883, pai de Isabel Gondim), Ferreira Nobre (promotor público de da Vila Imperial de Papari, autor do primeiro livro sobre a História do Rio Grande do Norte) Manoel de Moura Junior (que plantaria o baobá, segundo placa afixada em pedestal ao lado), a professora Isabel Gondim, que contava 37 anos à ocasião da chegada do padre João Maria, dentre tantas pessoas de destaque àquela época.

Assim que chegou à localidade o padre João Maria adotou o sótão da Igreja Matriz para morar. A vila ficou perplexa, mas ele esclareceu que se sentia melhor e muito bem acomodado ali. Mandou colocar uma cama de colchão de palha que mal usava, mas preferia a rede e uma esteira. Fazendo jus à tradição nordestina, tinha o hábito da sesta após o almoço, demorando-se no máximo cinqüenta minutos. Após às três horas seguia a rotina, visitando paroquianos doentes, prescrevendo ervas medicinais, dando a hóstia para pessoas deficientes que não podiam se deslocar à Matriz. Às cinco e meia da manhã ele já estava em oração no altar. Às seis horas iniciava as confissões. Durante a semana reservava algumas tardes para atender na própria sacristia, pois vinham pessoas para pedir auxílio ou remédio. Conservava pomadas, garrafadas, tinturas, pós, enfim a homeopatia que estudava cuidadosamente para ajudar o próximo. Ele atendia a todos com a benevolência que lhe seria peculiar até a morte.

Às vezes, preparando a sua refeição, chegava um pedinte e era presenteado com o seu alimento e a benção. Seu alimento se tornava a oração. Tinha amor incondicional aos pobres e espiritualidade à flor da pele, tornando-o um ser puro e adorável. Para ele o reino de Deus só era conquistado se a caridade e o amor ao evangelho de Deus fossem uma constância na vida. Dizia que “a vida deve ser comparada a uma rosa, a qual precisa de água para poder estar mais saudável”. Proclamava sempre que “não se pode servir a Cristo sem os seus ensinamentos”, e que “o verdadeiro seguidor de Cristo deve ser leal ao seu evangelho da mesma forma que Jesus foi obediente ao Pai”.

Orador excepcional comovia toda a igreja em suas homilias. Estudioso exemplar da Bíblia Sagrada confortava as pessoas com palavras que pareciam remédio. Seu conhecimento aprofundado despertava atenção de todos, inclusive o próprio clero. Admirava com maior profusão o evangelho de São Lucas, sem deixar de reconhecer a importância do evangelista São João. Quando falava para seus pares trazia a eloqüência do padre Vieira, mas diante dos humildes, parecia ser um deles devido a clareza da linguagem.

Pelas ruas da Vila subia e descia morros, cruzava estradas, atravessava rios para todos os lugares no trote do seu burrinho. Foi esse o padre João Maria que os paparienses conheceram e passaram a amá-lo e admirá-lo.  Tinha o hábito de deixar o seu burro debaixo de uma árvore próxima da Matriz. Quando o animal não estava ali já se sabia que o padre também não estava. Dizia sempre que “onde está o burro, também está o padre João Maria”. O burro trazia a estrada gravada na mente. Nem precisava se preocupar. Muitos diziam que cansaram de vê-lo de olhos fechados sobre o animal, como se rezasse tranquilamente, sabendo que seria entregue na porta da igreja.

Em 1877, com menos de um ano de sacerdócio na Vila Imperial uma seca assolou a província. Padre João Maria amparou os retirantes que chegavam aos montes do interior do estado, atraídos pelas águas fartas daquela vila. Ajudou-os como pode, inclusive na montagem de suas choupanas.  Foi a maior calamidade pública do século XIX. Como era um homem de ação, correu até o Palácio do Presidente da Província José Capistrano Bandeira, reivindicando meios necessários para amenizar a situação daquele povo carente. Em Natal fez campanhas e passou a ajudar os flagelados da seca, doando-lhes roupas, alimentos e remédios. Nesse tempo muitos sertanejos passaram a morar na Vila Imperial, corridos dessa estiagem e instigados pelo bondoso sacerdote que acolhia a todos sem questionamentos.

Nas ocasiões em que visitava os doentes ele convidava os familiares e pessoas presentes para orar em intenção à saúde do enfermo. Após as orações comentava sobre as impressões que tinha daquela enfermidade, de acordo com sua experiência e sinais demonstrados pelo doente – ressalvando sempre que não era médico – e somente depois medicava. Os resultados eram quase sempre muito eficientes. Normalmente ele deixava alguma erva, ensinava como preparar e se despedia. Muitas vezes só de conversar com o padre João Maria, as pessoas renovavam as forças. Tornavam-se outras pessoas. Somente quando percebia que a situação era irreversível, realizava a confissão – quando possível – seguida da extrema-unção. Deixava o doente com um novo ânimo e a sua recuperação era mais rápida.

E como a vida de todos nós é feita de altos e baixos, o padre João Maria vivenciou outras turbulências na Vila Imperial de Papari. Em seu tempo houve uma grande confusão na Igreja Matriz, arrastando curiosos de todos os lados. Não há registro de como o sacerdote se comportou nesse fato. Apenas há registro do episódio, sem detalhes ou nomes. Sabe-se apenas que o padre João Maria era o responsável pela paróquia.

Esse fato aconteceu durante o governo Passos Miranda, cuja nova lei de recrutamento militar determinou sedições em vários municípios e vilas, dentre eles, a Vila Imperial de Papari. O alistamento era realizado no primeiro andar da Igreja Matriz. Certa manhã, homens e mulheres invadiram a igreja, rasgaram os livros e agrediram funcionários. As famílias não admitiam que seus parentes se alistassem, certamente temerosos do que se passara na Guerra do Paraguai.

O episódio também ocorreu em Canguaretama, São José de Mipibu, Mossoró e Goianinha. Em Mossoró chamaram esse movimento de “motim das mulheres”, por ter sido encabeçado por Ana Floriano, comandando trezentas mulheres decididas, arrancando os editais e despedaçando as listas. Em Goianinha houve três mortes.

Naquele tempo a área que compreendia a Vila de São José de Mipibu e a Vila Imperial de Papari concentrava muitos engenhos. Depois da região de Ceará-Mirim, essas duas vilas concentravam o maior número de escravos. O padre João Maria abominava a escravidão, inclusive, diferente de outros lugares, permitia o acesso dos pretos em suas missas e atividades da igreja, para horror dos senhores poderosos da época. Nem todos se lembram, mas é de seu tempo o altar de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, dentro da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, onde os escravos rezavam e ali deviam permanecer, pois não podiam se misturar aos brancos.

Nessa época a província norte-rio-grandense tinha um contingente policial ligado ao estado, composto de grupo limitado a 69 homens. Eram responsáveis pelo estabelecimento da ordem em toda a província. Existia também a Guarda Nacional, porém a mesma estava predominantemente a serviço dos coronéis e latifundiários. A força policial deveria viver entre a cruz e a espada, pois sofria a pressão das elites dominantes. Ela estava a serviço das elites agrárias, mesmo não estando diretamente ligada aos latifúndios dos coronéis, como a Guarda Nacional.

Importante esclarecer-se que os Coronéis eram os senhores de engenho, grandes fazendeiros, latifundiários, senhores ricos, responsáveis por manter a formação da Guarda Nacional, instituição criada em 1831, pelo Ministro Feijó. As patentes militares normalmente eram concedidas aos grandes latifundiários, cujos filhos se tornavam herdeiros das mesmas, mas havia casos de venda de tais patentes à custa de altas somas. Só gente muito rica se dava ao luxo de comprá-las. Era algo parecido com a ostentação de títulos como barão, marquês, conde etc. A Força Policial da província nesse período compunha-se de 69 homens, sendo 3 oficiais, 3 sargentos, 1 furiel, 8 cabos, 2 cometas e 52 soldados. A Guarda Nacional compunha-se de 15 batalhões de infantaria e 6 esquadrões de cavalaria, com um total de 9.881 homens. Em Natal havia um destacamento de força de linha, e o número de homens variava conforme a necessidade do serviço.

Em 1870, seis anos antes de o padre João Maria chegar à Vila Imperial de Papari, o Rio Grande do Norte possuía 262.307 habitantes, sendo 24.326 escravos. Em 1884, três anos após ele deixar a Vila Imperial de Papari, a província do Rio Grande do Norte possuía 7.623 escravos, sendo 3.613 do sexo masculino.  Com essas informações, percebe-se que o local sempre foi de fluente movimentação escrava.

O clero católico sempre mostrou entusiasmo para com a abolição da escravidão. Futuramente, morando em Natal, o padre João Maria Cavalcanti de Brito, destacaria-a como abolicionista, inclusive se tornaria presidente da Sociedade Libertadora Norte-Rio-Grandense. Outros sacerdotes também se tornariam presidentes ou animadores dos movimentos, como o padre Pedro Soares de Freitas, em Carnaúba, em Mossoró foi o vigário Antonio Joaquim Rodrigues, em Caicó o padre Amaro Teoth Castor Brasil, no Açu Antonio Germano Bezerra, em Macaíba o padre Estevão José Dantas, em São José de Mipibu o cônego Gregório Ferreira Lustoza e no Ceará-Mirim o vigário Pedro Raposo da Câmara. Eram muitos padres de bastidores.

Falando em defensores dos escravos negros, é importante destacar alguns abolicionistas importantes na história do Rio Grande do Norte, como é o caso de Nísia Floresta, que o fez muitos anos antes, Pedro Velho, Baronesa Belisária Lins Wanderley e a importante participação dos maçons, como no caso de Mossoró, com a Loja Maçônica 24 de Julho.

O fato de o padre João Maria ter sido contra a escravidão preta e tê-la condenado publicamente, nos faz crer que na Vila Imperial de Papari provavelmente ele ajudou os escravos e pregou contra a escravidão. Sabe-se que houve insurreições pretas no Rio Grande do Norte, inclusive na própria Vila Imperial de Papari. Diante disso, é improvável que ele não tenha se envolvido de alguma forma.

Há registros dessas insurreições em Goianinha e outra na Vila Imperial de Papari, mas as datas são confusas. Os relatórios dos presidentes das províncias não ajudam muito. Nesses relatórios eles eram omissos e tratavam o assunto monossilabicamente, como se quisessem esconder os fatos. No caso da Vila Imperial de Papari, a insurreição ocorreu quando o padre João Maria atuava na matriz de Nossa Senhora do Ó, mas não existem informações que esclareçam o que ele fez de concreto.

Exatamente nesse período existia um escravo muito conhecido na Vila Imperial de Papari, por nome de Miguel Rei. Ele pertencia ao coronel Antonio Basílio Ribeiro Dantas, do Engenho “Sapé”. Miguel Rei levantou mais de cem escravos de São José de Mipibu, Arez, Papari e Goianinha. A confusão foi feia em toda a região. Os escravos se reuniam na mata de Mangabeira em Arez, região de difícil acesso devido a mata fechada e morros. Ali se mobilizavam e partiam para executarem seus planos.

Mas como sempre existe um Judas, no meio deles existia um preto por nome de Felix, escravo do professor Manoel Laurentino de Alustau Navarro, pai de Cândido Freire de Alustau Navarro. Ele delatou o segredo ao seu dono Manoel Laurentino, e este denunciou os planos a Tomás José de Moura, delegado de polícia da vila. Imediatamente a referida autoridade organizou a milícia, preparou uma emboscada e prendeu Miguel Rei. Os escravos que aguardavam o seu líder na mata, viram-se obrigados a se dispersar, abandonando os planos do levante. Infelizmente eles não tinham armas de fogo. Serviam-se de paus, pedras e outras estratégias.

Vale salientar que o preto Miguel Rei era uma figura emblemática na Vila Imperial de Papari. Ele interpretava o papel de “Rei” nas festas de Nossa Senhora do Rosário. Os festejos se davam no dia 6 de janeiro na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó. Um de seus altares era dedicado a Nossa Senhora do Rosário. Era ali que os escravos deveriam rezar para não se misturar com as pessoas livres. Miguel Rei era muito bem apessoado, extrovertido e dançava tudo. Sua parceira era a preta Rainha Amélia, “Amélia-Rainha”, ironicamente escrava do delegado Tomás José de Moura (que prendeu Miguel Rei).

Padre João Maria dava o maior estímulo às festividades dos pretos, aproveitando o momento para conhecer suas tradições e conversar. Muitos nativos de famílias brancas e ricas torciam o nariz para essa amizade. A relação de Miguel Rei com a Festa de Nossa Senhora do Rosário me reforça a suposição de que o padre João Maria não pode ter ficado em silêncio durante essa insurreição e a prisão do seu paroquiano.

Miguel Rei faleceria em Papari a 14 de fevereiro de 1915, com 96 anos de idade. Seu reinado foi substituído pelo preto Luís, escravo do Dr. Francisco de Souza Ribeiro Dantas. Foi o último “Rei”. A história de Miguel Rei revela uma página preciosa do Folclore de Nísia Floresta, a qual foi sepultada por razões que devemos supor.

O exercício sacerdotal do padre João Maria na Vila Imperial de Papari durou cinco anos, compreendendo o período de 7 de agosto de 1876 a 7 de agosto de 1881, tempo bastante para realizar um excelente trabalho de evangelização, fazer muitas amizades e despertar nos paroquianos um amor incomum. Em agosto de 1881 ele foi designado a tomar posse na Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, em Natal.

PADRE JOÃO MARIA EM NATAL

Para entendermos a Natal que o padre João Maria encontrou, nada melhor que as palavras iniciais de Câmara Cascudo, numa de suas crônicas da vida real:

O bacharel Larico José Furtado foi o quadragésimo Presidente do Rio Grande do Norte. Recebeu nomeação a 13 de abril e desessete dias depois empossava-se solemnemente no alto posto. Corria o ano do Nosso Senhor Jesus Cristo de 1880. Treze mezes depois largava o poleiro. Não fez cousa alguma. Nem um benefício. Nem uma machadada abrindo rua...” (O Livro das Velhas Figuras - A República, 14 de junho de 1928).

Naquela época, Natal contava com as seguintes povoações: Ponta Negra, Pirangi, Jundiaí, Panelas (antes Capoeira), Tabatinga, Cana-Brava, Papagaio e Caiada. O porto de Natal ficava à margem esquerda do rio Jundiaí, afluente do rio Potengi, também chamado “Rio Grande”. Ali chegavam navios nacionais e internacionais. Funcionava como ponto de importação e exportação, sob responsabilidade de uma casa comercial dirigida por Amaro Barreto de Albuquerque Maranhão.

Na manhã do dia 7 de agosto de 1881, houve a sua posse na Igreja de Nossa Senhora da Apresentação, em Natal. A Igreja Matriz estava lotada. Coincidentemente, nessa mesma época era inaugurada a “Estação Papary”, vila onde ele morou anteriormente.

Nesse dia foi ressaltado o seu incansável trabalho em Papari. Isso revela o quanto ele já era conhecido pelos natalenses por suas atividades diferenciadas. Coincidentemente, o Padre José Hermínio da Silveira Borges, que o antecedeu na Matriz de Nossa senhora da Apresentação, em Natal, assumiria a Matriz de Nossa Senhora do Ó, em Papari, um ano depois, permanecendo até 1897.

No livro do termo da Paróquia, número 1, folha 102, lê-se o seguinte:

“Registro de termo de posse. Aos sete de agosto de 1881, em virtude da autorização dada pelo Exmo. e Revmo. Sr. Monsenhor Vigário Titular, Chantre José Joaquim Camelo de Andrade, em ofício datado de 29 de julho do corrente ano, dei posse paroquial ao Revmo. Sr. Vigário João Maria Cavalcanti de Brito, segundo o estilo. Natal, 8 de agosto de 1881. (a) Padre José Hermínio da Silveira Borges. Está conforme. (a) Padre João Maria Cavalcanti de Brito, Pároco da Freguesia”.

Coincidentemente, o Padre José Hermínio da Silveira Borges, que antecedeu o Padre João Maria, na Matriz de Natal, assumiria a Matriz de Nossa Senhora do Ó, na Vila Imperial de Papari, um ano depois, permanecendo até 1897.

Houve simplicidade na posse do padre João Maria. Leram o Ofício remetido pela Câmara Eclesiástica de Olinda. O padre José Hermínio da Silveira Borges, pároco da Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, encarregou-se do discurso de despedida. Ressaltou que deixava a Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação com muita tristeza, pois sentia-se como quem deixa uma família. Explicou que se encontrava doente e precisava fazer tratamento e depois assumiria outra paróquia. Fez questão de enaltecer o trabalho do seu sucessor na Vila Imperial de Papari, cujo trabalho era assunto em todo o clero potiguar.

O padre João Maria falou em seguida, agradeceu a Deus pela missão recebida, e que iria entregar o seu coração ao povo natalense. Extremamente organizado, na celebração de sua primeira missa expôs o seu programa paroquial. Desse momento em diante, como aconteceu nas suas paróquias anteriores, os fiéis perceberam que estavam diante de um sacerdote muito sério e comprometido com o evangelho. Todos ouviam falar de seu trabalho na Vila Imperial de Papari, confirmando ali tais notícias.

Nessa época, além da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, que praticamente era a catedral, existiam as igreja de Santo Antonio, a de Nossa Senhora do Rosário e a capela de Bom Jesus das Dores. Inicialmente o padre João Maria morou numa casa de esquina na Praça da Alegria, atrás da Matriz. Hoje esse espaço público tem o seu nome. Pouco depois ele resolveu morar no Consistório da Igreja Matriz. Os natalenses também estranharam, mas ele conseguiu convencer os paroquianos. Deitado em sua rede ele matutava sobre o que faria no dia seguinte. Era o seu local particular de falar com Deus e pedir sua benção para ser ainda mais útil no dia seguinte. Somente próximo de sua morte ele se transferiria dali, indo morar numa casa no Alto Juruá, hoje Petrópolis, por recomendação de seu médico.

Em Natal suas atividades eram as mesmas de sua paróquia anterior, mas se intensificaram muito. Na realidade essas atividades se estendiam aos povoados fora de Natal, inclusive outras vilas. Ele não parava. Estava sempre visitando os moradores, conversando, pregando o evangelho e procurando saber se haviam doentes na casa para medicá-lo. Apesar de normalmente ir para a cama muito tarde, não dormia mais que seis horas, independente de estar muito cansado ou não. Às cinco horas da manhã acordava, rezava, atendia os necessitados de algum auxílio ou fazia confissões, conversava, dava conselhos. Nunca tirou um mês de férias. Todos eram unânimes em afirmar que sentiam uma espécie de paz só de passar pela Igreja Matriz e saber que o padre João Maria estava ali. Quando ele atendia alguém, era tão generoso que as pessoas se sentiam protegidas.

Como não poderia ser diferente, ele seguiu destacando-se pela caridade e zelo pelo evangelho. Quando ele era convocado, realizava confissões a qualquer hora e distância. Como sempre, o único meio de transporte era o jumentinho que o acompanhou.

Assim que colocou os pés na capital potiguar, fundou o Jornal 8 de Setembro, título decorrente da data de sua criação, aos 8 de setembro de 1897. Até hoje chamam Natal de provinciana. Imaginem naquela época. Mas não havia como comparar Natal com Jardim de Piranhas ou a Vila Imperial de Papari. Ao chegar à capital o sacerdote já mais amadurecido, com 33 anos de idade, começou a dar vazão aos sonhos que acalentou em silêncio.

Sem querer, com a publicação do primeiro fascículo da revista católica 8 de setembro, aos cuidados da Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, o padre João Maria fundou a Imprensa Católica no Rio Grande do Norte. Infelizmente a revista circularia mensalmente até 1907, dois anos após a morte de seu fundador. Os padres sucessores não tiveram a mesma abnegação do antecessor. A revista registrava e comentava as atividades religiosas de Natal no final do século XIX e início do século XX e teve papel fundamental na divulgação das coisas da igreja, em conformidade com o evangelho.

Ele se servia desse precioso instrumento para externar suas ideias em busca de uma sociedade mais justa e livre. Os desafios para a manutenção do pequeno patrimônio jornalístico foi imenso devido às dificuldades de apoio e patrocínio, mas ele não se curvava a nenhum problema e vencia os obstáculos. Desse modo ele disponibilizou um instrumento que muito contribuiu para a prosperidade da imprensa católica do estado.

Como se sabe, sua formação sacerdotal foi pautada na doutrina do Concílio Vaticano I, mas já naquele tempo ele quebrava os protocolos de sua formação. Além de suas atividades religiosas de praxe, sempre vislumbrou exercer atividades sociais. Mas ideias muito diferentes fervilhavam em sua mente. Ideias que a igreja católica, só colocaria amplamente em prática com o Concílio Vaticano II, muito tempo depois de sua morte. Mas ele precisava iniciá-las. Mesmo que esse início fosse depositar uma sementinha em solo bem adubado.

Natal, apesar de incomparavelmente mais evoluída, reunia muitos problemas. Havia muita pobreza. Como lhe era peculiar, Padre João Maria renunciou tudo e se dedicou abnegadamente aos pobres, oferecendo-lhes um testemunho de fé e amor incondicional aos mesmos. Fez de tudo para que as pessoas não sofressem ou que sofressem menos. Isso o realizava como sacerdote. Sua felicidade era servir ao próximo.

Não gostava de visitar a sede do governo da província. Só se abalava até ali em caso extremo. Numa de suas idas muito criticou o governo. Dizia que o império estava podre e com os dias contados. Embora favorável à abolição dos escravos, não colocava expectativas no regime republicano. Sua posição era muito interessante, a julgar pelas raposas velhas da política daquela época, destacando-se Pedro Velho, que assumiria o governo do estado. Como o padre João Maria deve ter visto isso?  Para ele os defensores do regime republicano eram falsos líderes, considerando que alguns deles eram a favor da escravidão, e com a libertação dos escravos muitos se tornaram republicanos.

 Não foi em vão que ao falar para a primeira turma de formandos na Escola Doméstica, muitos anos depois, Henrique Castriciano disse: “Seu coração foi como uma hóstia que se repartiu com todos”. Câmara Cascudo, mais adiante escreveria: “Pelo seu apostolado incessante e caridade inextinguível, foi a mais impressionante e sedutora figura de sacerdote que tenha paroquiado os natalenses. Em vida, cercava-o uma auréola de santidade”.

O trabalho do padre João Maria como missionário foi muito mais expansivo do que seu trabalho paroquial, visto que ele não acomodou no seu trabalho de vigário e partiu para muito além, atingindo outros horizontes, que muito favoreceram o seu trabalho sacerdotal.

Na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação ele seguiu o mesmo ritmo de vida praticado na Vila Imperial de Papari. Era comum encontrá-lo às cinco e meia da manhã, rezando antes da celebração na missa matinal. Enquanto os fiéis se acomodavam nos bancos ele orava contritamente. Só assim ele se sentia fortalecido fisicamente.

Padre João Maria tinha como característica a objetividade. Era dinâmico. Nada ficava para se resolver no dia seguinte. Ele conseguia produzir muito porque era metódico. Planejava a semana, portanto sabia o que fazer a cada dia. Durante a Semana Santa ele orientava que os fiéis se recolhessem numa semana de penitências. Deveriam começar na Quaresma, quando a Igreja Católica prepara os fiéis para o mistério da salvação. Naquela época na liturgia da semana santa acontecia a procissão do encontro, a procissão do fogaréu, a quarta-feira de trevas, a quinta-feira e a sexta-feira, momentos pautados de contrição, piedade e orações.

Importante esclarecer que naquela época a Igreja Católica ainda não autorizava a confissão comunitária. Era algo impensável. Todas as confissões eram individuais. Para atender todos os fiéis o padre João Maria ficava horas e horas no confessionário atendendo até concluir a última confissão.

Após um ano exato de exercício nessa matriz, Natal é sacudida por um evento que mexeria com católicos de várias localidades. O Bispo de Olinda, Dom José Pereira da Silva Barros visita Natal. Até 1892 Natal era subordinada a Diocese de Olinda. Essa seria a última visita episcopal pernambucana a vir para a província do Rio Grande. A cidade virou festa. O navio “Pirapema” encostou no cais Pedro de Barros numa manhã chuvosa de 8 de agosto de 1882. O local encheu-se de soldados, músicas, palmas, discursos e muito barulho festivo. Natal não via um bispo há 43 anos. Era presidente da província Dr. Francisco de Gouveia da Cunha Barreto. Todas as autoridades natalenses estavam ali. Houve uma comissão de recepção composta por autoridades e gente muito rica. A comitiva acompanhou o religioso até a igreja de Bom Jesus, onde paramentou-se. O pároco era padre Antonio Francisco da Costa. Depois subiu a pé até a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação.

A partir de então, sob o acompanhamento do padre João Maria, houve festas religiosas, crismas, batizados, confissões, jantares, discursos. O bispo, completamente diferente de seu anfitrião que dormia muitas vezes no chão, ficou hospedado no luxuoso Palacete da Assembleia, que depois se tornou Palácio do Governo, e atualmente é a Pinacoteca do Estado.

A visita episcopal foi largamente registrada no jornal “Correio de Natal”, aos cuidados de Luiz Carlos Lins Wanderley. Dom José visitou todos os estabelecimentos públicos e privados de Natal, inclusive as casas de pessoas ilustres daquela época. Um dos grandes feitos foi inaugurar o Lazareto da Piedade, que era um hospital de alienados. Após alguns dias o bispo se despediu, pois deveria visitar Ceará-Mirim, Extremoz, São Gonçalo, Macaíba, São José, Goianinha, Canguaretama, Vila Imperial de Papari e Arês.

Ao todo, crismou 32.000 pessoas, casou 800 casais que viviam juntos. No burburinho de sua visita. Era abolicionista e libertou 22 escravos solenemente. Sua visita causou tanto impacto no povo que eles o seguiam onde quer que fosse. Em cada lugar ele se despedia e a multidão chorava copiosamente. No dia 18 de setembro, após 42 dias de estadia na província, o bispo embarcou no navio Ipojuca, sob forte consternação popular.

Na Vila Imperial de Papari o povo foi buscá-lo numa “cadeira de arruar”, a qual ele negou usá-la. Deixou a Estação Papary a pé e caminhou até o centro da vila. Já era quase noite e os paroquianos fizeram uma fila de fogueiras que ia da Igreja Matriz até as proximidades da entrada do Engenho Descanso, propriedade da família do padre José Paulino, onde ficou hospedado após a recepção e as atividades desenvolvidas na localidade.

O padre João Maria era irmão do grande jurista norte-rio-grandense Amaro Cavalcanti (1849-1922), o qual era muito conhecido e respeitado por sua sabedoria e influência. Mas o irmão sacerdote nunca usou a influência do irmão para qualquer interesse. Muitas vezes até ignorou os seus laços sanguíneos, certamente cuidadoso de que os paroquianos não confundissem os fatos. Amaro Cavalcanti era formado em Direito pela Universidade de Albany, de Nova Iorque, Estados Unidos. Foi o melhor aluno da turma, fato que comprova a ilustração da família. Embora Amaro Cavalcanti pertencesse ao mundo jurídico, também se voltou para as letras, como professor no Liceu Cearense.

Amaro Cavalcanti navegou fortemente nas águas políticas, elegendo-se senador. Foi uma figura de sucessivos destaques e um dos pilares de sua época. Integrou o grupo responsável pela primeira Constituinte, e na Comissão dos 21. Seu destaque era tanto que tornou-se ministro em dois momentos. Em 1897, foi ministro de Prudente de Morais. Depois assumiu o Ministério de Negócios Interiores.

Em 1918 foi convidado pelo presidente Rodrigues Alves, para assumir o Ministério da Fazenda, Rodrigues assumia o governo do Brasil pela segunda vez, mas morreu sem assumir. Seu vice, Delfim Moreira, manteve o convite, demonstrando que Amaro Cavalcanti realmente tinha méritos. Também foi embaixador, senador da república e prefeito do distrito federal. Amaro fez o impossível levar o irmão para o Rio de Janeiro. Enviava-lhe a portentosa quantia de 300$000 mensais.

O padre João Maria era procurador de suas irmãs que moravam em Natal. Mas eis que tudo o que ele recebia do irmão distribuía aos pedintes num só dia. Não ficava com uma moeda. Para ele a necessidade de seus familiares estava anos luz daqueles infelizes que nem morada tinham. E estava certo. Amaro Cavalcanti fez Direito na Law School da Union University. Sua tese teve como título “A educação é uma obrigação legal”. Era poliglota e escreveu mais de 40 livros, alguns em francês, italiano e em inglês. Em 1914 ele fundou a Sociedade Brasileira de Direito Internacional.

O ex-governador Juvenal Lamartine (1854-1956, governador do Rio Grande do Norte por dois anos e nove meses, sendo destituído com o advento da Revolução de 1930 comandada por Getúlio Vargas, que depôs todos os governadores eleitos na época, inclusive os revolucionários) escreveu que “Amaro Cavalcanti é a maior figura intelectual do Rio Grande do Norte de todos os tempos”. Nestor Lima (1887-1959) disse “É, sem dúvida, uma personalidade ímpar da vida nacional, um nome impoluto, um caráter de velha têmpera de aço, que honra a terra pequenina”.

            Monsenhor Landim, grande admirador do padre João Maria, disse que ele não gostava quando nessas andanças algum amigo pedia que ele descansasse.

A humildade do padre João Maria era tão pura que embora seus irmãos o insistissem para que ele morasse com eles numa na confortável casa da família em Natal, o sacerdote escolheu a sacristia da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação. Suas batinas eram tão surradas pelo sol e chuva que os próprios fiéis o presenteavam com peças novas, as quais ele usava até ficarem “bufentas”, no dizer dos potiguares.

O padre João Maria e Amaro Cavalcanti tinham algo em comum: eram oradores notáveis. A Igreja Católica Apostólica Romana naquele tempo mantinha em seu quadro presbiterial alguns oradores sacros, e dentre eles se destacava com louvor o padre João Maria.

Mesmo que o padre João Maria não admitisse, uma aura de poder o revestia indiretamente. Ele era irmão de um jurista e político influente, ligado à Presidência da República, mas é importante ressalvar que ele nunca cogitou assumir cargos públicos nem exercer funções políticas no estado. Não gostava quando ouvia alguém comentando o assunto. Sua preocupação era exclusivamente com as coisas da igreja, o evangelho e o bem estar do povo.

Num tempo de uma Natal provinciana, cujos problemas de comunicação eram imensos, o padre João Maria se servia do púlpito como veículo de comunicação, levando assuntos de utilidade pública após o encerramento da missa. Ele comentava os problemas sociais que afligiam a comunidade, dava orientações e pedia sempre que cada paroquiano compartilhasse aquelas informações. O fato de ser muito sincero em suas posições e muitas vezes criticar posturas inconvenientes de alguns homens públicos, algumas autoridades não apreciavam esses capítulos de sua obra, mas todos o respeitavam. Certamente temiam as proporções desfavoráveis que gerariam se se opusessem a um homem que já começava a ser enxergado como Santo. Excetuando esse detalhe, padre João Maria detinha tanta sabedoria, bondade, pureza e tanto conhecimento bíblico que todos sentiam que algo muito superior a ele falava por ele.

Como abolicionista, ajudou muitos escravos a fugirem das senzalas. Já bastante alicerçado em Natal, e familiarizado aos escravos que paroquiavam na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no dia 1º de janeiro de 1888, liderando um grupo de pessoas contrárias à escravidão preta, fundou em Natal a Sociedade Libertadora Norte-Rio-Grandense. Essa iniciativa, como já foi visto lá atrás, na Vila Imperial de Papari – onde suponho que ele tenha dançado algumas vezes durante a Festa do Rosário dos Pretos, em respeito a Miguel Rei e a Preta Fulana – não surgiu em 1888, mas era algo acalentado antes de chegar à vila. O ano de 1888 consistiu apenas na oficialização do projeto, para a ira dos senhores ricos proprietários de escravos.

Na igreja, nos seus contatos cotidianos, na imprensa e onde se encontrasse, defendia corajosamente a libertação dos escravos. Nas suas homilias defendia a liberdade dos escravos, apontando no evangelho onde Jesus acolheu a todos e defendeu a dignidade humana, mostrando que essa dignidade só é real se o homem estiver livre.

Mesmo recebendo represálias de alguns senhores de engenho e escravocratas, o padre João Maria teve a tranqüilidade de proclamar a sua voz a favor da libertação dos escravos. Muitas vezes realizou conferências, mostrando as razões para se extinguirem a escravidão. Dentre desses princípios, deu apoio a escravos fugitivos, acolhendo os que tinham recebido libertação, ajudou-os com estadia e algum encaminhamento para amenizar o estado de abandono que passaram a viver. Contribuiu em campanha para comprar as alforrias de negros. No lombo de seu jumentinho, percorreu Natal e várias partes do interior em campanha contra a escravidão. Seu gesto aumentava a sua popularidade e a imagem santificada que extrapolava cada vez mais os limites geográficos.

Concretizada a abolição da escravatura os pretos passaram a vagar sem emprego, sem casa, enfim em situação precária. Muitos senhores ricos ignoraram a nova lei, mantendo-os como antes. A resistência foi maior entre os senhores de engenhos, comerciantes, grandes fazendeiros e propriedades. E o padre João Maria teve olhos para eles, servindo-se de suas homilias para conscientizar no povo natalense sobre o devido respeito aos ex-escravos, pois a partir de então eram cidadãos livres iguais a qualquer homem branco, conforme rezava a Constituição. 

Ao observar que algumas famílias ricas ignoraram a abolição e mantinham o mesmo tratamento aos pretos, procurou a polícia e exigiu que se cumprissem a lei que havia abolido a escravidão no Brasil.

O padre João Maria escrevendo em seu jornal e até mesmo fora do estado, assim conseguia sensibilizar outros sacerdotes que não tinham a sua iniciativa. Alegava sempre ecoava a voz dos negros através de seus escritos e suas homilias, pois eles não tinham esse privilégio tendo em vista a opressão sofrida. E para desarmar os senhores que não se conformavam com a escravidão, e até mesmo os seus próprios pares que agiam com reservas, citava as palavras de Jesus. E esse espírito anti-escravagista caminhava com ele desde o seminário.

Num tempo de escassez de médicos, ausência de remédios químicos, muitas doenças e epidemias, ele viu na homeopatia um bálsamo para diminuir ou até mesmo curar males. Nesse pensamento o padre João Maria foi um abnegado. Reservava algumas horas de seu tempo para preparar remédios caseiros, como pomadas, garrafadas, chás, tinturas, pós, enfim, lia muito o assunto e indicava tratamento para todos os doentes que encontrava quando saia pelas estradas evangelizando. Ensinava como preparar compressas, chás, fortificantes, vapores e tudo mais que estava à altura de seus conhecimentos. A sacristia da Matriz era praticamente uma farmácia natural.

A demanda do padre João Maria era gigantesca. Seu sacerdócio se estendia a Natal e até mesmo outros municípios vizinhos. Ele não reclamava. Apenas queria ser mais promissor, mas era sozinho enquanto padre. Em 1888, ao celebrar missa na capela de Bom Jesus das Dores, hoje Matriz no bairro da Ribeira, ele pediu que os fiéis rezassem ao Espírito Santo para que Deus enviasse um sacerdote como seu coadjutor, pois tinha muitos planos e somente com ajuda teria condições de executar a grande missão.

Em menos de um mês dessa explanação o primeiro bispo da Diocese da Paraíba Dom Adauto Aurélio Miranda Henriques (grande amigo de Yayá Paiva, que se hospedava no Engenho Descanso, na Vila Imperial de Papary), nomeou o padre Calazans Pinheiro como seu coadjutor. Todos se impressionaram com a sorte do padre João Maria. O padre Calazans Pinheiro era vigário da cidade de Pilões, na Paraíba, e se tornaria um grande amigo-irmão do padre João Maria.

Nessa época a província do Rio Grande do Norte tinha 30 paróquias. A escassez de padre era uma realidade preocupante. O padre João Maria se desdobrava entre Natal e as cidades circunvizinhas.

Quando refletimos suas práticas de piedade e preocupação constante com os seus semelhantes, o cuidado com o corpo e o espírito das pessoas, independente de serem paroquianos ou não, constatamos que seu gesto era a semente da Campanha da Fraternidade, embora ele sequer imaginasse isso. Valendo registrar que tal suposição passe despercebida a muitos. O que foi o seu gesto de cuidado com os doentes senão a semente da Pastoral da Saúde?

A Pastoral da Criança se configuraria muitos anos depois, nas mãos de Zilda Arns, irmã do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. A “multi-mistura” salvou milhões de brasileiros pobres através da Pastoral da Criança. Antes de Zilda, muitas crianças foram salvas graças ao soro caseiro preparado, distribuído ensinado a todas as casas de Nísia Floresta (antiga Vila Imperial de Papari) pelas mãos das Irmãs Vigárias que veremos mais adiante. Essa experiência percorreu o mundo e atraiu a visita de leigos, padres e bispos de outras dioceses. Lembrando que logo em seguida ela também foi implantada em outras cidades potiguares, para onde foram as Missionárias de Jesus Crucificado.

O que foi o gesto dessas peregrinas, senão uma inspiração nas práticas do padre João Maria? Elas percorreram todos os lugarejos de Nísia Floresta, entre 1963 a 1988, onde nasceu uma das mais importantes mulheres do mundo, apelidada Nísia Floresta. A peregrinação já não foi mais no lombo de jumentinhos, mas a pé, ou num velho Jeep Willys, e depois num Fusca, fazendo jus ao empoderamento tão postulado por essa filha ilustre.

Para o padre João Maria, o ser humano precisava estar bem para receber o alimento do evangelho. Tudo seria mais coerente se ele não estivesse com dor, fraqueza, estômago vazio ou com outros sintomas de pobreza ou miséria. Ele se preocupava espiritual e fisicamente com o próximo. Um dos grandes problemas de sua época, seja em Caicó, Jardim de Piranhas, Vila Imperial de Papari ou Natal, foi a desnutrição. Com seus remédios caseiros, ele recuperava o bem estar das crianças que se encontravam quase mortas. Todos os dias incontáveis mães o procuravam implorando-lhe salvar seus filhos.

Quando configurou-se o “Movimento de Natal” em solo natalense, muito antes do Concílio Vaticano II, foi pela força do solo muito bem adubado anteriormente pelas mãos do padre seridoense João Maria Cavalcanti de Brito, grande inspirador e iniciador de mudanças que se inaugurariam e se ampliariam no futuro.

Um exemplo dessa inspiração é a experiência das Irmãs Vigárias, Missionárias de Jesus Crucificado. Na condição de mulheres religiosas, elas foram pioneiras na realização do mesmo trabalho desenvolvido pelo padre João Maria. Por coincidência o município Nísia Floresta (ex-Vila Imperial de Papari) foi escolhido para a implantação dessa experiência, cuja semente foi deixada por esse humilde padre. A iniciativa, muito mais ampla e audaciosa, permitiu que as irmãs assumissem as funções de um vigário, experiência implantada aos 3 de outubro de 1963.

Nessa época o responsável pelo projeto foi o Administrador Apostólico da Diocese, Dom Eugênio de Araújo Sales. Além de assumir a administração paroquial, as irmãs formavam pequenas comunidades e visitavam as famílias de casa em casa, cuidavam do zelo paroquial e prestavam assistência religiosa. Inicialmente foram sete comunidades, onde se fomentavam a formação bíblico-catequética, litúrgica e social. As irmãs permaneceram em Nísia Floresta entre 1963 a 1988.

Junto com a inédita experiência de entregar às irmãs a administração paroquial, veio outra, até mesmo pela consequência do trabalho: a distribuição da comunhão pelas irmãs, prática impensável à época. Inicialmente muitos estranharam. Alguns preferiram procurar outra paróquia para comungar, pois não concebiam a ideia de ver uma mulher num altar celebrando e ministrando a eucaristia. Até mesmo alguns padres viam o acontecimento com reservas.

Mas Dom Eugenio era louco? Como ele pode autorizar algo tão fora dos trilhos da Igreja Católica? Dom Eugênio Sales era apenas visionário e pretendia salvar a igreja do que lá no passado o padre João Maria se preocupava, vendo o surgimento de seitas e se deparando algumas famílias que recusavam sua visita e ajuda, alegando-se evangélicas. Resquício dos holandeses?

Mas muito antes de implantar a novidade, Dom Eugênio Sales fora ao Vaticano conversar com o Papa Paulo VI. Ele expôs um pergaminho inteiro de justificativas, e sensibilizou o Sumo Pontífice. Enfim o Administrador Apostólico saiu do Vaticano com a autorização em mãos.

Outra iniciativa pioneira demonstra o quanto o padre João Maria era preocupado com a igreja. Desde que atuava na Vila Imperial de Papary ele percebia a evasão de crianças e jovens na igreja. Essa realidade o incomodava. Após a Primeira Eucaristia os jovens praticamente desapareciam. Pensando nisso ele criou um momento especial para a evangelização dos jovens. No quê consistiu essa iniciativa senão uma pastoral? E dentro dessa visão ele criou a Cruzada Eucarística, cujo propósito era anunciar a eucaristia para os jovens. Observemos que o fato se concretizou na metade do século passado. Essa ação se efetivou a partir da formação de estabelecimentos de ensino, com o aparecimento dos colégios Marista, Maria Auxiliadora, Salesiano, Das Neves, Da Conceição e outros.

Padre João Maria era conhecido entre os seus pares e os próprios leigos como um homem que sempre tinha uma luz para os problemas. Diante dos maiores imbróglios ele não via a solução de imediato, mas o melhor caminho, o qual levava à posterior solução. Ele sempre trazia uma palavra certa e uma opinião louvada. Sua postura fazia com que ele fosse presença reivindicada para resolver problemas que ocorriam dentro da igreja. Dizia “para cada doença, existe uma medicação”.

Era muito cauteloso e não gostava de muita conversa quando conseguia resolver algum problema. Dizia sempre “águas passadas não movem moinhos”. Fatos considerados insolucionáveis eram resolvido por ele como que como magia. Por tal motivo também foi conhecido como o padre que apagou muitos incêndios em Natal. “Um pároco amigo é um amigo pároco”, dizia com serenidade incomum.

Um assunto que o incomodava era ouvir gente falando em separação de casais. Dizia “o que Deus uniu, o homem não pode separar, é bíblico”. Falava sempre “o homem não é aquilo que ele mostra, é aquilo que ele é”. Não gostava de polêmicas. Conversava sem rodeios. Ia direto ao assunto, mostrando o que estava certo e o que estava errado.

A historiografia, como se sabe, parece mais receptiva quando mostra o padre santo, que de fato foi. Mas ele conservava um humor impressionante, usando normalmente para quebrar as agruras que apareciam.  Em 1889, com a proclamação da República e consequentemente a iniciação do civil, separação da igreja do estado e estado laico, ele comentou brincou dizendo “a república veio muito brava, mas vamos ter que amansá-la depois”.

Numa ocasião, após ensinar um de seus remédios caseiros a um senhor, o doente perguntou qual a hora que deveria tomar o remédio. O padre explicou que ele deveria tomá-lo de hora em hora. O homem alegou que não tinha relógio. Então o padre João Maria respondeu: “não precisa vexame, o senhor vai bebendo até chegar a hora da sua morte”.

Num determinado dia Natal amanheceu informada da morte de um maçom. O corpo foi levado para o velório na loja maçônica que já existia naquele tempo. Parte do clero não via com bons olhos a maçonaria. Os familiares queriam que o padre João Maria recomendasse o corpo, mas muito receosos perguntaram se ele teria problemas com isso. Para surpresa de todos o padre respondeu: “não existe problema algum, eu vou, pois se for para salvar almas entro até no inferno”. Quando os familiares se voltavam para ele, o padre complementou “eu só peço que não deixem de amarrar o bode no momento que eu fizer a recomendação do corpo”.

A seriedade como enxergamos o padre João Maria faz com que essas e outras pérolas sejam desconhecidas em detrimento do homem que passou a vida preocupado apenas com caridade. Precisamos reconhecer que ele era um ser humano.

Quando ele descansava na rede armada na parte superior da matriz, o seu burrinho pastava, amarrado a uma árvore com água e capim nas proximidades. Quando se viam o burro perto da igreja Matriz já se sabia que o padre estava na igreja ou nas proximidades. Caso contrário ele estava ausente executando uma das suas missões. Seu burro tornou-se conhecido em toda a cidade. Se o padre saísse e deixasse o animal pastando em outro lugar, o povo sabia que era o animal do padre, o qual dizia que sem o seu burro o seu trabalho se realizaria com muita dificuldade.

Sempre o padre João Maria saia para realizar batizados ou casamentos em vilas e cidades circunvizinhas. A maior felicidade do povo era quando de o padre e o burro apontavam em algum lugar da estrada. Numa ocasião ele foi celebrar um casamento num engenho próximo à Natal. Era inverno e desabou uma chuva torrencial. O povo ficou desesperado, pois a chuva não parava. A capela estava cheia. Os noivos e convidados ficando nervosos. Mas para a felicidade de todos, de longe notaram o sacerdote sobre o seu jumentinho no galope de sempre. Suas mãos se dividiam para segurar o guarda chuva, o cabresto e a maleta com as vestimentas para a cerimônia. Chegou ensopado, mas cheio de serenidade e solicitude. As pessoas correram com panos secos, preocupadas com um resfriado, e ele foi logo entrando na camarinha para vestir seus paramentos.

Sua existência foi de muitos sacrifícios. Era padre diocesano, mas na prática, não diferia em nada do que foi de São Francisco de Assis. Não fazia parte de seu vocabulário palavras torpes, de pessimismo. Não reclamava de nada. Trajou sempre batinas surradas, sapatos que se esfacelavam com o tempo, muitas vezes deixando-o descalço, o que mostrava a sua pureza e santidade. Foi justamente isso que fez João Paulo II citá-lo quando esteve em Natal, em 1991.

Nas vésperas das primeiras sextas-feiras as filas se agigantavam adiante do confessionário do padre João Maria. Os sacerdotes orientavam aos fiéis que recorressem ao outros padres, mas recebiam prontamente a recusa. Preferiam esperar o tempo que fosse para confessar ao padre João Maria. Serenamente ele atendia a todos. Esse fato gerava ciúmes entre alguns sacerdotes. Muitas vezes se tornava assunto de reunião do próprio clero local, mas não tinha solução. As pessoas vinham até mesmo de outras vilas e cidades. Como não bastasse o adiantado das horas, assim que concluía a última confissão, se prostrava no altar para rezar.

Logo que o padre João Maria chegou a Natal foi surpreendido por um surto de varíola. A epidemia matou tanta gente que às vezes faltava local para enterrar as vítimas. Numa rara iniciativa de recorrer a político – prática que não o agradava – viu-se obrigado a recorrer ao presidente da província Francisco Gouveia Cunha Barreto para sensibilizá-lo, pois o problema se agigantava e não apareciam medidas públicas com a mesma intensidade. Nesta época construíram três barracões para atender aos doentes. Um deles foi patrocinado pelo inglês Francis Artur Bowen em dezembro de 1882. Os primeiros foram instalados no bairro que futuramente se chamaria Alecrim. Depois foi construído na avenida Alexandrino de Alencar um hospital de alienados, atualmente denominado de Hospital Colônia “João Machado”. Preocupado com as ações lentas das autoridades, o Padre João Maria deu início às missões pelas ruas de Natal, pedindo para acabar com a peste. Ao encerramento das missões eram celebradas missas, nas quais ele fazia preces e pedia que todos não se esquecessem de rezar pelos mortos.

Em 1885, Natal contava com 5 mil habitantes. De uma hora para outra a “chólera-morbus” acomete a cidade, e logo vira epidemia, matando 215 pessoas. Nesse tempo de muita insalubridade e ignorância, até descobrirem o que era de fato era os sintomas, os túmulos aumentavam. O padre João Maria se vê obrigado a procurar o presidente da província Antonio Basílio Dantas, para pedir-lhe que intensificasse as providências e construísse um hospital, pois os doentes eram atendidos numa enfermaria militar. A situação se agrava cada vez mais. Outras autoridades pressionam o presidente da província que manda erguer o então Hospital da Caridade. Para que a obra se realizasse com rapidez o padre João Maria consegue sensibilizar os católicos, os quais se juntam num mutirão e em pouco tempo o hospital fica pronto.

Esse hospital foi fechado em 1906 pelo governador Tavares de Lira. Depois o governador Alberto Maranhão o reestruturou no Monte Petrópolis com o nome de Miguel Couto. A população o denominava de “Hospital das Clínicas”. Atualmente ele funciona com o nome Hospital Onofre Lopes, sendo mantido pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

No período de 1883 a 1893, um surto de catapora tomou conta da província. Os médicos orientavam que os doentes tomassem banho de mar e construíssem choupanas de palha próxima à praia, pois os ares marinhos consistiam em remédio natural. A praia do Forte se transformou num hospital a céu aberto. Essa doença também era chamada de “bexiga-mancha”. Para agravar o sofrimento dos provincianos, emenda-se a essa epidemia outra triste moléstia de tuberculose entre 1894 a 1900. A vida do padre João Maria era no meio desse turbilhão, sempre ativo, procurando formas de diminuir a agonia de seu povo diante de tantas provações. Essas doenças iam e vinham. Outras vezes mal terminava uma começava outra.

Entre 1904, Alberto Maranhão governava o estado quando um surto de varíola retornou a Natal, deixando-a semelhante parecida a uma cidade fantasma. Não havia lugar para colocar mortos. O estado perdeu o controle do combate à doença. Era ano de eleição. Tavares de Lira foi eleito e já se encontrava amenizando o problema quando logo em seguida Natal foi atingida pela gripe espanhola. Tudo voltou à estaca zero. Foram anos de luta, cujo padre João Maria não arredou o pé. Ele se valia das orientações dadas pelos médicos para divulgá-las junto à população, sempre atento à higiene de todos, prescrevendo sua homeopatia, ajudando a enterrar os mortos. Ele sabia que se Jesus Cristo estivesse ali, estaria ali.

Percebendo o enorme índice de analfabetos, fato que dificultava a própria evolução dos trabalhos da igreja e o futuro das crianças, ele abriu uma escola na sacristia da Igreja de Nossa Senhora da Apresentação para crianças e jovens pobres, confiando a direção ao vicentino Antonio Lustoza Cabral. Este assumiria posteriormente a direção da escola o professor Ulisses de Góis. Mais tarde o padre João Maria fundaria a Escola São Vicente de Paula, primeira Escola Técnica Comercial de Natal. Ele não se conformava em ver as crianças sujeitas às mesmas experiências de seus pais, e reconhecia que somente alfabetizadas elas teriam melhores chances enquanto cidadãs.

Em 1961 o então professor e estudioso de assuntos da educação, Paulo Freire implantaria no Rio Grande do Norte o projeto “De pé no chão também se aprende a ler”, cuja experiência se estendeu a outras partes do Nordeste com envolvimento de Dom Eugênio Sales, sempre antenado com práticas visionárias. Se observarmos as diversas preocupações que permeariam a vida de Dom Eugênio, constatamos que eram as mesmas do padre João Maria, não sendo exagero reconhecermos que ele o inspirava.

O Cônego Fernandes Lopes, da Diocese de João Pessoa era um grande admirador do padre João Maria. Várias vezes visitou Natal para observar “in loco” o trabalho incansável daquele sacerdote. Nessas visitas ele encaminhava relatórios ao Bispo de João Pessoa, o qual o aconselhou a se transferir para João Pessoa. Segundo o Cônego Fernandes a capital paraibana tinha muita necessidade daquelas inovações. Mas o padre João Maria não se via fora de sua província.

De acordo com o Monsenhor Landim, o padre João Maria foi a primeira pessoa em Natal a tratar de doentes através da homeopatia. Natal, apesar de capital, era pautada pela pobreza. Ceará-Mirim e Caicó eram os municípios mais ricos do estado. Ceará Mirim, pela cana de açúcar, e Caicó, pelo algodão. Economicamente era incomparável a riqueza dessas cidades com a pobre Natal.

Uma curiosidade sobre o padre João Maria, desconhecida por muitos, diz respeito à sua ilustração. Mesmo diante de tantas ocupações ele se debruçava sobre bons livros, tanto clássicos da literatura mundial, quanto livros de História Universal e homeopatia. Foi grande incentivador da cultura. Tinha predileção para conversar com as pessoas pobres e mendigas. Tinha muito apreço e carinho por uma parteira preta, por nome de Luíza, cujo seu nome foi dado ao bairro Mãe Luiza. Ela se servia muito do conhecimento e das orientações do amigo padre.

Em suas celebrações o padre João Maria sempre solicitava alimentos, roupas, sapatos e remédios. Pedia que deixassem na sacristia, pois ele teria endereço certo para as doações. Ele gostava muito de celebrar pela manhã, usando algumas tardes para se dedicar às suas atividades costumeiras junto aos doentes e aos necessitados. Sua vida era pautada pela caridade e orientações aos pobres. Enquanto evangelizava, cumpria essa missão sem se esquecer de ensinar noções de higiene, transmitindo conhecimentos que de algum modo serviam a todos.

O vai e vem do padre João Maria era tão intenso no lombo de seu jumentinho, inclusive à noite, que algumas vezes foi confundido com fantasma. Naquele tempo os bairros se resumiam a Ribeira, Cidade Alta Monte (atual Petrópolis), Refoles, Passo da Pátria, Baldo, e depois surgiria o Alecrim. Desse ele se tornou parte da paisagem.

Em 19........, Dom Joaquim de Almeida, primeiro bispo de Natal, logo que tomou posse procurou observar o trabalho do padre João Maria, na oportunidade o aconselhou a se preocupar mais consigo, pois  sua abnegação apenas aos outros dedicação apenas aos outros fragilizava a sua saúde e tudo poderia se agravar.

Os natalenses falavam que a sensação que tinham quando assistiam às missas celebradas pelo padre João Maria era de que a alma ficara lavada. Saiam da missa leves, mais propensos ao bem. Como ela morava na sacristia da Igreja Matriz, às 5 horas da manhã começava atender as confissões individuais. Encerrada a missa ele tinha o hábito de ir ao patamar da matriz, permanecendo de 10 a 15 minutos contemplando a paisagem. Então retornava à sacristia, tomava café e só então dava início às visitas. Era uma constante. Outros padres pediam que ele descansasse, que eventualmente reservasse um dia ou a metade para descansar, mas ele não gostava. Amava aquela vida de se preocupar com o bem estar de seus semelhantes.

Embora suas atividades predominavam na igreja matriz de Nossa senhora da Apresentação, nos finais de semana ele também celebrava na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde era amado pelos escravos que o aguardavam para a confissão. Assim que encerrava a missa ia celebrar na Capela de Bom Jesus. A capela de Bom Jesus, na Ribeira, no começo do século XX, foi transformada na segunda paróquia.  

Todas as primeiras quintas-feiras do mês, a partir das 15 horas, ele se dedicava a confissão dos fiéis para a preparação das primeiras sexta-feiras. Naquela época quem chegava à matriz, encontrava filas enormes em torno do confessionário. Só havia confissão ocular, ou seja, individual, somente depois do Concílio Vaticano II teve início a confissão comunitária. Quando concluía já era mais de 9 horas da noite. Ele ia até o sacrário fazia suas orações e ia dormir na parte superior da sacristia.

Às 05h30 do dia seguinte ele celebrava a missa da primeira sexta-feira. Encerrando, tomava café e distribuía a comunhão aos doentes que não podiam se deslocar até a matriz para participar da missa (hoje isso é feito pelo Ministro Extraordinário da Eucaristia). Orientava os fiéis a serem perseverantes, pois quando completassem as nove sextas-feiras podiam pedir uma graça que seriam atendidos. As missas das primeiras sextas-feiras pareciam de domingo. Igreja superlotada.

O padre João Maria percebia que nas missas predominavam mulheres adultas, então começou a pedir que as esposas convidassem os seus maridos para se confessarem e participarem também da primeira sexta-feira. Ele tinha o hábito de citar sempre a Carta de Tiago, a qual recomenda a confissão. Ele incentivava muito a confissão.

A tradição das missas na primeira sexta-feira do mês, nascida cristianismo, permanece até os dias atuais. A partir do Concílio Vaticano II, a igreja iniciou a confissão comunitária, cuja experiência tornou mais leve o trabalho dos sacerdotes, sendo que numa única celebração, eles confessavam quantos estivessem presentes. Tal experiência também provocou incômodos em parte dos paroquianos, mas aos poucos se tornou comum.

Há um detalhe bastante importante na história do padre João Maria, o qual encontra-se empoeirado pelo tempo, e que o diferencia dos seus pares daquele tempo, inclusive de boa parte dos padres atuais com devidas exceções. Tenho uma opinião muito pessoal sobre o assunto, pois creio que esse fato pode esclarecer a injustificável demora de sua canonização junto ao Vaticano. Para entender melhor é preciso saber que todos os padres que desenvolveram pastoreio em Natal destacavam com muita intensidade a figura da Virgem Maria, personificada na padroeira da cidade Nossa Senhora da Apresentação, e seria diferente com o padre João Maria.

Sabe-se que o Cristianismo, como o próprio nome diz, centraliza a imagem de Jesus Cristo, ou seja, ele é o centro de tudo. De acordo com muitos escritos do próprio padre João Maria e suas homilias, ele enaltecia a Virgem Maria, mas não a colocava no lugar de Cristo, nem permitia aos católicos confundir o devido olhar a ambas figuras. Ele colocava os fiéis na presença de Cristo Vivo, ressaltando sempre que ele é o Pai e criador de todas as coisas. Ele rompe a adoração ao Jesus Morto, a qual era intensa e conduz a adoração ao Jesus Vivo. Mas era muito sábio e cuidadoso nessas reflexões, pois não diminuía a imagem da Virgem Maria, apenas discernia as enormes diferenças.

O padre João Maria desenvolveu com intensidade o olhar dos católicos para o Santíssimo, pois observou que a adoração a imagem de Nossa Senhora da Apresentação – e até mesmo outras imagens de santos e santas – sobrepujava a adoração ao Santíssimo. Diante disso procurou intensificar a fé na eucaristia. Essa informação que para os católicos natalenses era nova, atraiu um maior número de paroquianos, cuja igreja tornou-se pequena, aumentando também maior número de católicos durante a festa de Pentecostes.

É importante reforçar que ele jamais desmereceu os santos, inclusive conhecia na palma da mão a história de inúmeros deles, usando suas histórias de vida como exemplo, estimulando os fiéis a seguirem os seus exemplos, serem resilientes, crédulos e fortes na superação dos problemas.

Refletindo esse olhar diferenciado do padre João Maria, constatamos que ele se antecipou a Renovação Carismática, que de acordo com o Cristianismo, é a fé no Jesus Vivo, o centro de tudo, sem precisar ser equiparado a nenhum ser. Esse discurso é o mesmo dos protestantes. É importante ressaltar que naquela época – e atualmente – alguns padres e leigos torcem o nariz para essa nova visão da Igreja Católica, inclusive ela soa como uma espécie de divisão. Há padres e leigos que alegam que a Renovação Carismática é a ponte que prepara o católico para as igrejas evangélicas. Talvez por isso que muitos pastores fazem elogios a Renovação carismática, afinal boa parte dos evangélicos se tornaram protestantes depois de integrarem esse grupo católico.

Quando constatamos isso, percebemos uma aparente contradição no padre João Maria, afinal ele também priorizou o discurso esclarecedor sobre seitas e desvios de católicos para o protestantismo. Mas como entender tudo isso? O que houve? Ocorre que, diferente de hoje, ele arrebatou ovelhas e conseguiu aumentar o número de católicos praticantes em Natal, mas com um detalhe: à custa de seu testemunho e da pregação do evangelho. Inclusive trouxe para dentro da igreja pessoas que não tinham uma vida religiosa. Talvez nem fossem ateus, mas eram desligados da igreja.

Essa atitude diferenciada do padre João Maria foi esquecida por muitos. Inclusive pelos padres que colocam os santos como os grandes responsáveis pelas conversões. Há padres que, despercebidamente ou não, permitem que os católicos coloquem a Virgem Maria no mesmo patamar de Jesus.

            Enquanto a “Renovação Carismática” do padre João Maria – se assim se pode dizer – foi o caminho encontrado para dirimir as confusões que ele percebia nos fiéis sobre a visão Jesus/Maria, e com isso ele arrebatou multidões, a Renovação Carismática da atualidade criou uma porta, e quando os católicos atravessam essa porta, tornam-se evangélicos. 

            Há grande diferença entre a “Renovação Carismática” do padre João Maria e a Renovação Carismática atual, pois a do padre João Maria fortaleceu grandemente a Igreja católica. O que teria acontecido? Isso foi mediante apenas a sua extraordinária retórica? Ele enfrentou olhares diferentes de alguns padres, mas havia tanta autoridade naquele homem, que não era apenas um padre fazendo diferente. Era um padre arrastando multidões para dentro da Bíblia, inclusive veremos isso mais adiante, até porque essa ferramenta não era comum nas mãos dos católicos. E ele o fazia com a mesma autoridade que atendia abnegadamente a fome e a miséria que emoldurava Natal, silenciada pelos demais padres.

Esse detalhe do padre João Maria nos remete à intelectual Nísia Floresta, a qual criticou com entusiasmo o fausto em que viviam os padres e bispos. Na realidade o padre João Maria criticava esse fausto sem usar sequer uma palavra. E parte dessa crítica acontecia quando ele se sentava com os miseráveis e os ouvia; quando ele se colocava na pele do seu semelhante, enfim quando ele não conseguia estar feliz vendo fome, doenças e carências de todas as espécies. E ainda sobre a intelectual Nísia Floresta, ela se identifica com ideias do padre João Maria quando apresenta a fé católica para a sua filha Lívia Augusta, alertando-a sobre o perigo do aparecimento de religiões protestantes já naquele tempo. Devo esclarecer que Nísia Floresta e padre João Maria nunca se viram. Ela faleceu em 1885, na França, aos 75 anos, quatro anos depois que ele chegou a Natal.

Hoje, quando encontramos padres desfilando em Hilux e outros carros de alto luxo, espargindo mais perfumes franceses que água benta, empreendendo sucessivas viagens internacionais, desfilando com os iphones dos mais sofisticados, vestindo grifes dos pés a cabeça, freqüentando restaurantes dos mais caros, comprando o que bem querem (como se esse dinheiro viesse de seu suor, por via de suas fazendas, empresas, ou dos dividendos de seus bancos), torna-se urgente trazermos o padre João Maria para o centro das discussões, assim como também faz falta São Francisco de Assis. Falta à igreja atual um padre com esse perfil para colocar um espelho diante da vida dos sacerdotes que se esqueceram das casas de taipa onde nasceram. Creio que o Jesus Vivo, diferente do Jesus Morto, lhes perguntaria sobre os votos de pobreza e o real papel do sacerdote.

Em sua simplicidade o padre João Maria chegou ao ponto de recusar o conforto da casa de seus familiares que moravam próximos à Matriz para morar na sacristia. Numa ocasião ele discutiu com seu irmão Floriano Cavalcanti, quando este percebeu que o padre apresentava sinais de esgotamento e sugeriu-lhe descanso. Isso com certeza já era sinal da doença que o acometia. Mas ele colocava a evangelização e a caridade como afazeres permanentes, e se cuidava ao seu modo.

Quando chegou a Natal, observou que faltava aos católicos maior comprometimento com a igreja. Os paroquianos não acompanhavam a liturgia com a devida fluência, entravam e saiam a qualquer instante em plena missa. Era algo meio solto. A partir de então convidou alguns fiéis e passou a construir com eles o real sentido da liturgia e o devido respeito à missa. Explicava constantemente que a missa é um encontro com Deus, portanto esperava-se do povo contrição e total atenção. É importante lembrarmos que a mesma era completamente em latim, em conformidade com o Concílio de Trento. Enfim entendeu que seria melhor a criação de uma escola. E logo os próprios jovens se envolveram com grande alegria. Ainda adolescente o futuro professor Ulisses de Góis iniciou-se nessa equipe, levado pelos familiares, quando o Cônego Monte já tinha assumido este trabalho na Paróquia de Natal.

Uma característica do padre João Maria era a objetividade, raciocínio rápido e lógico. Dizia que tempo era ouro. Isso obrigou os paroquianos a se acostumar inicialmente com certa dificuldade. Mas aos poucos todos foram se habituando e aprendendo muito. Contam que quando se sentavam para discutir a programação da festa da padroeira, ele pontuava com tanta criatividade os eventos sacros e sociais que recebia aplausos de todos. Na realidade ele foi um grande educador, pois despertava o amor e admiração de todos. Arrebanhava colaboradores justamente por sua personalidade exemplar e o jeito humanizador. A metodologia cuidadosa fazia com que as atividades da igreja prosperassem sempre.

Atraídos pela pedagogia e o carisma do padre João Maria, muitos leigos se tornaram grandes lideres católicos a partir de tais práticas. Somente a partir do Concílio Vaticano II o Papa orienta que os sacerdotes fomentem a participação do leigo na igreja. Essa orientação dada pelo Vaticano revela o pioneirismo de um sacerdote que jamais pensou que um dia o seu pensamento se tornaria comum nas diversas pastorais. De fato ele foi um visionário.

Percebendo que algumas irmandades e segmentos da igreja eram mais conservadores e fechados, o padre João Maria serviu-se da Irmandade do Coração de Jesus para dar vazão a esse trabalho. Uma de suas grandes ferramentas foi o jornal “8 de Setembro”, no qual ele destacava a importância de entrosarem o leigo  na Igreja. Era tão aberto ao novo que abria até mesmo espaço para que os próprios leigos escrevessem em seu jornal.

Na realidade, em todo momento encontramos um padre João Maria inovador e visionário, muito embora seu trabalho pioneiro é desconhecido por muitos, ou até mesmo ignorado pelo fato de priorizarem a imagem do padre santo, que passou a vida perambulando Natal e região no lombo de um jumento. O quanto estão enganados aqueles que negarem isso. Tenham certeza disso.

Seu dinamismo, sua coragem, sua luta eram tantas que ele venceu a barreira da falta de meios eficazes de comunicação. Ele fez do pouco, muito. Se tivesse existido hoje ele deixaria bibliotecas inteiras de literatura católica e sabe-se lá mais que assuntos abordaria. Quem sabe cultura popular. Pelas grandes dificuldades de seu tempo ele não teve êxito na concretização de muitas idéias. Ocorreu com ele o mesmo que aconteceu a Leonardo da Vinci que desenhou o helicóptero num tempo que era impossível pô-lo nos ares. Mas ficou o desenho. Ficou a semente. É isso o padre João Maria.

Os mesmos costumes adotados na Vila Imperial de Papari foram levados à Natal. Ele manteve a sesta após o almoço, acordando poucos minutos depois das três horas da tarde para não ter mais hora para dormir, envolto nas atividades. Visitava algumas casas, atendia na sacristia, pois não faltavam pessoas pedindo comida, roupa, remédio ou meramente querendo alguma orientação. Ele conhecia o povo não só pelo nome, mas também pelas necessidades. E atendia a todos com a mesma serenidade e atenção.

Em suas homilias o padre João Maria colocava sempre o evangelho como o único instrumento que leva os paroquianos ao amor e a paz de Jesus Cristo. Alegava que a missão precípua da Igreja é conduzir o mundo em direção ao Jesus Vivo. Mas era característica de suas homilias ressaltar que Deus não concebe a palavra meramente falada, sem ações concretas. Dizia que é prioritário a todo sacerdote primeiramente fazer, agir, praticar, dar testemunho, e só depois recorrer ao altar para orar e pedir a Deus que o seu proceder seja recebido com graças. Ele proclamava sempre que palavra sem ação é como um corpo sem alma. 

Dizia que os padres devem sempre estar receptíveis a ajudar o próximo, seja com uma palavra, uma confissão, um conselho, uma ajuda material e outros gestos que Jesus em seu lugar o faria sem qualquer objeção. Assim o padre João Maria humanizou e evangelizou uma Natal que não podemos dizer hostil, mas apática às coisas da igreja. Nessa linha de pensamento em 1961 o então administrador apostólico da Arquidiocese, Dom Eugênio Sales criou a Campanha da Fraternidade, campanha que hoje é vivenciada em todo o Brasil pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. A cada ano é deliberado um tema no período da quaresma, no qual são pautadas diversas ações concretas e espirituais, durante o ano, visando um mundo pautado no evangelho de Cristo.

No tempo do padre João Maria havia uma carência muito grande de material religioso: livro, revistas, bíblias. Isso era um desafio para ele, o qual era muito didático, percebia a enorme necessidade de alargar suas ideias e sabia que precisaria de apoio de leigos. Com muitos esforços ele mandava comprar livros religiosos em Recife, São Paulo ou Rio de Janeiro. Ele não media esforços para melhorar e modernizar a sua prática sacerdotal. Inicialmente usava uma caneta “bico de pena”, copiava os cânticos em folhas avulsas e cadernos, permitindo que durante as missas duas pessoas pudessem usassem uma folha de cântico, cantando juntas. Em período de maior necessidade de material, como festa da padroeira, semana santa, Natal, ele pedia doação nas gráficas dos Jornais A república e Diário de Natal.

Ele fazia o possível e impossível para replicar o que existia. O único instrumento de reprodução de cópias era o mimeógrafo, engenhoca esquisita, que nem sempre ficava apresentável. Era uma caixa de madeira com uma tela de tecido de algodão. Ele colocava uma folha de estêncil atrás da tela, e com ajuda de uma espátula esparramava a tinta sobre o tecido. Conforme rodava o papel preso ao cilindro as cópias iam saindo. Muitas vezes manchava muito o papel, tinha que esperar secar. Mas como só existia isso, era disso que ele se valia, ainda agradecendo, pois muitas vezes faltava tinta e ele retornava para a caneta bico de pena.

Naquele tempo, papel era igual a ouro, obrigando-o a ter um zelo extremo por qualquer folha em branco, pois era matéria prima para o seu trabalho catequético. Já existiam máquinas de escrever, mas eram raras. Ele guardava as folhas que conseguia num armário no couro da Matriz de Nossa Senhora da Apresentação. Outro prodígio da época era o carbono, e graças a isso, com ajuda de dois paroquianos, fazia muitas cópias datilografadas. Pode parecer pouco, mas essas simples iniciativas tornavam as missas mais atraentes, afinal antes não se cantavam usando folhas de cântico.

Analisando as preocupações do padre João Maria, percebemos que ele era de fato muito observador e preocupado com todos. Não podemos afirmar que ele tinha predileção para com as crianças, com doentes, com os famintos, com a impressão de seu jornal e suas folhas de cântico, enfim com o quer que seja. Na realidade ele tinha uma visão geral de tudo. Foi um profundo conhecedor da Teologia. Usava seus conhecimentos para evangelizar e cuidar das pessoas sem qualquer critério. Não aceitava a precariedade de Natal, não aceitava a vida insalubre de boa parte dos moradores dos arredores. Ele se preocupava com tudo e todos, portanto sua vida era pautada pela ajuda ao próximo. Como disse o apóstolo Paulo “a fé sem caridade é morta”.

Uma de suas grandes preocupações era com os idosos. Adorava conversar com os velhinhos. Dizia que gostava de penetrar na alma das pessoas, pois isso o ajudava a ser melhor como ser humano e como padre. Para os idosos ele reservou-lhes um local especial na nave da matriz. Esse gesto de acolhida e amor aos velhos culminou com a criação do Abrigo Juvino Barreto no dia 26 de abril de 1944, sob os cuidados da Igreja de Natal. O nome Juvino Barreto se deve ao fato de ter sido esse rico empresário que doou o terreno na avenida Alexandrino de Alencar. Naquele tempo ainda não havia a Diocese daqui. Natal integrava a Diocese de João Pessoa quando o padre João Maria foi nomeado pároco dessa capital. A Diocese de Natal foi criada em 1910 e a Arquidiocese em 1929. O padre João Maria não pode ver a inauguração do abrigo, mas Dom Marcolino Dantas, com apoio do então prefeito José Augusto varela e de Aluízio Alves concretizaram o seu sonho.

Como já foi exposto, na época do padre João Maria, a população de Natal não chegava a seis mil habitantes. Não havia muita expectativa. Não havia lazer, não havia hospital. O comércio era acanhado. O único instrumento que de certo modo trazia algo diferente era o comércio, cujas novidades chegavam por via do cais de Natal. Diante disso todo esse trabalho diferenciado do padre João Maria representava um porto seguro para os natalenses. Era o homem que trazia paz, que dava o conselho certo, que resolvia conflitos. Nenhum natalense passava pelo padre João Maria sem prestar-lhes deferência.

Passava horas conversando com a meninada, brincando, fazendo perguntas, distribuindo santinhos, e nessa experiência anotava fatos interessantes, engraçados, curiosos para usar em suas homilias. Tinha muita preocupação com o futuro das mesmas, inclusive atendia aquelas que o procuravam, alegando que às crianças se deve a mesma atenção dispensada aos adultos. Essa última informação me foi contada pela senhora Estelita Marinho de Oliveira, bisneta do “Cavaleiro da Rosa”, a qual ouviu de sua avó que conviveu com o padre João Maria quando este morou na Vila Imperial de Papari. Esse cuidado extremoso com as crianças o levou a desenvolver um trabalho com as crianças pobres de Natal. Para atrair as crianças para a igreja serviu-se dos próprios pais. Desse modo enfatizava constantemente o quanto o pai e a mãe são fundamentais na formação humana e cristã dos filhos. Batia na tecla de que as crianças bem criadas se transformariam em adultos melhores, e que para se construir essa família ideal a igreja era o grande caminho que se complementaria com a escola. lugar estava a igreja, depois a escola era o melhor lugar para a construção desse caminho. E deu certo.

Como sabemos, as missas eram celebradas em latim, dificultando o êxito do sacerdote para atingir a compreensão da criança. Diante disso ele prepara uma equipe de catequese e cria uma metodologia diferenciada, permitindo o melhor entendimento melhor das crianças sobre o evangelho. Os encontros catequéticos eram dominicais, seja na matriz, nas capelas ou nos arrabaldes da cidade. Ele reconhecia na criança o pilar futuro da família, portanto deveria ser muito bem edificado. Buscando formas dinâmicas de levar o evangelho e encantar as crianças, cria um grupo teatral que impacta os paroquianos. Em pouco tempo até mesmo os adultos formam um grupo de teatro, práticas até então impensáveis. Havia no padre João Maria uma autoridade natural, cuja inteligência prodigiosa o capacitava para trabalhar com todas as faixas etárias com o mesmo dinamismo, e sempre obtendo resultados positivos. Essas ações não eram fáceis, pois havia correntes contrárias, oriundas da igreja velha, pautada no Concílio de Trento, mas sua sabedoria superava e ele evangelizava e humanizava cada vez mais.

Quando lemos os seus artigos no jornal 8 de setembro, encontramos o padre João Maria refletindo o problema dos menores abandonados em Natal, há mais de cem anos. Ele esteve adiante do tempo ao enxergar o problema que era invisível para todos. Obviamente que deveria ser uma parcela muito pequena de crianças, mas se ele abordou o problema foi porque era real. Não foi em vão que, no futuro, a Arquidiocese de natal fundaria um orfanato e o batizaria com o nome do Padre João Maria. A instituição funcionou em lugares diferentes e atualmente funciona na Cidade da Esperança. O que foi essa iniciativa senão a Pastoral do Menor Desamparado? É mais uma ação visionária e digna de reflexão, cuja semente foi depositada no solo da igreja pelo padre que pautou a sua vida de amor ao próximo. Para ele a igreja não tinha limites geográficos.

No início do século XX o padre Calazans Pinheiro, Auxiliado pelo Cônego Monte, Monsenhor da mata e Monsenhor Landim desenvolvem um projeto com os jovens natalenses com o objetivo de despertar-lhes maior interesse nas coisas da igreja. A Cruzada Evangelística iniciava preparando a criança para a primeira comunhão e seguia com as orientações religiosas até a fase da juventude.

 Futuramente, após o Concílio Vaticano II, a igreja criou o grupo de Perseverança, mais tarde denominado de Pastoral de Jovens. Não há como negar que o padre João Maria, mesmo com dificuldades incomparáveis e num contexto muito diferente, foi pioneiro na implantação dessa semente. Nos dias atuais a igreja Católica mantém o Encontro de Casais com Cristo que é a cereja do bolo, ou seja, a culminância de um trabalho que começa lá atrás, com a catequese infantil. No ECC a igreja abarca toda a família. E junto ao ECC existe o grupo “Segue-me”, que é acima do grupo de jovens.

O padre João Maria adiantou-se naquilo que a Igreja implantaria durante o Concílio Vaticano II, abrindo as portas para os leigos, preparando a igreja para enfrentar a modernidade e seus imensos desafios. Engana-se quem pensa que a marca registrada do padre João Maria foi meramente a sua abnegada caridade. Muito mais que isso, ele foi um homem de ideias modernas, que visualizava já naquele tempo alternativas para problemas que nem eram tão alarmantes naquele momento, mas ele já conseguia enxergar o que viria no futuro, portanto precisava ser iniciado naquele precário momento. Honestamente falando, o padre João Maria causa pasmo até hoje.      

Natal não possuía hospital, portanto o povo via no padre João Maria uma espécie de médico, e por se tratar de um sacerdote, as pessoas se acalmavam apenas com a sua presença, a palavra de conforto, a prescrição de alguma erva, a oração. Ele trazia uma espécie de paz de espírito. Ele percebia isso, portanto sentia-se no dever de levar conforto a quantos precisassem. Muitas e muitas vezes sua assistência entrava noite adentro. Era comum ver a exótica figura do padre sobre o seu animal, portando um lampião. E nos dias de chuva se somava o guarda chuva. Os outros padres insistiam para que ele descansasse, mas como sempre, era em vão.

Outra característica do padre João Maria era atender qualquer pessoa que lhe chamasse à porta a qualquer hora da noite, mesmo chovendo. Muitas vezes mal chegava à Matriz, ensopado, aparecia alguém reclamando a sua presença em determinado lugar para atender um doente ou dar extrema unção. Ele o fazia imediatamente, sem qualquer questionamento. Dizia que ninguém era capaz de pedir ajuda em vão. Já naquele tempo ele constatou em Natal o aumento do número de prostitutas, e trouxe o fato para ser discutido entre o clero e os leigos. E em suas homilias passa a enaltecer a importância da mulher na família e na sociedade, assuntos muito bem pautados em contextos bíblicos. É como se dentro do padre João Maria existisse um sociólogo que nas constantes observações da sociedade, sempre constata algo novo, e então se debruça em discussões e formas de tratar o assunto da melhor forma

Durante o dia era comum peregrinar no descampado que hoje denominam Alecrim. Naquela época a área extrapolava o limite urbano de Natal. Percorria a chamada “Quinta do Vigário”, hoje Quintas, e numa canoa chegava à margem oposta do rio Potengi, onde pipocavam meia dúzias de casinhas de palha e gente semelhante a índios. A região abrigava retirantes que sobreviviam dos mangues. Eles não tinham noção de higiene e limpeza, portanto o sacerdote os orientava a ferver água, cobrir os alimentos, construir latrinas, enfim tudo o que pudesse melhorar suas vidas. Era o único lugar que não o viam sobre o seu jumentinho, pois percorria as casas a pé, cujo animal o aguardava na Quinta.

 Nos períodos de epidemia, ele ajudou a enterrar muito defunto por falta de pessoas que pudesse executar esse serviço. Tinha como característica passar otimismo para todos, dando esperança e paz de espírito meramente pela palavra, pelos remédios que prescrevia e orientações diversas. Atraídos pelo seu testemunho de cristão autêntico, os retirantes de diversas partes da província o procuravam assim que chegavam a Natal. Ele acolhia todos, ajudando-os a fazer suas casas de palha ou taipa. O bairro do Alecrim nasceu pelas mãos de retirantes, talvez por isso seja uma região tão plural.

O padre João Maria tinha o carinho e o respeito de todos, de crianças a idosos, de ricos a pobres. Com o tempo as pessoas passaram a idolatrá-lo como um santo vivo, fato que muito o desagradava. Passar por ele revelava “sinais”. Era momento de deferências externadas por beija mão, pedido de bençãos e algo do tipo. Ele alegava sempre que não curava ninguém, era um instrumento de Deus. Mas as pessoas não se aquiesciam a isso, entendendo que ele de fato realizava milagres, bastando evocar o seu nome.

Padre João Maria fez do evangelho a sua vida. Foi de fato um exemplo de sacerdote, mas essas qualidades que sobressaem na sua história escondem o homem visionário, que num tempo longínquo, e com incomparáveis desafios, proclamava que a igreja precisava se modernizar, necessitava de novas práticas para levar o evangelho a todas as pessoas. Interessante essa observação porque ele se fazia instrumento do seu discurso. Alegava que os discursos bonitos poderiam até encantar as assembléias, mas não consolavam mais os pobres, os famintos, os doentes e os miseráveis. Ressaltava que a Igreja não podia se resumir meramente em quatro paredes, ela precisava de ações concretas, urgia que se rompessem os limites geográficos das paróquias, pois todo lugar é igreja nas mãos de padres pastores. Servindo-se das palavras de Jesus dizia que “a fé sem ação é uma fé morta”. Talvez por isso que ele sempre dizia que Natal precisava muito de um seminário. Era um de seus grandes sonhos. Se concretizado naquela época, com certeza ele teria sido o grande pedagogo do evangelho. Ele também lutou pela criação de diversas irmandades em Natal.

Conhecedor profundo dos problemas da seca, já naquela época defendia maiores esforços e a participação do Governo Federal na amenização do problema. Muitas vezes ajudou os moradores dos subúrbios de Natal a construírem suas palhoças e postulava emprego para aqueles que apresentavam maior precariedade. Muitas vezes conseguia empregar alguns nos serviços de jardinagem das residências palacianas de Natal, num tempo que as madames ricas disputavam a beleza de seus jardins.

Diante de muita pobreza e dificuldades para revertê-la, o padre João Maria, no dizer dos nordestinos, “fazia das tripas o coração” para aplacar os desafios. Um de seus gestos mais marcantes, que aos olhos atuais, soa pitoresco, foi inventar em Natal os famosos “vendedores de areia”. Iniciativa que consistiu em solução para os desempregados. Ele havia visitado a residência de uma rica família católica, quando presenciou a empregada lavando as imensas panelas de ferro com areia da praia. Indagando-a sobre a novidade, soube que as crostas e gorduras se largavam com facilidade se esfregada com areia colocada na bucha. Para aprimorar o trabalho ainda a usavam a areia para polir as panelas.

Naquele tempo não existia fogão a gás. As panelas eram de alumínio, latão, cobre e ferro. Só os pobres usavam utensílios de barro. O fogão a lenha impregnava de fumaça o fundo das panelas. Eis que ele sugere ao seu povo encher pequenas garrafinhas e saquinhos com areia de praia para vender de casa em casa. Assim surgiram os “vendedores de areia”, personificados em crianças, velhos, homens e mulheres. Foi o maior sucesso, a ponto de tornar-se tradição em Natal até o final da década de 50.

Com certeza a participação conscienciosa do padre João Maria nesse projeto sensibilizou os natalenses. Tudo o que ele colocava as mãos, prosperava. Sua meta era amenizar a dor alheia e tornar as pessoas melhores. Quando ele percorria as ruas de Natal, dedicava um bom tempo conversando com os pedintes. Era uma de suas maneiras de evangelizar e fazer com que todos se sentissem acolhidos e respeitados.

Com o Concílio de Trento realizado na cidade de Trento, (Itália) no período de 1541 a 1663 tendo sofrido interrupção de 1551 a 1552, devido a situação política da época, a igreja foi estruturada, com uma só liturgia, surge a figura do padre e o ensino do seminário.

O jornal “8 de Setembro” inspirou o surgimento de diversos veículos de comunicação em natal e outras cidades potiguares, sempre com a mesma filosofia do padre João Maria. Como exemplo, tem-se o jornal católico “A Pátria”, fundado pelo Monsenhor José Paulino, “A Verdade”, fundado pelo professor Luís de Góis, o qual homenageia o padre João Maria, o qual funcionava sob a responsabilidade da Fundação Padre João Maria, o jornal semanal “A Ordem”, que circulou em Natal, o jornal “A Verdade” que foi mantido pela fundação que recebeu o nome do Padre João Maria, e a “Rádio Rural”, responsável por grandes transformações. Em Mossoró fundaram “O Semeador”, e a “Rádio Rural”. Em caicó criaram a “Rádio Rural”, e o Monsenhor Walfredo Gurgel fundou a “Folha”, que circulou entre 1950 a 1960.

Este acúmulo de atividades não tardou a produziu debilidades em seu organismo. Assim quando a cidade do Natal foi atingida por uma epidemia de varíola no ano de 1904, padre João Maria desdobrou-se em assistência.

Em 1905 o padre João Maria, já doente carregava água pela madrugada para atender aos doentes. Ensinava a fazer alimentos, consolava os doentes e seus familiares e dormia no chão porque tinha feito doação da sua própria rede. Nesta a doença tomou conta do padre João Maria e ele morreu acometido do mal que tanto combateu.

Coube ao padre João Maria celebrar a missa de passagem do século XIX para o século XX. Nessa ocasião ele pediu que cada um olhasse para dentro de si mesmo e procurasse melhor compreender os seus irmãos. Caso não houvesse isso o mundo caminharia para a destruição. Ele concluiu dizendo que as últimas profecias marcavam para o século que estava começando grandes desafios que iam concluir com o fim da vida humana no planeta.

Essas transformações anunciadas pelo padre João Maria provocaram dois conflitos mundiais e outras guerras, que ocorreram para o surgimento de várias nações como de doenças provocadas por bombas nucleares. A homilia do dia 31 de dezembro de 1899 para o dia 1º de fevereiro de 1900 foi mais um alerta sobre o que poderia acontecer nestes próximos cem anos. Caso uma pessoa tivesse assistido aquela missa e pudesse fazer hoje a retrospectiva do que foi dito pelo padre João Maria, iria ver que ele tinha feito uma verdadeira profecia.

Conversando com seus paroquianos, descobriu que eles tinham muita curiosidade de conhecer a Bíblia melhor. Poucas pessoas tinham acesso a Bíblia sagrada. Com ajuda de outros sacerdotes desenvolveu um curso de conhecimento bíblico, fato este que mais tarde pode realizar um curso envolvendo as irmãs religiosas e um pequeno grupo de leigos.

Sem saber o padre João Maria estava iniciando em Natal um trabalho pioneiro no Nordeste. Esse e outros trabalhos colocaram Natal muito além de outras cidades. Com a liturgia toda em latim, muitos fiéis da época tinham grande dificuldade para compreender a liturgia da igreja. Naquele período nos grandes centros tinham a figura do comentarista na missa, onde o padre ia celebrando e o comentarista ia aproveitando para narrar os significados dos atos que se processavam no altar.

Com o advento do Vaticano II, a figura do comentarista passou a resumir apenas nas ocasiões do início da celebração e na liturgia da palavra. Sendo dispensado para o restante da missa.   Só as pessoas mais ligadas aos padres tinham o privilégio de conhecer melhor a liturgia da igreja. Muitas vezes essas pessoas achavam que não deviam repassar esses conhecimentos, com medo de não serem entendidos nos seus ensinamentos.

Com o crescimento do Alecrim, as Quintas do Vigário foi empurrada pelo progresso com o surgimento das primeiras casas de taipa, o atual bairro das Quintas foi tornado comunidade que veio a ser concretizado depois da rua Mário Negócio, que foi por muito tempo elo de ligação entre a antiga estrada de Macaíba com a cidade de Natal.

Com a criação da Diocese de Natal e consequentemente a implantação da estrutura da Cúria, a igreja de Natal passou a ter mais força para a criação de um plano de formação mais amplo para a formação do leigo. A ideia do ensinamento implantado pelo padre João Maria perdurou por muitos anos, até quando o então Monsenhor Eugênio Sales quando, em 1954, quando assumiu a administração apostólica da Diocese criou as famosas Semanas Bíblicas, onde os leigos tinham condições de estudar a Bíblia, acompanhados por padres, freiras e leigos experientes. Dom Nivaldo Monte criou a Escola de Ensino Superior Religioso, dando maiores condições aos leigos terem um profundo conhecimento com relação a bíblia e teologia.

A ideia do padre João Maria em possibilitar ao leigo um maior conhecimento bíblico está agora sendo concretizado onde dezenas de fiéis concluíram a Escola de Ensino Superior Religioso e hoje estão ensinando nas escolas oficiais do estado.

A igreja de Bom Jesus das Dores, construída em 1772, foi erigida para desenvolver o cristianismo na cidade baixa. Em 1881, quando chegou o padre João Maria para assumir a igreja de Nossa Senhora da Apresentação, ele teve um cuidado especial com a igreja de Bom Jesus das Dores, onde desenvolveu um trabalho de catequese e outros trabalhos que deram impulso ao cristianismo naquela área de Natal. Não existia ocas. Tudo era extensão da Ribeira. Área de uma ou duas casinhas de palha.

Por diversas vezes solicitou ao bispo Dom Joaquim de Almeida um padre para aquela igreja, tendo em uma das vezes alertado que já era necessário a criação de uma nova paróquia com sede na igreja de Bom Jesus. Seu sonho só foi construído no dia 9 de janeiro de 1932, quando um decreto criou a Paróquia de Bom Jesus das Dores, compreendendo os bairros da Ribeira, Rocas, real, Petrópolis e uma área da Ribeirinha. O bispo da época era Dom Marcolino Esmeraldo Dantas.

Antes de ser transformada em Paróquia a Igreja de Bom Jesus das Dores na administração de Dom Joaquim de Almeida logo após a morte do padre João Maria foi entregue aos padres franciscanos, passando em 1913 para os padres da Sagrada Família, que hoje administra a paróquia do Alecrim.

Apesar da decadência do bairro da Ribeira, a Igreja de Bom Jesus das Dores é considerada a igreja das classes da elite.

Ele visitava os idosos em suas casas, levava remédios, alimentos e roupas usadas que pedia em suas homilias. Ele tinha pessoas que recebiam as roupas, organizavam e separavam para a doação. Fazia o mesmo às crianças e pessoas pobres que o procuravam, vindas do interior. Em sua época, o pessoal pobre ficava na área do Baldo e se estendia até a área localizada a praça Gentil Ferreira. Ele chegou a realizar um trabalho de assistência social na área onde hoje encontra-se o bairro de Lagoa Seca, ali surgiu em torno da Lagoa dos Enforcados alguns casebres. Ele nunca deixou de visitar alguns velhinhos que moravam em Papary. Uma ou duas vezes por mês ele ia a Papary no lombo de seu jumento.

Padre João Maria vivia no Baldo, onde realizava diversas atividades evangelizadoras e sociais. O Baldo surgiu com os escravos alforriados que ali construíam suas casas. Depois quem chegava a Natal sem casa se estabelecia ali e erguia uma casa de palha ou taipa. Isso se estendeu ao Alecrim. Na área predominavam pescadores, portanto o padre sugeriu que o padroero dali fosse São Pedro. Naquela época os limites da zona urbana de natal se estendia até a santa Cruz da Bica, e o Baldo se encontrava em zona rural.

As águas do Baldo eram potáveis e o padre retirava vasilhames cheios do precioso líquido para levar aos doentes. O padre vivia ali ajudando as pessoas, indicando-as para emprego com conhecidos, além de colocá-las para trabalhar em serviços da matriz quando eram reformada. Outras ele pedia emprego para paroquianos, os quais as colocavam para trabalhar como espécie de ASG na Intendência. Na própria construção do Hospital da misericórdia, ocasião da epidemia de varíola, ele conseguiu que muitos moradores do Baldo fossem empregados em sua construção. O Alecrim é um bairro diferente, pois floresceu em situação peculiar.

Com a construção do cemitério do Alecrim os moradores do baldo se espalharam para suas imediações e devagar apareceram as casas de alvenaria. A lagoa dos enforcados secou e se transformou em Lagoa Seca, surgindo o bairro com esse nome.

Um dia o padre João Maria confessou ao padre Calazans a necessidade de a paróquia de Nossa Senhora da Apresentação desenvolver um trabalho junto aos jovens. O fato alegado era que depois da primeira comunhão os adolescentes deixavam a igreja e voltavam apenas para se casar. Naquele tempo a crisma era celebrada na infância e não na adolescência.

Devemos reconhecer que o padre João Maria pode ter uma vida tranqüila, confortável, como os outros padres. Mas renunciou e passou por inúmeros sacrifícios em troca da felicidade do próximo. Dentro da Bíblia sagrada, o padre João Maria ligou o seu trabalho a uma missão espiritual. Procurou unir a fé ao seu trabalho, daí tirando proveito a fraternidade, como uma maneira de unir as duas coisas numa só em um só testemunho de levar Cristo ao mundo que viveu.

Ele reunia qualidades tão admiráveis, as práticas sacerdotais eram tão dinâmicas e intensas que a Matriz se tornou pequena. Surgiu então mais um imbróglio na vida daquele padre que não conseguia se deparar com problema sem buscar solução. Então nasceu a ideia de iniciar a construção da catedral de Natal. Se contemplarmos as fotografias de Natal nas décadas de 1970 a 1980 nos surpreendemos com locais que eram tabuleiros de mata rasteira, permeados de coqueiros, e hoje se vê uma selva de concreto na área urbana, como o Shopping Midway, a área costeira, nos surpreendemos. Imagine na época do padre João Maria. E nesse tempo ele já imaginava uma catedral.

A área onde está a atual Catedral Metropolitana da Natal foi um desses tabuleiros doados à Igreja a pedido do padre João Maria. Creio que após a sua canonização, nada mais justo que homenageá-lo de maneira mais justa, dando a esse templo o nome de “Catedral Metropolitana Santo João Maria”, em respeito à sua dimensão humana, sacerdotal, pelo pioneirismo de postular a sua construção e até mesmo por ter visualizado o terreno e obtido a sua doação para a Igreja. É fundamental reconhecer que os esforços para a sua concretização foram iniciados por ele, num tempo de realidade financeira incomparável e grande dificuldade de transporte de material de construção. Tudo isso ele desafiou, mesmo já adoentado, mas sem perder a fé.

Muito criativo e otimista ele idealizou estratégias para tornar leve o trabalho pesado, organizando mutirões e sensibilizando os paroquianos. Quase todos os dias ocorriam romarias até o terreno, cujo povo conduzia pedras, tijolos, madeira, cal e os demais materiais de construção disponíveis naqueles tempos. Era um formigueiro humano. Cada um levava aquilo que suportava, sempre cantando, conversando e se alegrando uns com os outros. Assim o percurso de se tornava menos cansativo. Quem olhava a quantidade de material disposto no terreno, se admirava, surpreendido pelo volume obtido em tão pouco tempo.

As pedras vinham da Praia do Meio, que naquele tempo chamavam de “Praia do Morcego”. O local se transformou numa espécie de pedreira, na qual os homens arrancavam as pedras maiores e quebravam com marretas, enquanto outros iam separando. As pedras pequenas e soltas eram levadas por crianças, as médias pelas mulheres, e as maiores por rapazes e homens. Até os idosos se sujeitavam ao trabalho, animados pela intenção da obra e pelo dinamismo do padre João Maria. Era como a sua coragem passasse por osmose. As pessoas ajudavam por prazer. Subiam a ladeira de acesso à Cidade Alta em procissão, entoando cantos sacros, num côro que emocionava.

Todos os pedreiros eram voluntários. As paredes começaram a ser erguidas. As mulheres preparavam o alimento dos maridos envolvidos na obra e traziam diariamente. O local se tornou um ponto de socialização, com missas, reuniões de jovens, enfim um átrio de alegria, e com a presença intensa do padre João Maria. Mas um fato muito triste, cujos fiéis já constatavam há algum tempo paralisou a obra. Ele adoeceu a ponto de não conseguir mais andar. Precisou ficar acamado. Demorou-se mais algum tempo muito doente e findou morrendo. Com a sua morte, morreu o projeto da catedral, a qual foi abandonada, o mato tomou conta e lentamente ruiu. As obras só foram reiniciadas e concluídas após mais de meio século depois.

O próprio padre João Maria preparava a sua comida em seu fogão a lenha. O médico José Paulo Antunes, vendo que a doença o consumia, orientou os seus familiares a o levarem para o Monte (onde existia uma casa que ele moraria). Hoje ali está a igreja de Nossa senhora de Lourdes. Era o único médico da cidade. Ele proibiu suas atividades. Ele deveria repousar e respirar ares da praia e sentir a brisa. Durante a sua doença a peregrinação ao redor de sua casa era imensa.

Todos queriam saber como ele estava. Dr. José Antunes era baiano de nascimento. Chegou a Natal logo após se formar em medicina. Ficou em Natal até o fim de sua vida. Foi médico assistente do padre João Maria de quem era amigo e admirador. Ele mandou ao irmão do padre um relatório discriminando detalhadamente a situação do padre, mas ele foi enfraquecendo a ponto de certa vez desmaiar no consistório da Matriz, quando foi encontrado pelos seus amigos. Seu médico faleceu um ano depois, aos 16 de dezembro de 1906.

Padre João Maria gostava de confidenciar assuntos sigilosos ao padre José Calazans, o seu coadjutor e guia espiritual. Todos os dias padre Calazans subia duas a três vezes a rua Belo Monte para ouvi-lo e acompanhá-lo quando já se encontrava a caminho da morte. Enfim, em 1905 adoeceu gravemente. Grupos de fiéis se reuniam para orar em intenção a sua cura na igreja de Nossa senhora da Apresentação, sendo reconfortado pelos sacramentos da igreja ministrados pelo padre José Calazans Pinheiro.

Ele faleceu no dia 16 de outubro de 1905, pela madrugada, em sua residência na rua Monte Belo (Alto de Petrópolis), já muito debilitado pelo vírus da varíola, contraído por ter se dedicado às pessoas com essa doença. A partir de então os paroquianos começaram a se juntar nas imediações. Padre Calazans, que ministrou os sacramentos da igreja, sentiu que ele lhe queria dizer algo. Com certeza era para que continuassem suas obras de caridade e evangelização. Assim que padre João Maria morreu, padre Calazans disse “perdemos um grande padre, mas o Céu ganhou um grande santo”.

Às quatro e meia da manhã todo o espaço que emoldurava a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação foi tomada por uma multidão desolada, que passou a aguardar o corpo. Um cortejo de cinco mil pessoas, um terço da população, somou-se ao enterro, algo sem precedentes para a época cuja Natal contava com 20 mil habitantes. Os restos mortais foram levados  para a Matriz de Nossa senhora da Apresentação onde foi celebrada a missa de corpo presente pelos padre da paróquia de Natal.

O próprio povo se incumbiu de decorar a igreja. Via-se do lado do riquíssimo cadafalso, que dava para a porta principal a seguinte inscrição “In memorian aetaona erit Justus”. Ao lado direito, lia-se “Homenagem da redação de Oito de Setembro, ao seu saudoso diretor”. Na frente estavam estes traços biográficos “João Maria Cavalcanti de Brito, nasceu a 23 de junho de 1848”. Ao lado esquerdo, ainda lia-se esta inscrição “João Maria Cavalcanti de Brito, nasceu a 23 de junho de 1848, faleceu a 16 de outubro de 1905”. Ainda ao lado esquerdo lia-se esta inscrição “Saudade da família”. Todas as capelas laterais, as tribunas, o coro e os púlpitos foram cobertos de crepe.

Às sete horas da manhã começaram as exéquias dos quais foi celebrante o padre Antonio de Paiva, vigário de São José de Mipibu, gente do Engenho Descanso de Papari, hoje Nísia Floresta. Fez o panegírico do morto o sacerdote Severiano de Figueiredo. Serviram de diáconos os reverendos padres Misael de Carvalho e José Neves. No solo episcopal achava-se o Revmo Bispo Dom Adauto, bispo da Diocese, com os presbíteros Revmo Francisco Severino, Reverendo Padre Irineu Jofflys e Calazans Pinheiro e outros.

O Governador do estado Augusto Tavares de Lira não pode comparecer e enviou uma bela carta, fazendo-se representar por seu ajudante de ordens. A orquestra Clube Carlos Gomes participou da solenidade executando as músicas contidas na solenidade fúnebre, sob os cuidados do maestro Coelho. O Reverendo Cônego Severino de Figueiredo FEA o panegírico do vigário João Maria exaltando as grandes virtudes cristãs do distinto sacerdote. A solenidade terminou às dez horas.  

Depois o cortejo fúnebre levou seus restos mortais para o cemitério do Alecrim onde foi sepultado. No transcurso do cortejo o pastor protestante William Calvino agrupou o cortejo até o túmulo do padre João Maria, ali sob os discursos das principais autoridades do estado, dentre elas o desembargador Francisco Salles Meira e Sá, o tabeliõ Miguel Leandro e o poeta Francisco Ivo Cavalcanti Filho, e a comoção popular,  o corpo foi sepultado. No dia 2 de novembro de 1917 os ossos do vigário foram levados para um novo túmulo no mesmo cemitério. É o túmulo mais visitado de natal, construído pela Liga Operária. A causa mortis de acordo com documento acusa “diabete”.Muitos acusam que ele morreu em decorrência de febre amarela.

Com o consentimento do então arcebispo de Natal Dom Nivaldo Monte, o túmulo do padre João Maria foi novamente aberto e parte de seus ossos foi lavada para a Igreja de Nossa Senhora de Lordes, construída onde existiu a casa de sua morte, hoje rua e de novembro.

Coube a Pedro Soares Filho a idealização da campanha para a construção do monumento em homenagem ao padre João Maria. Nunca se viu mobilização tão grande e estimulante. Veio ajuda até do Seridó. De Lages veio o granito a custo zero. O escultor norte-rio-grandense Hostílio Dantas, ex-professor do Atheneu, que naquela época morava no RJ e o artista italiano Miguel Micussi, autor de outros monumentos em Natal, realizaram a obra. Pedro Soaes morreu vitimado por gripe espanhola quinze meses antes da inauguração do monumento.

Na praça da alegria no dia 19 de agosto de 1919, 14 anos após o falecimento do padre João Maria. Era governador Ferreira Chaves. O orador nessa atividade foi Manuel Dantas. O escritor e historiador Nestor de Lima lavrou a ata referente aos acontecimentos. Dom Antonio dos Santos Cabral, 2º bispo da Diocese de Natal, presidiu a missa. Encerrando as festividades cívico-religiosa o presidente em exercício major Fortunato Aranha, agradeceu  em nome da edilidade de Natal aquele monumento que passaria a fazer parte da vida histórica do estado.

D. Antonio dos Santos Cabral era naquela oportunidade bispo da diocese de natal, sendo consequentemente o segundo bispo natalense. Faleceu em 1967 como arcebispo de Belo Horizonte.. Natal passou a ser arquidiocese em 1952, naquela oportunidade o bispo era D. Marcolino Dantas, que foi o quarto bispo de Natal e o primeiro arcebispo da arquidiocese. O ato foi do papa Pio X. Antes da construção da nova catedral ali tinha a denominação de Praça Pio X em homenagem ao evento. Naquela época não tinha a função de bispo auxiliar, o atual arcebispo do RJ D. Araújo Sales era administrador apostólico. Fazia a vez de bispo auxiliar. D. Antonio Soares da Costa foi o primeiro bispo auxiliar.

O governador Ferreira Chaves, aproveitando os flagelados da seca, demoliu a chamada Praça da Alegria e empregou-os na construção da Praça João Maria, modernizando-a com arquitetos e engenheiros. Foram cinco meses de obra.

Após o sepultamento do padre João Maria, o padre Calazans reuniu todos os sacerdotes para falar da dimensão do padre João Maria. Destacou o quanto era difícil ver um sacerdote tão irmão de seus irmãos, um padre com tanta fé e um amigo colega tão sincero como o padre João Maria. Era uma voz doce, que durante a homilia fazia os paroquianos ficarem mais cheios de graça. Era Natal, ainda provinciana, onde as suas ruas calmas, tranqüilas, dava uma maior serenidade aos seus 30 mil habitantes.

A casa onde o padre João Maria morreu cedeu lugar para a atual Igreja de Nossa Senhora de Lourdes.

Em 1914, quando inauguraram a Escola Doméstica em Natal o seu idealizador Henrique Castriciano, em seu discurso pediu que todos os professores que “seguissem o espírito de bondade e humildade do padre João Maria, o qual era exemplo para todos”.

Quando o Papa João Paulo II esteve em Natal e na Catedral, dirigiu um pronunciamento aos padres brasileiros que se encontravam participando do XII Congresso Eucarístico Nacional, disse que o “Brasil precisa de padres santos a exemplo do padre João Maria”. Isso mostra a santidade do padre JM e o quanto ele deixou exemplos.

Tantos anos após a sua morte e ainda é grande a devoção ao padre JM. Dezenas de velas acesas, ex-votos. Interpretando esse sentimento, em 1950, a Câmara Municipal de Vereadores enviou à Santa Sé, por intermédio do senhor Luiz Soares, o pedido de canonização para o “Apóstolo da Caridade” como é chamado desde remotos tempos. Pe. João Maria foi um sacerdote voltado para a igreja exterior, isto é, depois do templo, a fim de mostrar que a Igreja uma unidade espiritual é humana, sem limites geográficos e preconceitos sociais.

Até depois de sua morte, os conterrâneos pareciam vê-lo fazendo ali, fazendo aquilo que ele gostava de fazer, parecia que até o seu espírito permaneceu no andar superior da sacristia contemplando os seus paroquianos e dando um verdadeiro exemplo de bondade.

A romaria à praça Padre João Maria, iniciada no dia 7 de agosto de 1921, quando a Prefeitura da Cidade do Natal entregou aos natalenses  continuadas até hoje, comprova que a fé daquele santo padre se estendeu aos paroquianos e passou de geração a geração, como uma herança construída a base de fé.

Antonio de Souza, ex-governador do estado, teve o privilégio de conviver com o padre João Maria e em muitas vezes engrandeceu o nome daquele sacerdote. Para Antonio de Souza, ninguém mais do que ele soube compreender e praticar a própria essência da doutrina cristã, mais adiante o próprio Antonio de Souza afirma que a humildade, o amor aos seus semelhantes fez em padre João Maria um grande homem.

Quando Dom Marcolino, terceiro bispo de Natal, assumiu o bispado dessa capital, fez monção ao padre João Maria dizendo que o seu trabalho deve ter continuidade pelo clero natalense, numa certeza de testemunho de fé e acreditar que somente com um trabalho honesto e justo poderemos ultrapassar todas as barreiras.

Foi exemplo para muitos jovens que depois se tornaram padres de renome na Arquidiocese, como Dom Alair, Cônego Monte, Monsenhor Da Mata, Dom Nivaldo Monte e até Dom Eugênio Sales.

Segundo os antigos, contam que uma senhora da cidade de Açu, cega de guia, chegou a Natal numa pensa romaria a fim de implorar a proteção de Deus e do padre João Maria. Chegando a Natal, foi com um de seus familiares ao monumento e poucos instantes depois gritou “já estou vendo”. E quando retornou a Açu, foi espanto geral dos moradores daquela cidade quando constataram que realmente aquela mulher que antes era cega, estava vendo.

Um fato muito comentado em Natal foi o caso de Antonio Castro de Souza, tenente do Exército, pediu a sua reforma e não conseguiu, mesmo até de ter solicitado ao Presidente da República. Certo dia deixou Recife com destino a Natal, e ao passar ao Grande Ponto com destino ao Quartel General, viu muita gente ao redor do monumento em homenagem ao padre João Maria.Parou e por curiosidade dirigiu-se até o local fez uma prece e poucos minutos depois pelo noticiário “Hora do Brasil”, ouviu a sua reforma ao posto de capitão assinada pelo então Presidente da República Humberto de Alencar Castelo Branco. A partir daquele momento Antonio Castro tornou-se fiel e crente nas graças do padre João Maria.  

Uma senhora que morava em Papary e queria antes de morrer se confessar ao padre João Maria, já enferma e próxima da morte sem condições de falar e murmurava para a filha pedindo a presença do padre João Maria, mas ela não entendia toda aquela encenação que era praticada pela mãe. De repente viu algumas pancadas na porta de entrada da casa e quando abriu a porta encontrava-se o padre João Maria, que além de trazer a estola apropriada para a confissão, trazia também o necessário para a celebração dos sacramentos destinados aos cristãos que estavam agonizando.

Assim como o imaginário popular criou lendas sobre o padre Cícero Romão Batista, não faltou quem criasse as mais diversas estórias sobre o padre João Maria. Durante muitos anos, foi contato como verdade que uma pessoa viu um vulto andando sobre as águas do rio Potengi a meia noite. Curiosa, dirigiu-se até o vulto e reconheceu o padre João Maria, que trazia sobre a cabeça um vasilhame contendo água doce destinada a uma pessoa que se encontrava doente.

Logo que o padre João Maria veio a falecer era natural encontrar alguém que afirmava ter visto o padre João Maria em alguma parte de Natal. Muitos juravam tê-lo visto na hora da aflição.

Apesar do processo da sua canonização estar em tramitação no Vaticano, os natalenses consagram como o santo de Natal. Daí ser necessário que nos anais da literatura norte-rio-grandense constasse com muitos livros que pudessem ser narrada a sua história. Muito antes que a Igreja Católica saísse dos templos luxuosos e fosse para as favelas dentro da filosofia da Teologia da Libertação, que é combatida pela cúpula radical da própria Igreja católica, o padre João Maria, muito antes, aqui no Rio Grande do Norte já praticava várias nuanças dessa nova práxis.

Apesar de sua mansidão, padre João Maria não levava desaforos para casa. Talvez isso o afastasse do meio dos poderosos. Não gostava de interferências de terceiros nos seus trabalhos. Gostava de falar a verdade, mesmo que viesse a ser prejudicado, como também gostava de ouvir a verdade. Quando vinham com embromação ele se trancava e pedia para a pessoa dizer só a verdade.

Caso a pessoa continuasse na mesma tecla ele pedia desculpa e a deixava falando sozinha. Nem por brincadeira gostava de ouvir mentira. Às vezes até pessoas de seu íntimo relacionamento ficavam sem a sua ajuda quando a verdade não era dita. Suas homilias e nos seu dia-a-dia, dizia que a verdade deve ser dita em qualquer momento, e que a mentira nunca deve substituir a verdade. Dizia que a psicologia ajudava a descobrir onde estava a verdade da história. “Quem mente fala de cabeça baixa é um verdadeiro mentiroso”. Gostava de conversar olhando para os olhos de seus semelhantes. Seus colegas de clero já conheciam o jeito do padre JM e nos encontros com ele, como gozação, perguntavam se naquele dia ele tinha conseguido encontrar algum mentiroso.

Quando alguém chegava atrasado nas reuniões e dava uma desculpa, ele ficava meditando. Contavam que uma senhora chegava atrasada em todos os eventos e sempre tinha uma desculpa. O padre sabia que tudo aquilo não era verdade. Certo dia a encontrou na rua e disse “a senhora hoje não vai chegar atrasada”. Ela concordou. Como ele sabia onde ela morava, ficou na esquina da rua para realmente saber os verdadeiros motivos que fazia ela chegar atrasada. Meia hora antes da reunião ela saiu de casa e entrou na casa de suas amigas e o padre foi obrigado a sair de seu posto e ir para a igreja para não cair na lista das pessoas que chegavam atrasadas. Depois de quase 25 minutos ela chegou na reunião e o padre foi logo interrogando “o que aconteceu para que você chegasse atrasada”? Meu marido atrasou e tive que esperá-lo para colocar o jantar. O padre disse “não sabia que a senhora tinha mudado de residência”. Segundo as línguas ferinas, ela só ia à igreja depois de conversar com a sua amiga, onde aproveitava para passar a ouvir as novidades do dia.

Assim nasceu a devoção ao padre João Maria, onde o povo ligou o folclore ao misticismo religioso. Com a inauguração da praça João Maria, esta fé cresceu e chegou até os dias de hoje, onde o povo o considera santo de Natal e diariamente faz promessas e acende velas próxima a estátua do seu busto. O próprio povo se encarregou de canonizá-lo.

Curiosamente, quando o Papa João Paulo II esteve em Natal e se reuniu com o clero, disse “a igreja está precisando de padres santos”.  Num tempo que a igreja desconhecia o que eram lutas populares em defesa da cidadania, cujos católicos nunca tinham sido levados a enxergar Jesus Cristo como líder popular, preocupado com organização de classes, direito a uma casa e terra, o padre João Maria, embora com certa precariedade, vivenciava isso junto ao povo natalense. Por onde ele andava, pedia que os pais a encaminhassem as crianças para a escola que funcionava na sacristia da Igreja de Nossa Senhora da Apresentação. O analfabetismo era sofrível para ele, o qual queria que pelo menos as crianças se salvassem dessa mazela.

Natal não tinha muito a oferecer. Contavam-se as ruas calçadas. O bicho de pé acometia ricos e pobres, crianças e adultos. Preocupado com isso ele sempre trazia alfinetes em sua maleta para extirpar o bicho de pés nas crianças e adultos pescadores, escravos e quem mais encontrasse. O índice de tuberculose entre crianças e adultos assustava. Infelizmente o povo se acostumava com a morte logo cedo. O índice chegou a um ponto tão elevado que as autoridades criaram um sanatório. Diziam que visitá-lo era buscar a sua sentença de morte.

Podemos considerar que a riqueza de Natal era a pesca. O comércio era acanhado. Só os poucos ricos recorriam a Recife para comprar as novidades da época. Graças à pesca o natalense pobre não passava fome. A vida do padre João Maria era entre o povo. Ele visitava constantemente o Paço da Pátria, que ainda não tinha esse nome. Era uma área de pescadores. Além de evangelizá-los e levar catequese às crianças, ele inicia a um trabalho social, organizando esses trabalhadores numa espécie de cooperativa. Nesse tempo ele já contava com leigos que o apoiavam nessas caminhadas, ajudando-o na catequese. Essas mesmas ações ele levou para a praia da Redinha onde escolheu Nossa Senhora dos Navegantes como padroeira daquela localidade.

Quando ninguém imaginava as propostas que viriam muito tempo depois, com o Concílio Vaticano II, o padre João Maria já praticava esse trabalho em Natal. Antes dele os pobres eram invisíveis. A partir de então o Concilio Vaticano II orienta que a igreja crie a Pastoral Operária, que no futuro vestiu-se de Teologia da Libertação. Nesse tempo destacou-se os seus baluartes nas pessoas do arcebispo D. Evaristo Arns, Leonardo Boff, Frei Beto e outros.

Um desses que conviveram com o padre João Maria foi o médico Januário Cicco, natural de São José de Mipibu, que se formou na Faculdade de Medicina da Bahia. Dr. Januáro Cicco fez as seguintes citação “Lendas que se formaram em torno de sua imensa bondade, ocorreu por aí, além das histórias que nos conta Policarpo Feitosa em ‘Encontros e Caminhos’, tem a suavidade de uma criança, inocência do beijo de São Francisco na ferida de Lázaro, a doçura do lar da criança.”

Para o Cônego Monte, o padre João Maria, na sua bondade cativante, na sua caridade ilimitada, no seu heroísmo sem alardes, tem sido uma dessas figuras que o tempo não esquece”.

O jornalista Aderbal de França, conhecido no meio jornalístico como Danilo, relembra um fato da época do padre João Maria, “lembro-me das procissões noturnas do povo carregando da praia de Areia Preta, as pedras para os alicerces de nossa igreja, Fazia com alegria muito expressiva com verdadeiro devotamento, amenizando a longa caminhada com os cânticos de fé”.

O monsenhor José Paulino natural de São José de Mipibu, e que o sucedeu quando este deixou a Igreja da Vila Imperial de Papari, escreveu que o padre João Maria foi um homem excepcional, valente, lutador e semeador do evangelho. Monsenhor José Paulino também foi um notável orador sacro. Editou do jornal católico “A Pátria”, escrevendo muitos artigos sobre o padre João Maria, num deles cognominou-o de “pai dos órfãos e dos pobres”. Para ele “padre João Maria tinha sido escolhido por Deus para praticar o bem sem olhar a quem”.  

Aristóteles Costa, funcionário público, engajado nos trabalhos da Igreja, jornalista e radialista em seu depoimento procurou mostrar o que era realmente o padre João Maria. “Se o sofrimento perdura solapando a alma do indivíduo e nele encontra a fraqueza para o seu domínio, eis que desfalecidas todas as esperanças, acorda-lhe no “eu” a maldade que tendo pode, daí o desespero e a revolta,é miséria do crime e tudo mais contra indefesas de serem desvirtuados tão bons desígnios”.

Aluízio Alves na edição do jornal “A República” doa dia 16 de outubro de 1941, assim destaca “Padre João Maria, santo de Natal, dos pobres, dos infortunados, sentimos todos a suave emanação do seu espírito, despertada de almas tímidas para ataúde da eternidade”.

Monsenhor Landim em 1935 já registrava na imprensa norte-rio-grandense este trabalho do padre João Maria que na década de 50 e 60 inspirou o Monsenhor Costa, hoje bispo de Caruaru, a criação da JOC, Juventude Operária Católica, que foi fechada por determinação dos comandantes da revolução ditatorial de 1964. Ele não cansava nem dava sinal de desânimo.

Suas homilias tocavam o coração de todos. Seu conhecimento aprofundado da Bíblia somado às associações que ele fazia da palavra de Deus com a vida atraía multidões. Os próprios padres se deleitavam com suas homilias. Era brilhante orador. Eloqüente quando com os seus pares, e humilde na palavra dirigida aos humildes. Chegou a dizer aos seus amigos padres que sua inspiração era os pobres, que eles eram os seus grandes professores, e que dos ricos não aprendeu nada.

Em 1951 Dom Marcolino debateu com os diocesanos num encontro realizado em Natal para estudar a nova igreja, dentro da realidade atual. Naquela oportunidade, o então Arcebispo de Natal enfatizou que todo o trabalho realizado pelo padre João Maria foi totalmente voltado para os seus semelhantes e com isso teve o reconhecimento dos natalenses que perpetuaram a sua memória até hoje. Padre João Maria trabalhou sem se preocupar com popularidade.

Em 1929, durante uma palestra no Aero Clobe de Natal, durante um seminário sobre os problemas sociais do Rio Grande do Norte, o Cônego Monte informou que o padre João Maria desenvolveu um trabalho de conscientização cristã junto às primeiras prostitutas radicadas em Natal na virada do século. Esse evento foi patrocinado por Juvenal Lamartine, governador do estado.

Com este trabalho a igreja de natal, através do trabalho do padre João Maria, marcou um trabalho pioneiro que agora no crepúsculo do século XX foi colocado em debate principalmente na Campanha da Fraternidade quando a figura da prostituta foi incluída na campanha dentro dos excluídos.

O governador Juvenal Lamartine, grande batalhador pela valorização da mulher, admirador de Nísia Floresta, pode patrocinar um seminário importante onde foi debatido os problemas sociais da época em nosso estado e colocou consequentemente o valor da mulher na sociedade, tendo convidado para discutir e debater o tema o Cônego Monte que além de sacerdote tinha um profundo conhecimento sobre o valor da mulher na sociedade apesar de que naquela época o machismo ser grande. Hoje a Igreja ampliou esse trabalho iniciado pelo padre João Maria na Arquidiocese. Há comentários de que dentro da própria arquidiocese há uma ciumada com relação ao processo de canonização do padre João Maria.

 

A residência onde faleceu o padre João Maria pertencia a dona Aline Brandão, que era uma das filhas de Teófilo Brandão, proprietário do sítio Belo Monte, depois conhecido como Alto do Juruá, em Petrópolis, onde achava-se a referida casa. Como alguns fiéis sempre gostavam de rezar nas mediações da casa onde o padre João Maria tinha falecido o padre João Maria, o clero pensou em construir ali uma igreja e dar como padroeira Nossa Senhora de Lourdes, a quem o padre João Maria era devoto.

Coube ao Monsenhor Emerson Negreiros de entrar em contato com a dona Aline, a fim de adquirir a casa para ser demolida para a construção da igreja. Ela não vendeu, preferindo fazer a doação á arquidiocese. Essa senhora residia em Macaíba.

A construção da igreja deu-se sob os cuidados dos padres Monsenhor Eymard L’Eraistre Monteiro, o qual serviu-se de seu programa na Rádio Poti para realizar uma campanha para arrecadação do material necessário. Ao seu lado também esteve o Emerson Negreiros. Todas as tardes eles iam para o local rezar o terço com o povo, como fazia o padre João Maria. Um sino foi comprado, instalado num suporte de madeira para que dois jovens percorressem as ruas próximas convocando os fiéis. Nessa época o Alto Juruá pertencia à paróquia de Santa Terezinha no Tirol, cujo vigário era o padre Manoel Barbosa.

O deputado Fernando Bilu fez a doação da primeira imagem para a igreja, que era Nossa senhora de Lourdes, a qual foi benta na Igreja de santa Terezinha e conduzida em procissão até o Alto Juruá. Seu primeiro capelão foi o padre Eládio L’Eraistre Monteiro, tendo mais tarde criado a paróquia de Nossa Senhora de Lourdes, desmembrando-a da Paróquia de Santa Terezinha. Nessa seu primeiro pároco foi Monsenhor Emerson Negreiros. Logo em seguida construíram a Casa Paroquial também no terreno que pertenceu a dona Aline Brandão. Em seguida o padre Aluízio de Souza assumiu a paróquia, onde permaneceu até a sua transferência para João Pessoa, tendo assumido a paróquia o padre Geraldo de Almeida, o qual construiu o mausoléu na greja de Nossa Senhora de Lourdes, onde foram colocados os ossos do saudoso padre João Maria.

            O regime republicano foi proclamado em Natal às quatro horas da tarde de 17 de novembro de 1889. Estava governando a província o vice-presidente Antonio Basílio Dantas e o Palácio era o casarão da rua Conselheiro Tarquínio, antes e depois Rua do Comércio e presentemente rua Chile. Câmara Cascudo tinha 17 anos nesse ano. Francisco Justino de Oliveira Cascudo era um dos homens mais ricos de Natal nessa época.

            O padre João Maria foi vigário a vida inteira. Dando quanto recebia. Passando fome e frio porque distribuía o almoço e dera roupa interior. Dera a rede. Dera o colchão da casa. Dormindo no soalho do consistório onde vivia.

Contam que raramente demonstrava cólera por alguma situação. Numa procissão, debaixo do pálio, João Maria avistou o ano, decente, superior, chapéu atolado na cabeça, desdenhoso, berrou-lhe “tira o chapéu, cavalo!...”

Missa das almas pela madrugada. Rezadas as “Ave-Marias”, Vigário voltava-se para as beatas insaciáveis de permanência no templo, e dizia, manso:

“Agora, feita a devoção, vão para a casa! Fazer café para os maridos e cuidar dos filhos e da casa! Deus as leve! Vão embora!...”

“Numa procissão de Corpo de deus, debaixo do pálio, João Maria avistou um homem, decente, superior, chapéu atolado na cabeça, desdenhoso. Berrou-lhe: “Tira o chapéu, cavalo!...”

“Missa das Almas pela madrugada. Rezadas as “Aves-Marias”, Vigário voltava-se para as beatas insaciáveis de permanência no templo, e dizia, manso” –“Agora, feita a devoção, vão para casa! Fazer café para os maridos e cuidar dos filhos e da casa! Deus as leve! Vão embora!...” E mandava fechar a igreja.

ORAÇÃO AO PADRE JOÃO MARIA

Ó Virgem Imaculada de Lourdes que vos dignastes aparecer dezoito vezes à inocente Bernardete e pela devoção que tanto vos dedicou o Padre João Maria, aumentai em mim a fé, a graça que tanto necessito. Reze três Ave Maria. Mesmo não sabendo ler, traga consigo confiado que será atendido.

ATA DA EXUMAÇÃO DOS OSSOS DO PADRE JOÃO MARIA CAVALCANTI DE BRITO

No dia sete de agosto de mil novecentos e setenta e nove, na presença do monsenhor Geraldo Almeida, vigário da paróquia de Nossa senhora de Lourdes, do Alto Juruá, onde está construída a Igreja sobre a casa onde morreu o padre João Maria, do Monsenhor Eymard L’Eraistre Monteiro, construtor da referida matriz, do senhor Manuel Cavalcanti de Albuquerque Filho, representante da comunidade católica da cidade; do senhor Francisco Umbelino de Moura, administrador do cemitério do Alecrim e do fotógrafo Jorge Mário, às dez horas em ponto, pelos coveiros Antonio Basílio da Silva e Valbert Ferreira de Andrade.

A urna que continha os restos mortais do saudoso vigário da paróquia de Nossa Senhora da Apresentação estava totalmente destruída, mas alguns ossos ainda se encontravam num estado satisfatório de conservação. Foram recolhidas os maiores e retirados do ossário pelos dois coveiros presentes que colocaram os ossos numa urna a fim de serem trasladados para a igreja de Nossa Senhora de Lourdes, onde deverão ficar, em nicho próprio, expostos à veneração dos fiéis. O crânio estava totalmente esfacelado bem como quase todo o esqueleto , tendo a comissão presente decidido que este fragmentos deveriam permanecer no túmulo do padre João Maria, onde ele poderá continuar a ser venerado por inúmeras pessoas que diariamente vivitam o local do seu último descanso.

Todos os lances da exumação foi feita com a devida aprovação por escrito do Reverendíssimo Senhor Arcebispo Metropolitano de Natal, Dom Nivaldo Monte e com a permissão do Senhor Secretário de Serviços Urbanos, igualmente por escrito, Senhor Antonio José Ferreira de Melo – documento este que ficaram arquivados na Secretaria Paroquial do Alto Juruá.

E, para constar o evento, foi lavrada esta ata que será assinada pela comissão presente. OBS. Esta ata encontra-se no Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes.

BIBLIOGRAFIA

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