ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Melão de São Caetano: para que serve?


MELÃO-DE-SÃO-DE-CAETANO: ÀS VEZES A SOLUÇÃO ESTÁ TÃO PERTO, MAS A FARMÁCIA - OU O VETERINÁRIO - PARECEM MAIS RÁPIDOS…

Há uns dez anos, durante um trabalho de História Oral, uma senhora de 90 anos, moradora da Bica, região paradisíaca de São José de Mipibu/RN, contou-me que sua mãe lavava roupa com as folhas e frutas maduras de Melão São Caetano, obtendo o mesmo resultado de um bom sabão. Elas faziam uma espécie de "rodilha" com algumas folhas misturadas às frutas maduras e esfregam a roupa. Espuma muito. É um cheiro diferente, mas não é ruim. Segundo elas, as roupas ficavam cheirosas quando secas.

Eu não poderia duvidar daquela senhora longeva, que contava aquilo com uma aura tão forte. A informação me impressionou. Fiz teste em casa. Funciona. Obviamente que ninguém retroagirá para resgatar o velho costume (que não seria ruim), mas há outras propriedades medicinais importantes. A espécie é trepadeira com sina de prosperar em terrenos baldios, construções abandonadas, cercas, muros e árvores. Ela se agarra até forrar a copa. Chama atenção a cor amarelo-vivo das flores, e os frutos alaranjados contrastando com as ramagens verdes. As flores são lindas. 

O melão-de-são-caetano é originário da Índia e China. No Japão elas chama de “góia”. A cápsula alaranjada é amarga, assim como as folhas, mas as sementes têm uma polpa vermelha muito doce e saborosa, que não faz mal ao homem. Tanto é que ouvi muitos depoimentos de adultos que dizem terem se deliciado muito com elas durante a infância. 


O fruto é conhecido por ter propriedades que tratam diabetes, hemorróidas, cicatrizam feridas, tanto externas como internas, serve para lavagem de regiões cirurgiadas do corpo, além de outras propriedades medicinais como antibiótico, antioxidante, antiviral e tônico. Nos cachorros, mata doenças como rabugem e outras patologias na pele. Em Nísia Floresta uma nativa contou-me que faz chá e dá para os cachorros beberem como água. Essa planta da fotografia encontrei próximo de casa, em pleno centro de Natal (fotografia de 2019), comprovando que ela se dá bem em qualquer lugar.

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sábado, 26 de agosto de 2023

O Folclore Brasileiro castigado pela alienação...

 


A decadência do Folclore Brasileiro nas mãos da mídia que atende a indústria musical...


Dia desses, na cidade mais evangélica do Rio Grande do Norte, numa caixa de som infernal instalada na quadra de uma escola repleta de crianças e adolescentes, explodiam aquelas músicas “chiclete”, não diria de duplo sentido, mas carregadas de contextos sexuais, letras fúteis e cheias de vulgaridade. A princípio pensei que aquelas crianças e adolescentes estavam sendo eletrocutadas devido aos tremeliques, mas logo percebi que tamanho excesso era efeito das ondas musicais. Elas estavam numa espécie de transe coreográfico. 
 
Perdoem os inventores dessas coreografias - se assim podemos dizer - mas os passos tinham uma conotação erótica, estimulados pelas letras, de maneira que as meninas batiam as mãos em seus órgãos genitais, rebolavam, subiam e baixavam empinando as nádegas, de maneira que simulavam se oferecer para os meninos que riam e não ficavam atrás, exibindo a versão masculina da “coreografia”, bem do jeito que você está pensando. 
 
No dia 23 de agosto estive num evento onde bailarinas, pré-adolescentes, apresentavam vários balés. Era um evento público com vários atrativos. A leveza e elegância como as meninas bailavam sob os acordes clássicos enebriavam a alma de qualquer pessoa, percepção visível nas fisionomias da plateia. De repente, num palco ao lado, como que tivesse rebentado a cerca de um hospício, um homem de uns trinta anos começou a dançar músicas que coram qualquerpessoa civilizada. Ele segurava um microfone, repetindo sucessivamente: 
 
“deixa tua raba descer, deixa a tua raba subir que eu vou sarrando de leve, de leve no sapatin….”. 
 
Era desses chicletes que crianças e adolescentes decoram em segundos. Houve a necessidade de uma pessoa se dirigir até o outro palco e pedir que eles aguardassem o balé concluir a exibição. Todas as mídias e todos os lugares estão contaminados com músicas e letras - se assim podemos dizer - carregadas de vulgaridade e baixeza. Interessante é que este texto, mesmo sem ter caráter moralista, parece moralista, pois são tantos apreciadores da vulgaridade, que parecemos caretas quando reivindicamos arte. 
 
Os apreciadores da vulgaridade oferecida pela indústria musical de massa faz que nos sintamos como se fôssemos nós os equivocados. É uma inversão de valores. Nós, que percebemos a bizarrice, que não queremos as crianças e adolescentes do Brasil sujeitas a esse lixão "musical", recuamos. E aí está o erro, pois qualquer pessoa com discernimento deve usar os mecanismos que puder para dizer que isso está errado. O Brasil passa por uma degradação moral em queda livre. Se não houver uma mudança, será irreversível.
 
Acima falei do balé, que é uma expressão erudita que se imiscui com as coisas clássicas (músicas, figurinos, adereços, cenários, palcos etc). Mas… como estamos no mês de se pensar sobre o Folclore, como vai, no Brasil, o Folclore? Vocês acham que o rapaz da raba teria deixado um Maculelê, um Pastoril, um Bambelô, um Coco de Roda, um Boi-de-Reis ou qualquer folguedo folclórico terminar sua exibição para ele despejar fezes musicais no público presente? Nunca! O assunto é complexo e dá pano para manga. Não quero entrar nessa alçada porque dariam muitas palestras. Prefiro me deter à causa dessa degradação e o que vejo como solução.
 
Para todos os males da humanidade só há uma cura: EDUCAÇÃO e nada mais. Talvez por isso que até hoje ninguém se importou com isso. Assim como os governos (municipal, estadual e federal) devem investir pesado na educação a partir da infância, pois é quando a criança está formando a personalidade, o caráter e entendimento de vida, quando ela está no auge do seu processo de aprendizagem, e por isso tem maior possibilidade de ser envolvida na construção do conhecimento, considerando que é mais fácil e promissor aos educadores as levarem ao pensar, esses mesmos mecanismos de cura devem ser usados para provocar nas crianças o sentimento de amor e respeito ao Folclore Brasileiro.
 
Creio que ESCOLAS e AMBIENTES DE CULTURA jamais devem ser instrumentos da promoção de vulgaridade nos eventos que promove ou apoia (não apenas no Folclore, logicamente!), mas na Cultura como um todo. Assim como é um ato de corrupção desviar dinheiro público, é um ato de corrupção as escolas e os ambientes promotores de cultura serem protagonistas da destruição da cultura popular brasileira apenas para agradar a indústria musical.
 
A música, por ser uma forma de arte que mexe fortemente com as emoções humanas, tem o poder de colar na mente e, por isso, também tem o poder se sobrepujar sobre outras formas musicais se fomentada. Em termos de MPB, o que as mídias mais fomentam atualmente? Esses “forrós” com letras fúteis ou forrós parecidos com os de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Alceu Valença, Jackson do Pandeiro, Sivuca, Elba Ramalho, dentre tantos? O que é mais enaltecido na televisão? Funk ou Boi-de-Reis? Swingueira ou Pastoril? Óbvio que são estilos diferentes, mas é só um exemplo. E não pensem que sou contra o Funk (coincidentemente, hoje morreu um gênio desse estilo: MC Marcinho). O Funk original, como o de MC Marcinho, entoava letras extraordinárias, com inteligência e criticidade. Hoje está carregado de vulgaridade. É uma nota só de apelações sexuais.
 
As instituições governamentais que trabalham com cultura, por serem promotoras diretas de todas as espécies de eventos culturais, tem se comportado mal nos últimos tempos, fazendo o gosto das massas que, equivocadamente, passaram a entender arte e cultura como apelação sexual. Ou seja, as FUNDAÇÕES DE CULTURA e SECRETARIAS DE CULTURA, para não desagradar e sofrer críticas de uma parcela grandiosa da sociedade - totalmente equivocada -, quer estar de bem com as massas e confunde o seu papel, cedendo às indústrias que colocaram na cabeça dos burros que vender lixo e vulgaridade há retorno financeiro imediato. Ora! Um órgão promotor de cultura deve ter uma linha, afinal representa o estado. Não representa a indústria da vulgaridade que está destruindo as nossas crianças e adolescentes.
 
Lá fora somos vistos como um país da vulgaridade, da baixeza, de pessoas sem educação, sem cultura, gente vazia intelectualmente, que não tem o que oferecer de grandioso, de original. Isso é muito grave. Somos um país onde as crianças e jovens estão perdendo a sua identidade cultural (e aqui não quero entrar no mérito da educação, pois se o fizesse, o texto não teria fim). 
 
Tudo bem que a nossa cultura é miscigenada. É a sua característica. E isso é extraordinário, pois nos faz o país com características culturais e fisionômicas únicas em todo o planeta Terra. Cultura é um tema muito vasto e de muitas acepções. No que se refere ao Folclore, há um universo muito amplo, por exemplo, o que veio da Península Ibérica nas caravelas, assim como o que veio dos berberes árabes imiscuídos na cultura portuguesa; o que veio dos indígenas paraguaios, bolivianos, argentinos, uruguaios, que já estavam aqui. O que veio das Europas (mediterrânica, ocidental e central, do leste e nórdica). O que veio de diversos outros países da África. 
 
Somos vastos demais em cultura. Somos multicoloridos, somos uma Babel, somos uma soma de tijolinhos… e isso tudo revela um cosmo de linguagens, um cosmo de gestos, um cosmo de expressões coreográficas, um cosmo de músicas, um cosmo gastronômico, um cosmo de hábitos e costumes. Somos gigantes demais para estarmos nos comportando tão pequenamente, em detrimento dessa vulgaridade que rouba e ofusca a riqueza do Folclore Brasileiro. É sério demais! Estou falando da perda da nossa identidade cultural. E o Nordeste - em especial, berço do encontro explosivo ocorrido durante o “descobrimento do Brasil”, onde tudo começou depois da descoberta dos povos originários (tão sábios e importantes como qualquer outra cultura), que deve ser modelo de preservação do seu Folclore - comporta-se como partícipe dessa degradação. Obviamente que não generalizo os fatos, mas a perda dos valores folclóricos é grande.
 
Compreendo que há tempo de revitalizarmos, ascendermos e acendermos a nossa identidade cultural, o nosso Folclore, a nossa brasilidade, mas precisa existir um movimento contrário forte. É hora de todas as autoridades brasileiras serem provocadas ao pensar. Não me refiro à censura, pois o que não presta morre por si, sem ser necessário criminalizar, mas fomentar intensamente a Cultura em seus moldes civilizados. Folclore é alegria, diversão e felicidade. Vulgaridade e degradação moral é equívoco e reduz o brasileiro a seres inferiores. Se as crianças só conhecerem lixo, passarão a amar o lixo. Não é melhor fornecer-lhes cultura civilizada? E isso vai além além do Folclore, está na MPB, na dança, no teatro… em tudo o que é bom.
 
Talvez alguns pensarão “Ah! Mas no país tal também acontece isso!”. Não é por aí. Se há (alguns) países equivocados, não é solução comparar, mas buscar formas civilizadas de dizer “isso não representa a nossa essência, somos Brasil, donos de uma das culturas mais ricas do mundo!”. Também não pensem que proponho engessar o Folclore. Heráclito não disse, certa vez, que “ninguém toma banho no rio duas vezes?” Se a nossa própria linguagem muda, tudo muda. Mas mudar não é jogar a nossa identidade na lata do lixo e nos comportamos como zumbis. Identidade é alma, é essência.
 
Até segunda-feira estarei enviando a última carta para todas as câmaras municipais dos municípios norte-rio-grandenses. Digo “última” porque faço isso há 15 dias. São 167 municípios. Escrevi uma carta pedindo a sensibilidade dos vereadores e prefeitos de cada cidade potiguar para criarem uma lei propondo às escolas norte-rio-grandenses a prioridade e o fomento às coisas do Folclore Brasileiro. Cada município possui características diferentes, portanto essa lei pode oferecer incentivos de alguma forma, de maneira que as escolas, mais que se sentirem obrigadas, sintam-se abertas e conscientes. Não gosto dessa coisa de troca. “Faça isso que lhe daremos aquilo”. Mas também é um caminho. Toda escola deve ter um produto folclórico para oferecer para a sociedade. É algo a ser construído com pertencimento. Com certeza isso vai limpar os ambientes escolares dos dejetos da da vulgaridade que a indústria musical produz. Cada escola pode sugerir uma forma interessante de incentivo.
 
As escolas, por excelência, assim como os órgãos governamentais promotores de Cultura, devem ser palcos de eventos valorizadores do Folclore Brasileiro, e que isso não se resuma à mera data do dia do Folclore. Cada município deve construir o pertencimento, e que as autoridades escolares sejam naturalmente incentivadoras dessa missão. As autoridades escolares (diretores, coordenadores e professores) não podem ser tolerantes com a degradação da cultura brasileira, permitindo eventos com músicas e coreografias vulgares. Essas doenças culturais devem ser extirpadas.
É intolerável e desrespeitoso assistirmos, em silêncio, o Folclore Brasileiro levando lapada na “raba”… Não existe outro caminho para dirimir esses equívocos que não seja pela EDUCAÇÃO. Através da Educação - só dela - despertaremos cidadãos com novas consciências sobre o seu Folclore. Lembrando que Educação é um cosmo e o Folclore é apenas um planeta. Tudo é um contexto, mas com certeza esse planeta pode transformar o cosmo. Existindo isso, a Cultura Popular Brasileira estará sempre viva, na música, nos folguedos folclóricos, na linguagem, nos gestos, nos hábitos, na alimentação, nas lendas, nos causos... em tudo.
Lembrem, o Folclore Brasileiro está levando lapada na "raba", em primeiro lugar, pelas instituições governamentais e, depois, pelas escolas (lugares que jamais deveriam fazê-lo). Lugares que eram para dar exemplo. Pensem, senhoras autoridades... o povão é mera vítima...

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Ana Catarina: nasce uma artista plástica sob as bençãos de Zila mamed...


Hoje, dia do Folclore, também foi dia de dádivas. Tive a graça de visitar a Biblioteca Rômulo Wanderley para contemplar as honrarias feitas à insigne poetisa Zila Mamed. Hoje ela faria 90 anos se estivesse viva fisicamente. Digo isso porque Zila vive intensamente em todo leitor que se presenteia com os seus poemas. O evento, florescido da inteligência notável da escritora e artista plástica Ana Catarina Fernandes, consistiu num bálsamo para a alma de todo amante das letras e, em especial, quem igualmente é artista plástico, como é o meu caso.

A festividade, batizada como ”Zila Mamed, entre terra e mar oceano”, e que posso anunciá-la como um sarau, foi aberta pela educadora Angélica Vitalino. Ela agradeceu aos professores, escritores, intelectuais e autoridades presentes, passando a palavra para Delmira Santiago, secretária adjunta de educação, e em seguida para Ana Catarina, que declamou lindamente um poema da nossa Zila.O evento foi um prêmio. Ali estavam várias pessoas que tenho profundo respeito e admiração, motivos que me conduziram até ali.

 

Ana Catarina é uma metamorfose. Conheço-a há um bom tempo como educadora, depois descobri nela a escritora e, agora, a artista plástica. Em junho estive num sarau belamente organizado por ela e fui um dos que se encantou com a maestria como ela conduziu - performaticamente - o agradável encontro de amigos. Ela discorreu sobre três escritores com uma elegância e delicadeza incomuns, e nesse conjunto de habilidades fez o tempo voar.


 


Mas devo confessar que, apesar da grandiosidade e significação do sarau, um detalhe se igualou em mérito. Refiro-me aos painéis assinados por Ana Catarina, dispostos naquele panteão sagrado dos livros. Que obras mais lindas! Encantei-me com a criatividade, delicadeza, e singularidade compositiva.

Pareceu-me que Ana Catarina pretendeu traduzir as obras de Zila em imagens. Zila, que, talvez, em outra vida, foi sereia, ou que se imaginava sereia em vida, privilegiou o mar em muitos de seus poemas. Amou tanto o mar que o mar a amou derradeiramente. O painel maior - não sei se tinha título - não perguntei - comportou-se como o arado de Zila, que arou a sua narrativa poética com muitas memórias… e Ana Catarina - no painel maior - arou o mar, pincelando-o de peixes que só ela soube fazer, pois brotou de sua imaginação, fluída do sal do mar.

São peixes de tecidos tingidos de sentimentos poéticos, costurados com as linhas das memórias da mãe e avó da autora, apegada a essas matronas. E com razão! Eu disse a Ana Catarina que só os peixes e, diga-se de passagem, os aquários consistem num impulso artístico singular. Eles também roubam a cena. Aqueles seres das águas, por si, saltam aos olhos e inauguram uma forte característica na autora.


Ana Catarina explicou que não gosta da expressão “eu fiz”, “fui eu”... e isso se dá porque todos os que produzem algo, bebem nas mais diversas fontes e, ao criar, não há como não trazer um pouco do “nós”. Pois bem, o “nós” de Ana Catarina vem carregado de ineditismo. Por mais que ela esteja em sua fase inicial, há uma grande revelação em sua obra. Os elementos mais simples, como papel cartão, transformados em algas, se imiscuem no conjunto da obra, onde também passeiam linha de costura, crochet, giz de cera, colagens, moldes vazados, palavras bordadas com linhas e colagens, arando um cenário que enche os olhos de poesia.

 

 

Zila dispensa palavras, pois está entre os grandes nomes da poesia do Brasil. Ana Catarina foi muito feliz em louvar com a sua inteligência artística a nossa maior poetisa que, diga-se de passagem, também foi uma grande intelectual. O futuro promete, pois nasce uma artista plástica sob as bençãos de Zila mamed...



sábado, 19 de agosto de 2023

Quando Nísia Floresta foi trocada por Duque de Caxias

 

Quem desce a avenida Câmara Cascudo (antiga Junqueira Ayres), na Cidade Alta, dá na avenida Duque de Caxias (antiga Avenida Nísia Floresta), após o Teatro Alberto Maranhão (antigo Teatro Carlos Gomes). Nem todos sabem que a avenida Duque de Caxias se chamava Avenida Nísia Floresta. A poucas décadas expurgaram dessa avenida o nome da filha mais ilustre do Rio Grande do Norte e a rebatizaram com o nome do patrono do exército. E para não dizer que renegaram o nome da insigne intelectual de Papary, resumiram-na a um beco que desconheço o seu topônimo original. Oficialmente chama de "Rua Nísia Floresta", mas é uma travessa (nem nisso prestaram atenção). 


 O beco é emoldurado de casarios velhos, de pintura bufenta, fedido a coco e xixi. É imundo, mas essa falta de civilidade revela muita informação. Esse hábito de as autoridades natalenses fazerem o que dá na telha, salvas raras exceções, é antigo. Ali perto existiu um monumento de granito que abrigava uma efígie de Nísia Floresta feita em bronze, na França. 


Foi inaugurado em 1911 e durou menos de 20 anos. Puseram abaixo o monumento e esconderam a peça que findou levada para um ferro velho (muito tempo depois foi encontrada e levada para o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte - IHGRN), onde se encontra exposta. 


 Particularmente entendo que a depredação feita ao monumento foi encomendada por alguém. Já escrevi sobre isso no meu blogue e não vou entrar em detalhes por aqui. Lá no município de Nísia Floresta, seu túmulo está abandonado e sufocado por prédios. É muito visível a naturalidade como o Rio Grande do Norte despreza os seus monumentos históricos, sua arquitetura histórica e seus vultos históricos, com raras exceções obviamente. E, dentre as vítimas, Nísia Floresta coleciona vários episódios. Esse, da "Rua Nísia Floresta" é um exemplo. 


 Impressiona-me o quanto sufocam Nísia Floresta com dejetos. Nessa rua ela está sufocada por dejetos humanos. Em Nísia Floresta (município), ela está sufocada por uma conterrânea que durante toda a vida a denegriu com as mais baixas e chulas acusações, mas acharam de juntá-las para 'desomenageá-la'. 

Dia desses, conversando com uma intelectual paulista, expus isso e ela concordou. Imagine que, depois de morto, apareça uma pessoa que nasceu 29 anos após a sua morte, que nunca te conheceu e passe toda a vida dela te denegrindo com as mais levianas acusações. Você desejaria estar lado a lado com esse ser maléfico? E, pasmem, numa casa que pertenceu a esse ser maléfico? Lógico que não Ela concordou plenamente e fez várias observações sobre tal barbaridade. 


Pois bem, embora não sou nada espiritual, percebo Nísia sufocada até hoje, como se nunca tivesse descansado em paz. Sufocada por pessoas sem cultura e sem educação, sufocada por políticos que não têm respeito pela história e pela memória de nada, seja em Natal e em Nísia Floresta. Sufocada por xixi e coco. Sufocada por projetos malucos, saídos de cérebros de analfabetos funcionais, enfim, homenagear Duque de Caxias não é desonra. Desonra é 'desomenagear' Nísia Floresta. Deixasse outra avenida ou rua para batizá-la com o nome do heroi da Guerra do Paraguai. Os personagens mudam, mas a novela segue igual. Trocaram os livros e a sabedoria por armas. O que isso lembra?


quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Visitando a minha prima mais idosa: Maria Dolves...

 


Maria Dolves, nome que aprendi a ouvir desde criança na voz da minha mãe Maria. Quantas lembranças da infância e mocidade narradas sobre essa prima. É aquela pessoa que eu sabia sobre ela antes de conhecê-la.

Maria Dolves está com 88 anos e tem o cérebro privilegiado pela lucidez. Ela narra episódios antiquíssimos com riqueza de detalhes. Sabe os parentescos, quem casou com quem, quem era filho, primo, tio avô de fulano, sicrano e beltrano...

José Soares, marido de Maria Dolves e primo do meu pai.


Sua marca registrada é acolher muito bem as visitas. Adora conversar, pôr a mesa e espanar a poeira das velhas histórias. Como deve ser bom envelhecer com o cérebro intacto.

Sua casa é uma espécie de museu. Guarda uma galeria antiga dos nossos antepassados, onde se inclui o nosso lendário tio-tataravô Major Manoel Cornélio Barbosa Cordeiro Peixoto Fontoura, herói durante a Guerra do Paraguai.

Major Manoel Cornélio Barbosa Cordeiro Peixoto Fontoura, herói durante a Guerra do Paraguai


Numa das fotografias ele está num palco, onde é homenageado por Getúlio Vargas em Belém do Pará, em 1940. Morreu com 105 anos de idade. Major Cornélio também fundou a cidade de Santo Antonio do Tauá, no Pará, conforme registram os anais da História, também dispostos em toda a internet.

Major Manoel Cornélio Barbosa Cordeiro Peixoto Fontoura, aos 105 anos de idade, herói durante a Guerra do Paraguai em Belém do Pará, recebendo homenagem do presidente Getúlio Vargas.


Com relação a Guerra do Paraguai, acho esse episódio deplorável, mas se ele foi considerado herói foi por um contexto daquela época. Teve os seus motivos.


As demais fotografias são do marido de Maria Dolves José Soares, ex-combatente,  grande homem. A visita deu-se a exatos 12 meses, bem antes da Pandemia, por isso estamos sem máscaras. OBS. Recebi hoje essa lembrança que publiquei durante a Pandemia. Maria Dolves faleceu aos 90 anos, dois anos após desse encontro.


Poema - Cais do Potengi


Ontem contemplei o velho cais...

Uma embarcação singrava o Potengi em silêncio de oração.  

Veio-me lembranças das chalanas do rio Paraguai. 

Eventualmente me insiro nesse cenário abandonado em aparências... 

Já desfrutei tardes inteiras aprendendo o vocabulário do mar, 

Prosas deliciosas com pescadores.  

Mestres que só vendo para crer.  

Impossível traduzi-los em palavras.  

A relação desses homens com o mar é indescritível.  

Passam o dia vestidos de sal.  

Traje fixo.  

As águas salgadas escorreram raízes em seus poros, fincando suas vidas no mar...

É casamento por amor.  

Ouvi-los palpitava-me Hemingway.  

Senti o cheiro d’O Velho e o Mar.  

Relação abnegada, paixão desmedida pela marina.  

O Marlin foi mera desculpa para encantar-nos de mar.  

Li naquelas letras de água, naqueles homens marinhos, histórias dos trabalhadores do mar:  

São pais, avós, tios, irmãos, cunhados, genros, amigos... homens...  

Homens do mar... 

Como é mágica e gigante a vida dos pescadores do Porto da Ribeira!

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Outubro/2018 

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Antídio de Azevedo - O poder da palavra...

Fonte: https://falandodetrova.com.br/antidiodeazevedo

Há alguns anos leio as obras de Antídio de Azevedo, intelectual norte-rio-grandense pouco lembrado pela atualidade, como tantos. Sua narrativa literária, como é comum, perpassa por uma notória evolução quando apreciamos a sua obra como um todo. Mas, sem dúvida, vejo-o como aquele escritor que muito jovem produziu escritos notáveis. 


Escrevendo este grão de areia sobre ele, julgo importante contar, logo de preâmbulo, a maneira curiosa como conheci a sua obra. Em 2004, nos meus empreendimentos de folclore, ouvindo uma das histórias de vida da senhora Raimunda, integrante da dupla folclórica “Pirão Bem Mole”, ela mencionou a  palavra “zelação”. Fiquei impressionado com a curiosa palavra, anotei e esperei ela terminar o assunto. Depois perguntei o significado, pois, desde 1992 passei a anotar palavras e expressões que ouvia no Rio Grande do Norte, e que me eram desconhecidas, pois nasci e cresci no Mato Grosso do Sul. Ouvindo a explicação dela, escrevi a seguinte interpretação: “luz forte em meio a ambiente escuro, pontos de luz em meio a ambiente escuro, confusão entre luz e escuridão”. Ela me contava sobre uma visão que teve numa noite.


Eis que há dois anos deparo-me com um velho livro escrito em 1954, assinado por Antídio de Azevedo. O título? “Zelações”. Aquele título, num eflúvio, transportou-me instantaneamente para o quintal antigo da senhora Raimunda, e me vi sentado sobre um velho tronco de jaqueira, ao lado dela, sombreados por um alpendre de casa de taipa, 16 anos antes. Foi uma viagem! O desenho, no centro da capa, diz por si. É uma paisagem escura de sertão de cardeiros e lajeiros, três estrelas cadentes riscando o céu, dividindo espaço com estrelas comuns e nuvens.


O poeta Antonio Antídio de Azevedo nasceu em Jardim do Seridó, Rio Grande do Norte, no dia 13 de junho de 1887. Filho de Horácio Olímpio de Oliveira Azevedo e Marcionila Cavalcanti de Azevedo. Trabalhou (e aposentou-se) como tabelião de notas e escrivão judicial por 19 anos, 14 dos quais exercidos em Natal, até aposentar-se, em 1951. Foi também Prefeito em sua terra natal. 


Ele foi casado com sua prima legítima – Alice Cunha de Azevedo, a qual dedicou-lhe poemas de amor desde a adolescência. Os irmãos Horácio Olímpio de Oliveira Azevedo, pai de Antídio, e Felinto Elísio de Oliveira Azevedo, pai de Alice, eram bisnetos do patriarca Antônio de Azevedo Maia Júnior, o fundador de Jardim do Seridó. 


Antídio participou das principais entidades literárias de seu estado.  Faleceu em 05 de novembro de 1975. Teve sonetos seus publicados em conceituadas revistas do Rio de Janeiro, então capital da República, como “ O Malho” e “ Vida Doméstica”. Escreveu poemas, poesias, trovas, sonetos e outros estilos. Antídio, em seu tempo, foi um acontecimento, respeitado no meio intelectual, inclusive escreveu para revistas em Portugal.


Provavelmente, se eu não tivesse em minha memória a experiência com dona Raimunda, talvez não teria me interessado pela obra de Antídio.  Teria cometido esse crime. O referido livro Zelações, que ele diz “são meus versos”, é lirismo puro. Aliás, o autor é sintético e puro ao produzir poesias e no pouco que escreve sobre ele, ao anunciar a obra. 


Câmara Cascudo, dentre as figuras notáveis que o incentivavam a publicar seus escritos, coloca Antídio de Azevedo no panteão dos grandes poetas. Otoniel Menezes, em 1964, se refere a Antídio de Azevedo como consagrado poeta lírico do Rio Grande do Norte. E dá uns bons cascudos no povo do Rio Grande do Norte - em especial nos natalenses - por serem indiferentes ao autor, “interessados apenas pelo que dizem os discos e os programas de auditório das emissoras…”. Ele chama o conteúdo de Zelações de “magistrais sonetos”. Otoniel Menezes se referia à televisão e ao rádio.


Interessante como as histórias se repetem ao longo dos séculos e décadas. Hoje o escritor potiguar sofre a mesma indiferença, salvas as raras exceções leitoras obviamente, estando os potiguares ocupados demais com  Whatsapp, Kway, Rells, Watch, enfim, as redes sociais. 


O rádio e a televisão já não são os mesmos. A TV fechada, em exceção, segue dividindo o espaço com livros, e assim, alienando-se, caminhamos. Na verdade o aparelho celular sintetiza esse picadeiro. 


O povo brasileiro, em especial, se concentra apenas em textos de dez centímetros, ocupadíssimos com os tsunamis de futilidades que deslizam nos dedos. Quase ninguém quer ler. O que querem é ver, assistir, ouvir. E isso atinge todas as faixas etárias.


Antídio de Azevedo foi um escritor extremamente culto, leitor dos mais notáveis escritores brasileiros e estrangeiros. Quando ele dedica uma de suas obras em memória de Auta de Souza, dentre outros insignes nomes potiguares, capta-se o nível de suas leituras. 


Ele escrevia com substancialidade e cada palavra era um encaixe, mesmo que tratasse do cenário ou do objeto mais simples. De fato uma ebólide, uma estrela potiguar… uma zelação… O Rio Grande do Norte é pai e mãe de genialidades do passado e do presente… mas alguma coisa acontece… não sei o que é…


Eu poderia agradecer a tantos leitores e intelectuais natalenses por me indicarem Antídio de Azevedo, mas estou aqui, agradecendo a dona “Raimunda, do Pirão Bem Mole”, mulher que nunca leu nem viu Antídio, não pisou numa escola para estudar, mulher simples, nascida entre leirões de macaxeira, batata doce, inhame, mulher de cercados e roças. Mas gigante por sua sabedoria da vida. Foi exatamente no cenário de roça, às margens de um riacho, que, em meio às “zelações” aparecidas do céu, ela teve uma visão. Hoje, suas zelações me revelam Antídio de Azevedo… Aqueles seus “versos” são, de fato, as zelações de sua alma e do seu estro que ainda vibram…

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Sapatos cavalo de aço...





Quando criança, lembro-me dos calçados “cavalos de aço”, usados por homens adultos, cujos rastros iam das metrópoles aos interiores do Brasil. Eram normais – coisa de moda –, e ninguém estranhava, assim como não estranhavam as calças “boca de sino”, peça estreita nas pernas e super larga na barra. No caso dos sapatos, obviamente que não eram de salto fino, nem tiravam a masculinidade, até porque ninguém achava esquisito. 



Meu irmão mais velho, hoje com 70 anos, tinha uns três pares de “cavalo de aço”. Ele é de baixa estatura, portanto o calçado lhe alçou uns sete centímetros às nuvens. Lembro-me como fosse hoje o seu figurino completo. Atualmente, devido ao lapso de tempo, talvez soe esquisito ver alguém de “cavalo de aço”, mas por um bom tempo vi-os como quem vê um homem de sandálias Havaianas. Simples mortais usavam “cavalos de aço” discretos, parecidos com os tradicionais. Alguns eram mais excêntricos, como se pode ver nas fotografias. 

Ontem li uma matéria sobre o ator global Marcos Frota, que usou um sapato de salto alto no aeroporto internacional do Rio de Janeiro e provocou frisson na imprensa e redes sociais, inclusive com discussões sobre gênero e sexualidade. Vejam que coisa maluca. Um sapato abriu uma conferência. Veja dois recortes das matérias, abaixo:

 “A história de Marcos Frota usando uma "bota de salto masculina" é uma amostra real e recente de que ainda há muito trabalho a ser feito para alcançar uma sociedade livre de estereótipos de gênero.... A bota de salto alto de Marcos Frota e o que ela nos diz sobre gênero”.

“Apesar de ainda não ser de uso comum para o universo masculino, as botas de salto bloco e alto são tendências de moda atuais para homens, promovendo conforto e ajuste prático nos pés, segundo sites de moda”.

Pois bem, o que estranhei nem foi esse olhar de gênero nem sexualidade, até porque esses assuntos, de certo modo, parecem saídos de um molde e tudo deve lhes passar em revista. Creio que não deve ser assim, até porque o dito sapato não traz nem nunca teve o que poderíamos dizer “aparência afeminada”.

A primeira vez que Fídias viu uma vitrola antiga que conservo conosco, com os seus 80 anos de fabricação, comportou-se como quem via um disco voador. “Pai, o que é isso?!!!!!!!! Por que esse CD funciona com uma agulha raspando nesse disco?!!!!! Então expliquei-lhe que aquela peça era neta do gramofone, avó da radiola e bisavó do aparelho de CD (hoje seria tataravó do pen drive, mas ainda não existia). Esse episódio com Fídias se pareceria com o que os jornalistas assinaram em seus artigos de opinião sobre o sapato de Marcos Frota. 

Creio que se eles lessem mais e revisitassem o passado quando escrevessem, não teriam achado novidade alguma no sapato do Marcos Frota. Pelo contrário, teriam encontrado argumentos. Se soubessem a História teriam redigido textos muito mais substanciais e interessantes. Nenhum jornalista foi capaz de associar o sapato “cavalo de aço” com o sapato de Marcos Frota. Nenhuma menção. Nada! E são exatamente os mesmos!

Uma das frases famosas de Millôr Fernandes diz “Em ciência, leia sempre os livros mais novos. Em literatura, os mais velhos”. É mais ou menos isso. Por não terem revisitado o passado, e se priorizado muito mais as coisas de gênero e sexualidade, perderam a oportunidade de despertar curiosidade nos internautas sobre os sapatos “cavalo de aço”. Perderam a oportunidade de oportunizarem um jornalismo preciso. – JORNALISMO É INFORMAR, E PERPASSA PELA HISTÓRIA...




terça-feira, 1 de agosto de 2023

A caixa da Barbie...


Ultimamente, com o lançamento do filme “Barbie” ocorrido no dia 20 de julho, um público composto de homens, mulheres, crianças, adolescentes e velhos de ambos os sexos vestiram rosa. O Brasil vestiu Rosa. Rosa grife. Rosa marca... Os shoppings arrastaram multidões para o lançamento. Roupas rosas, acarajé rosa, doces rosas, bolos rosas, cabelos rosa, milk shake. Houve até beiju rosa. A hashtag sobre o filme alcançou nove bilhões de views, segundo dados da empresa de social data Snack Content. 


Barbie, mais que uma boneca franzina com aparência de gente rica, que começa a agradar as meninas quase na barriga da mãe, tornou-se um fenômeno que excede o seu eu-boneca, e se torna um evento de marketing incomparável. 


Barbie é onipresente. Entra até na Coreia do Norte mesmo que pelo lixo oceânico. Barbie faz tudo. É tudo. Basta surgir algo novo na humanidade para que os seus donos adaptem Barbie ao que for, com o único propósito de gerar milhões. Sempre gerar milhões. 


Há nesse fenômeno tsunâmico atual uma coisa nostálgica também, visando oferecer produtos para as velhas que consumiram Barbie quando crianças.  Não sei se estou desatualizado, mas creio que o prodígio da Inteligência Artificial (I.A.) vai gerar o impensável em termos de Barbie e seus produtos doravante. A IA é tão infinita que escapa das nossas suposições. 


Não importa que Barbie tenha completado 60 anos de idade. Barbie é blindada contra a velhice. Talvez seja o único “ser” na face da Terra que viva a chamada 'melhor idade' com sintomas bons, sem problema cardíaco, sem pressão alta,  sem taxas altas, sem diabetes, sem rugas, sem ficar feia etc. Para a Barbie a melhor idade não se compara com a melhor idade dos simples mortais que deveriam dizer que é, sim, 'pior idade'. Barbie envelhece só na história. Daqui a quinhentos anos terá a mesma cara e a mesma saúde financeira e física.


Assim como muitos meninos e meninas dos anos 80, hoje mães, pais e avós, são capazes de morrer por Xuxa devido às memórias afetivas geradas pela babá eletrônica –, reflexos de um produto que povoou-lhes o imaginário e foi protagonista dos desejos da maioria deles – isso tem tudo a ver com o ‘tsunami Barbie’, no caso, para as meninas. Não há precedentes para o capitalismo quando o assunto é Barbie (Mas Xuxa pelo menos é brasileira)...


Famosos do mundo inteiro também entraram no clima do filme Barbie. Academias de dança, escolas, empresas e as mais diversas instituições públicas e privadas pararam para prestar culto a Barbie: aquela que foi companheira de muitas meninas ricas, e sonho de consumo da maioria das meninas pobres de todo o planeta Terra.


A Barbie é fabricada pela empresa estadunidense Mattel. Foi lançada em 9 de março de 1959, inspirada numa boneca alemã chamada Bild Lilli, produzida de 1955 a 1964. Barbie é a figura principal de uma marca de bonecas e acessórios, incluindo outros membros da família e bonecas colecionáveis. Tudo o que foi acercando essa boneca ao longo das décadas, nasceu na evolução na sociedade, conforme surgia algo novo. 


A partir de 1980, Barbie fez-se produto para videogames e filmes animados por computador lançados em formatos de vídeo doméstico. 


Criada solitária, em 1961 arrumaram um namorado para a Barbie. Surge o Ken. Juntos eles se tornaram os brinquedos femininos, na versão bonecos, mais populares do mundo. Barbie, a patricinha que tem versão humana, namora Ken, a versão masculina do, digamos, patricinho. É outro boneco que faz acontecer e dispensa comentários.


Barbie está nas versões fantasias, brinquedos infantis, materiais escolares, moda, princesas, profissões, portadora de deficiências, enfim está  em todos os segmentos e de todas as formas, inclusive com versões étnicas e outras. 


Barbie passou a exercer um impacto significativo nos valores sociais ao demonstrar ideias de emancipação feminina e, com infindáveisacessórios, um estilo de vida idealizado e sofisticado que pode ser compartilhado com amigos ricos e milionários. Por exemplo, se alguém ainda não tivesse embarcado no submersível da Golden Gate,  que implodiu no mar  ao descer até o Titanic, e alguém tivesse tido a ideia de uma Barbie exploradora do Titanic, o mundo inteiro compraria tais brinquedinhos de Barbie no Submersível que com certeza seriam lançados em bilhões.


Barbie é ideias, é adaptável à evolução dos tempos.

Barbie é o brinquedo mais envolvido em marketing do mundo. Além de revigorar as vendas, o lançamento do filme desencadeou uma tendência da moda conhecida como barbiecore. Todo mundo quer tudo da Barbie, excetuando os pobres, é claro. Isso é outro assunto que dá pano para manga...


As primeiras bonecas Barbie foram fabricadas no Japão, com roupas costuradas à mão por trabalhadoras japonesas. Cerca de 350 mil bonecas Barbie foram vendidas durante o primeiro ano de produção. Ela estreou por cima da carne seca. Ao longo dessas seis décadas passou por algumas mudanças físicas, nos olhos, etnia e foi envolvida em muitas brigas judiciais como infração de patentes, plágio de design e outros balaios de gato típicos de produtos que geram muito dinheiro.


A Barbie foi um dos primeiros brinquedos a ter uma estratégia de marketing amplamente baseada na publicidade televisiva, que foi amplamente copiada por outros brinquedos. Em 2006, estimou-se que mais de um bilhão de bonecas Barbie foram vendidas em todo o mundo em mais de 150 países, com a Mattel afirmando que três bonecas Barbie são vendidas a cada segundo. 


Desde meados da década de 1980, os produtos da marca Barbie incluíam uma grande variedade de produtos de marca, como livros, roupas, cosméticos, videogames e conteúdo audiovisual. Barbie é bem conhecida por sua aparição como atriz virtual em uma série de filmes animados por computador. Desde 2017, eles foram reformulados como filmes de televisão em streaming, marcados como "especiais" animados e lançados por meio de serviços de streaming, principalmente na Netflix .


Barbie andou em todos os lugares no meio televisivo. Em 2015 começou a aparecer como uma vlogger no YouTube chamada Barbie Vlogger onde ela fala sobre sua vida fictícia, moda, amigos e família, e ainda cobra temas como saúde mental e racismo. Ela é interpretada pela atriz australiana Margot Robbie em uma adaptação cinematográfica live-action que está programada para ser lançada em 21 de julho de 2023 pela Warner Bros. 


Ao ser dado voz a Barbie, por meio do marketing, do merchandising estrategicamente pensado pir inúmeros especialistas, está-se dando voz ao consumismo, ao capitalismo e às ideias novas. É a própria Barbie que dita como as coisas devem ser. E colam!


Agora vejam a loucura. Barbie e Ken haviam decidido se separar, depois eles esperaram reacender o relacionamento após Ken passar por uma repaginação. Houve uma campanha para Ken reconquistar a afeição de Barbie e eles se reuniram oficialmente numa data do Dia dos Namorados. Tudo pensado pela empresa dona dos direitos.


Barbie tem três irmãs mais novas que sempre aparecem em filmes, até membros 'aposentados' da família já inventaram. Os amigos mais conhecidos de Barbie incluem um hispânica, um afro-americano, além de amigos que fazem coisas da moda. Tudo para estar sempre na crista da onda e mais parecida com o mundo real. Tudo o que se criar em torno da Barbie vende como banana na feira.


Barbie tem incontáveis bichinhos de estimação, todos viram brinquedos e escorrem para as mãs das meninas. Não lhe faltam os mais caros e luxuosos carros, conversíveis, motos, trailer. Ela também possui um brevê, pilota aviões comerciais e é comissária de bordo. Essas conquistas feminina, muito parecida com os ideais de Nísia Floresta, embora que fora da caixa, são pensadas para testemunhar que as mulheres podem se emancipar e ser o que quiserem. 


Fico pensando naqueles pais e mães milionários, mas preconceituosos, conservadores, e machistas... sabia que existem mulheres mais machistas que homens?... e dá-lhe Damares Alves! Já imaginou o que ela deve estar pensando sobre essa tsunami cor de rosa em bebês, crianças, adolescente e velhos de ambos os sexos. A “pobrezinha”deve pirar!


Barbie não tem volta. Ela está e estará sempre em destaque onde estiverem os holofotes ou algo que ajude a vender. Ela já teve o seu nome dado durante uma semana em avenidas de países famosíssimos. O Musée des Arts Décoratifs, em Paris, dedicou-lhe uma exposição. Até o genial artista Andy Warhol criou uma pintura da Barbie. A pintura foi vendida em leilão na Christie's, em Londres, por 1,1 milhão de dólares. Até o The Economist entrou na onda, enfatizando a importância da Barbie para a imaginação das crianças.


Há versões de Barbie em quase todas as profissões. Sem contar que colecionadores pagam fortunas pelas primeiras Barbies.


Mas nem tudo sempre são flores. Já houve muitas críticas sobre a imposição de seu protótipo, como se fosse o único símbolo de beleza humana, inclusive, pela magreza, que poderia levar às meninas à anorexia, contaminadas pela “síndrome da Barbie”. Então surgiu Barbies latinas, hispânicas e pretas com devidos figurinos e características físicas diferentes.


Creio que em breve aparecerá uma prima indígena lá detrás das moitas, filha de uma bisavó da avó... A marca agora oferece mais de 22 tons de pele, 94 cores de cabelo, 13 cores de olhos e cinco tipos de corpo. 


Atualmente a dona dos direitos da Barbie está associando a boneca a alimentos. A Oreo, por exemplo. Que tal brincar de boneca comendo biscoitos Oreo? Mas essa ideia foi tiro que saiu pela culatra. Na comunidade afro-americana, Oreo é um termo depreciativo que significa que a pessoa é "negra por fora e branca por dentro", como o próprio biscoito de chocolate. A boneca não teve sucesso e a Mattel recolheu o estoque não vendido, tornando-a procurada por colecionadores.


Já apareceram versões etnicamente diferentes da Barbie e o Ken em cadeira de rodas, com paralisia cerebral, síndrome de down etc. Barbie é o impensável. Já houve mortes de adolescentes por tentarem ser iguais a Barbie. E como a onda agora é privilegiar todos os públicos e todas as falas sobre as coisas que alcançam tamanha visibilidade mundial, suponho que em breve teremos a Barbie transgênero.


Em 2006, pesquisadoras norte-americanas realizaram um experimento com bonecas, para testar como elas podem afetar a autoimagem das meninas. Elas deram livros ilustrados para meninas de 5 a 8 anos, um com fotos da Barbie e outro com fotos de uma boneca com características físicas mais comuns à maioria das pessoas. Depois de apreciar os livros, elas perguntaram para as meninas sobre o seu tamanho corporal ideal. A pesquisa descobriu que as meninas que foram expostas às imagens da Barbie tinham uma auto-estima significativamente mais baixa do que as meninas que tinham fotos da boneca desconhecida.


Pois bem, isso e muito mais se chama Barbie. E eu me horrorizo quando vejo educadores, pessoas esclarecidas, gente com excelentes formações profissionais nessa culto a Barbie. Creio, sem paranoias, mas como muita racionalidade, que isso é um terrível equívoco.


Nós, brasileiros, sem síndrome de Policarpo Quaresma, sem ufanismo, sem chatice, com muita consciência, serenidade, responsabilidade - pelo respeito à nossa identidade, pela importância de enaltecer a nossa brasilidade -, devemos usar essa mesma força e garra empregada no “tsunami do filme da Barbie” para valorizar a cultura brasileira. 


Criança aprendem a gostar e respeitar as coisas que lhes são ensinadas na infância. Elas precisam valorizar as coisas do Brasil. É a nossa brasilidade. Nossa identidade não é norte-americana. Vemos pessoas desinformadas e despreparadas - pasmem -  formando pessoas. Há uma idiotia no ar, transmissível por osmose. 


As crianças precisam ser levadas a se identificar com as tradições culturais brasileiras, seja na música popular e erudita, nas artes plásticas, nas danças populares e folclóricas, nos folguedos etc. Elas devem ser levadas a valorizar nossas lendas, nossos contos populares, nossa literatura, nossos intelectuais, nossos escritores. Onde está Emília, Narizinho, Pedrinho, a Mula Sem Cabeça, o Boi Tatá, o Saci Pererê, o Curupira, a Iara, a Cuca, o Boto e tantas figuras da imaginação? Por que não é dado a esses produtos brasileiros a ênfase dada a Barbie? Tudo é questão de ideia, de pensar, planejar.


Precisamos ser um povo fora da caixa da Barbie, fora da caixa do Halloween e de outras caixas estadunidenses cheias de futilidades e alienações. Somos a República Federativa do Brasil. Não somos os estados Unidos da América. L.C.F.