ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Vidro mole


Havia nobreza naquela árvore:
Escorria vidro
Vidro mole igual a mel de abelha
Depois vitrificava
(Isso quer dizer endurecia)
Não igual ao que Trimálquio conta em Satiricon
Mas ao ponto pedra.
Uns homens sabidos chegados de Ponta Porã
Inventaram dizer
Resina, âmbar, pez...
Era muito cientificoso o palavreado
Eu preferia acreditar na vizinha alemã:
Aquilo é choro de árvore
Como sempre fui descobridor
Descobri que mergulhando o vidro na água
Magicava verniz
Magicava cola
Tudo eu colava com vidro mole
Tudo eu envernizava com vidro mole
Tornei-me amolecedor de vidros na temporada das pipas
Como disse Lavoisier
Na natureza, tudo que é mole, endurece, e depois amolece...
E se quiser reendurece.


Os ofaiés-xavantes


A praça Jan inchava de bugres aos finais de semana
Tinha gente velha e nova
Até criança
Atavessavam o dia versejando língua estranha
Dialeto magnífico
Tenho que aquelas palavras são ensinadas pela mata
Pois tinham sons de bichos
De ventos,
De árvores
De rios
Certa vez eu comia um doce de abóbora
(Daqueles em formato de coração)
Um bugrezinho aproximou-se e disse:
Comendo quero doça dá
Estranhei a macarronice verbal e dei-lhe a iguaria.
Ele falou mais com os olhos e gestos que com palavras
Eu tinha curiosidades igual aos Villas Boas
Curiosidade de saber indiologias
Mas os mais velhos eram arredios
Não gostavam de conversar com gente branca
Gente não índia
Eu sempre dava um jeito de aproximar-me para ouvir o incompreensível
Era uma fala verde
Silvestre
Parecia palavra de bicho
Conversa de índio traz a mata para perto
E os céus nublam de pássaros
Às vezes a pronúncia de uma vogal parece saída da língua pregada no céu da boca
Outrora parece vinda dos canglores da garganta
Uma rouquidão estranha
Às vezes era gutural grave, rápido
A praça passava o dia desfrutando índio
Já quando a tarde dava sinais de desaparecer
Eles também desapareciam
Na estrada do Sapé
Comiam mandioca com caititu e abóbora com coelho do mato. 

Verdandante


Tinta verde verdadeira é prodígio de lagartas
Depois de anos de suspeitas
Descobri todo o processo:
Vem precisamente das lagartas verdes
Não sei se elas desaparecem as árvores ou as árvores desaparecem elas
Mas é fácil encontrá-las
Basta ver grãos de tinta no chão
Há uma máquina dentro delas
O fabricamento se dá assim:
Eis que primeiro elas escolhem bem as folhas
(Tem que ser novinhas)
Depois passeiam a refeição
Carece percorrimento de árvores
Rastejamento
Subimento e descimendo do meio do corpo
Assim ocorre o transformamento de folha em tintura
Quando estufam de cheias, descomem tudo
A tinta sai por um buraquinho no final da lagarta
São grãozinhos secos concentrados
( Miniatura de grão de cabrito)
Basta misturar na água
Um pincel aquarelecerá paisagem no papel.
Beleza mesmo é depois de passar verniz de vidro mole


Sossego


Ela caminhava lenta
Era lesmática e desprovida de fala
Negra azeviche
Gorda roliça
Cabelo avolumados
Dedos das mãos e pés grossos como linguiças
Tais quais os negros de Portinari
Lábios acentuados a tomar boa parte do queixo
Nariz amplo
Bunda ao estilo das tribos Khoisa
Pernas batatudas das baianas subideiras de ladeira da Bahia
Parecia não ter reflexos.
Olhava as coisas como não as enxergasse
Havia desprezo em seu olhar
(Serenidade estranha).
Sua lentidão incomodava;
Morava num pequeno casebre de madeira.
Alguns meninos faziam-lhe troça
Atiçados por sua indiferença
Talvez quisessem ouvir a voz que ela transformou em silêncio
Ou queriam ouvir xingamentos.
Ela nunca revidou,
Não fazia mal a uma formiga
Por isso irritasse a tantos;
Era dessas que nascem com os parafusos mentais muito apertados
Não fosse pelo exotismo
Seria invisível
Embora vista apenas para pilhérias
Sossego morreu igualzinho que morrem as lesmas.


Engenho Pavilhão - Nísia Floresta


Apesar de anos de pesquisa não encontrei nada de substancial sobre o Engenho Pavilhão. Conheci-o em 1992, vislumbrando explorá-lo no documentário sobre Nísia Floresta Brasileira Augusta (ela nasceria ali). À ocasião falei apenas com os funcionários, os quais eram de outra cidade e nada sabiam.
Câmara Cascudo conta-nos que até os fins do século XIX o Vale do Capió era berço de casarões esplêndidos, onde ocorriam bailes e festas imponentes, aos sons de modinhas de piano ao vivo e a famosa banda do mestre Bethlein. Ele não cita o Descanso, mas o Pavilhão. Isso pode causar estranhamento no leitor, afinal a Casa Grande do Descanso era única. Sua arquitetura destoava de tudo o que existia nas imediações. Não há como compará-lo à casa que hoje se vê no Pavilhão, mas vamos as explicações. Na realidade ele se referiu a diversos casarões que antes se espraiavam na área do Capió, inclusive precisamos tentar dirimir a geografia atual para entender. Um desses engenhos era o da família Oliveira, que ficava exatamente onde hoje se situa a atual Prefeitura Municipal. Havia outro nos fundos do restaurante Gâmberi, pertencente a família Sousa, onde nasceu o ex-governador Antonio de Sousa (nesse mesmo blog você pode encontrar interessantes informações sobre ele).
 A casa atual do Engenho Pavilhão (como se vê na fotografia) não é a casa referida por Cascudo, pois foi demolida. Contou-me o Sr. Pedro de Araújo (in memorian), neto do Coronel José de Araújo, que era um casarão de extrema beleza. "Eu ia com papai no Pavilhão e via o casarão, já estava ficando feio, mas só pela pintura. Era muito bonito, quase do tamanho do Descanso", depois eles demoliram". A casa atual traz no seu frontão o ano de 1937, certamente quando foi construída.
O Engenho Pavilhão pertencia a Trajano Leocádio de Medeiros Murta, inclusive a leitura que fiz se refere não exatamente ao Pavilhão, mas a esse personagem de certo destaque na história potiguar, inclusive foi vereador em São José de Mipibu.
Um detalhe curioso diz respeito a morte de um de seus filhos quando criança. O enterro chamou a atenção dos paparienses, pois ele mandou fazer uma charola (espécie de andor) e a criança foi colocada em pé. Ele mandou enfeitá-la como se fosse um anjo e o vestiu com um chambre de renda. Desse modo o enterro percorreu as principais ruas da cidade, deixando todos perplexos. 
Engenho Pavilhão em 2003, última vez que o visitei. Na fotografia aparecem Marcos Moura Freire (meu primo) e Fídias Freire (meu filho)
Conversando com o Sr. Isaac Newton de Carvalho, em 2008, ele disse-me que o Engenho Pavilhão, no que ser refere ao período que se encontra nas mãos de sua família, não há notícias de documentos ou fotografias que tragam alguma informação significativa. Tudo o que se sabe vem de boca, dito pelos mais velhos. Sabe "de ouvir dizer".
Contou-me que "Naquela época as pessoas não se importavam em escrever, em fazer fotografias... era algo difícil. Tanto eu quanto os meus irmãos não sabemos nada sobre o Pavilhão".
O sr. Newton, como é mais conhecido, nasceu aos 9 de outubro de 1940. É filho de Lourival de Carvalho (nascido em 1913) e neto de Joaquim Januário de Carvalho (provavelmente falecido em 1939, segundo o sr. Newton). "Quando eu nasci, vovô já havia morrido, morreu bem velho, inclusive foi desses que foram tentar a vida no Amazonas. Foi lá que ele conheceu minha avó Maria Mércia de Carvalho e a trouxe para cá. Mamãe contava que ele mandava comprar ferramentas e coisas de fazenda na loja 'Galvão Mesquita', na Ribeira", explicou-me.
O sr. Lourival foi homenageado pelo ex-prefeito George Ney Ferreira em sua primeira gestão. Houve a instalação de um busto na Praça dos Velhos, ao lado da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó. Curiosamente a peça foi retirada na gestão da ex-prefeita Camila Ferreira, sobrinha de George Ney.
Segundo o Sr. Newton, o busto foi deixado numa secretaria, como sucata, mas alguns populares o avisaram e ele o retirou e o guardou no Pavilhão.
Desconheço os méritos do Sr. Lourival no que se refere a ser contemplado com um busto na praça, mas, desde que houve a homenagem, a atitude de "desomenageá-lo" soa como desrespeito à sua memória. Creio que os louros venham do fato de ele ter sido um antigo morador e colaborado com o desenvolvimento do município enquanto gerador de emprego em sua propriedade, fato significativo num lugar sem perspectiva alguma até pouco tempo. Isso é suposição minha, pois nunca procurei saber a razão da homenagem. Fica aqui essa acanhada contribuição sobre o Engenho Pavilhão, aguardando outras informações.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Matame

Quando estive o menino que não sou agora apenas por fora
Tinha propensão às matas.
O magnetismo selvagem sugavame de modo matame
Embrenhando-me em seus desígnios
Tinha de guia um gato que nunca descompareceu de mim
Portando meu senso de direção felino não tinha apegos geográficos.
A experiência do silêncio quebrado unicamente por voz animal ou minhas pisadas alçava-me a estado de bicho.
Os eflúvios silvestres, o murmúrio dos rios...
Tudo tinha estado de mim
É indescritível o encantamento.
Havia um mimetismo
Como se as árvores e os bichos fossem minha pele.
Nunca fui desrecebido.
Havia inexistência de medo
Havia supremacia de coragem despercebida.
Se real a tese espírita, fui bugre.
Fascinava-me as frutas e flores estranhas
Os sabores e perfumes inesquecíveis e inexplicáveis.
As melhores floriculturas desconheciam os buquês exóticos, saídos de arbustos, árvores e trepadeiras.
A mata tem coisas de realezas
Os bandos de seriemas atravessando o riacho Sapê, os coelhos saltitantes, talvez tentando assustar-me...
E a onça que saltou da ingazeira e vestiu-se com as águas do rio Pardo?
O coração desse bugre-menino saltou pela boca
Não de medo
Mas de encanto excelso.
Um dia encontrei serpentes recém-nascidas num toco podre de jequitibá.
Lembravam minhocas entrelaçadas.
Pareciam adultas pela destreza que serpenteavam o corpo
Coisa de instintos.
Muito lindo os botes sorrateiros.
As linguinhas vermelhinhas aprendendo a cheirar e sentir o perigo.
Corri riscos quando afaguei os filhotes de gato do mato sibilando iguais às onças.
Creio ser um deles que entrou dentro de mim.
Os guinchos dos macacos ensurdeciam...
Nesses empreendimentos silvestres confundia meu habitat
Desaparecia de mim as urbanidades...
Logo surgia o estirão arenoso depois das cercas de aroeira
Sabia a estrada de Bataguassu a Uerê.
Era seguir a linha pintada com as cores do por do céu
Reaparecia distante a urbanidade ao compasso dos passos ligeiros
Escutando o chamado maternal que não precisava de voz.



segunda-feira, 19 de junho de 2017

Instigação à poesia

O tiê-sangue trila canção magnífica na grimpa do pequizeiro
A lesma babeja a calçada
O beija-flor inquieta as flores
A formiga teimosa carrega o louva-deus
O mandarová sofrega no tronco da perobeira
A joaninha mata a sede na bromélia
Abelhinhas miúdas perfumam o jardim
Um panapaná de borboletas azulece o cenário
O cachorro d'água cavouca a terra
Meu Deus!
Ficam essas coisinhas miúdas atiçando poesia cá nessa cabeça de vento

Ocaso

O dia envelhece
A chalana preguiçosa risca o Paraguai,
Desregulando os seus contornos;
Lontras e ariranhas vestem seus furos na barranca;
As águas douradas rolam em curso largo,
Pintadas pelo por do céu.
Logo, os reflexos de púrpura dissipam a tarde;
Os jaburús foram os últimos a encher as árvores,
Já não se vê o sulco da embarcação;
A noite tem espessura de piche
E a água foi aplainada pelo silêncio.
É hora dos jacarés acenderem seus olhos na lâmina do rio;
Os vagalumes infestam de lâmpadas o esmo negro.
Há um perfumamento de lírio borrifando a noite,
Amanhã tudo amanhece Pantanal.

Música da mata


A orquestra da mata tem arranjos de bichos, árvores, rios e ventos
Ventania em casca seca de caramujo faz assobiamento de saci
Murmúrio da água é graveto seco de ingazeira riscando o rio
Matraca escandalosa é porco do mato batendo a baqueta dos dentes no queixo
Tum tum tum estrondoso qual zabumba é composição de rebojo, pedras e correnteza em borbotões
Percussão misteriosa é cápsula pesada de jatobá despencando em folhas secas no chão
Ecos finos e alternados é trilo de anta reverberando
Exercícios de vozes é algazarra de maritacas, araras e periquitos adejando
Harmonia de música da mata está no acontecer
O tiê-sangue bem que devesse reger essa orquestra
É pássaro fascinante e tem semelhança de cantor
Há infinitos sons na mata
É que agora estou desses

Queixadas

O jatobazeiro seco tombou na mata do rio Pardo
Gravetos estalaram
Galhos rangeram
Cipós despencaram
Houve amedrontamento da fauna
Os pássaros adejaram, soltando trilos desesperados
A manada de queixada eriçou as cerdas e estourou dali
Grunhe e matraqueia, amedrontada, no túnel de arbusto
Anda, trota e salta tocos marginando o pântano
Bate o queixo e os dentes, enlouquecida
O silêncio volta
A mata tem desses sustos

Poeta da imagem

Pintor é poeta da imagem
E sua poesia faz ninho no pincel
Pintar bonito carece aparecimento de infância na pintura
Quanto mais criança está dentro do pintor
Mais poesia esparrama na tela
Se as garças estão verdes
É porque algum menino apapagaiou-a
Se os papagaios estão brancos
É que deram de andar com as garças
O tuiuiú não mergulhou a cabeça no rio Paraguai
Portanto ainda não está preta
Seu pescoço não tem anel vermelho
Pois derramaram toda a tinta no sol
As capivaras estão lilazes
De tanto mergulhar sob os lírios
O rio virou espelho
É que o pintor prateou o céu
Quem disser que houve erramento artístico
É que nasceu descolorido de poesia

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Brincamentos de frio


Apetecia-me Bataguassu gelada
Dormir acasulado de alcochoados é lembrança que até hoje me acalora.
Amanhecíamos lesmas até nossas mães nos darem partida.
Daí enfrentar as rajadas de frio.
Na mesa do café, no quintal, onde resvalacem os raios de sol, havia disputamentos.
Mas nem tudo era monótono.
Havia brincamentos de frio.
Eram esses:
1) balançamentos de varal de arame para ver saltar longe os filetes de gelo,


2) Amassamentos de roupas madrugadas no varal para auferir trics-trics.


3) enfiamentos de dedo em película de gelo de balde amanhecido com roupa de molho.


4) desenhamentos com lápis-dedo sobre gelo assentado em carros.


5) colocamentos de língua para grudamento em lataria de carros (sem caneca de água morna fica grudado para sempre),


6) colheitamento de lagrimazinhas de sereno congeladas na ponta das flores,


7) quebramentos de espinhos de gelo formados na grama,


8) soltamento ar quente da boca para fazer pequenos nevoeiros,


9) raspamento da lâmina de gelo com as unhas nos carros para sentir a massa gelada entre as unhas.


Vejam só,
Eram nove brincamentos;
Brincamentos de frio.

terça-feira, 13 de junho de 2017

Potengiparanapardo


Desse topo de rocha e ferro contemplo o rio Potengi,
Meu pensamento se inunda com as águas dos rios Pardo e Paraná,
Rios d'eu-menino.


É belo o rio potiguar, mas descomparado aos que molharam a minha infância...
Não bastasse essas recordações serpenteando, vejo, ribeirinho, o trem, lento, sinuoso...
Lembrando as sucuris do Pantanal.


No outro lado se espraia o mangue,
A paisagem verde aquosa me transporta aos varjões de Bataguassu.
Nítida imagem do Pantanal sul-matogrossense.


Não bastasse o devaneio, descortina a ponte da Redinha onde o Potengi miscigena-se em atlântico...
Mais uma vez as recordações trilam forte.


Emerge o rio Pardo em confluência com o rio Paraná, sob a Ponte Maurício Joppert.




Não bastasse, singra a barquinha vagarosa no rio dos potiguares, cópia fiel das chalanas no rio Paraguai.


Tudo quer ser igual, mas não sinto o cheiro do pequi e o gosto da goivira.
Faltam coisas invisíveis...
Os cachorros d'água e seu olhar de ternura.


O velho Paraguai com seu bigode de arame desenhando histórias de bichos.
"Seu Benedito Preto" e o inseparável cachimbo, bafejante de causos.


O círculo de tererê gelado na guampa de boi.
Verdade, as belezas germinadas na infância são especiais.



segunda-feira, 12 de junho de 2017

Derretimentos


O espanhol derretia relógios com pincel.
Vivia de derreter coisentortar o que não podia ser.
Surrealizava-se com amolecimentos de materiais.
Aparecia fantasia.
É possível desmanchar palavras com canetas-tinteiro,
Tintilam diferentes,
Bonito que só.
Às vezes, lápis fá-las grafitantes.
Gravitam fantasiosas.
É recomendado espremer palavras.
Desses dias apertaram o arco-íris,
Espirrou poesia na prancheta do artista.
A tinta escorria, 
Entortando imagens.
Apareceu desenhamentos de crianças
E se pintou-se o sete.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

A colheita da goivira



  • Todos os anos
  • Entre novembro a janeiro
  • Participávamos da colheita da goivira.
  • Na verdade as goiviras nos colhiam
  • Adocicando as matas pantaneiras
  • Atraindo gente como abelha;
  • Era tradição o empreendimento.
  • Afastados da área urbana
  • Os guavirais (no dizer dos mais velhos) emolduravam a estrada para Xavantina,
  • Terra dos afaiés-xavantes
  • Espraiando-se por quilômetros afins.
  • Abundantes, faziam lama no chão.

Imagens meramente demonstrativas

  • Íamos no velho caminhão "Stúdio Back" do meu pai.
  • Minha mãe pegava a manivela na boleia e metia no focinho do veículo,
  • Rodopiava até o motor roncar.
  • Após algumas aceleradas pinotávamos na carroceria com baldes, latas, bacias e vizinhos.
  • Para trás ficavam tufos de poeira vermelha tingindo a mata.
  • Ao chegarmos ao paraíso de crianças e passarinhos, nos empanturrávamos,
  • Depois, abastecíamos os vasilhames até a boca.
  • "Tomem cuidado com cobra!"
  • Era a voz paterna.
  • Abastecidos, fazíamos a viagem de volta.
  • Uma vez precisou-se parar para que alguém despejasse esterco na mata.
  • Tenho muitas lembranças desses episódios silvestres.
  • Catar goiviras era uma delícia.
  • Objeto de desejo dos nativos.


Mecanoficinografotécnica



  • Há palavras de consertar e desconsertar.
  • Com minhas ferramentas de ossos,
  • Reformo, restauro, desmonto, derreto, crio e recrio;
  • É profissão mais brincadeira que existe.
  • Na mecanoficinografotécnica
  • Afrouxo e aperto parafusos de palavras.
  • Depende do meu estado de desconserto
  • (Coisa de gentes desparafusada).
  • Encanta-me o ranger metálico
  • Orquestrando felicidade disfarçada de trabalho.
  • Já aprimorei centenas de palavras;
  • "Criançamor" é uma delas!
  • Bem soldada, não poderão mudá-la.
  • A palavra é toda de besouro
  • (Significa ter valor incalculável).
  • Desses dias, desmontei as palavras
  • Ódio, maldade e preconceito
  • E das letras sobrantes
  • Montei adjetivos, sinônimos e verbos
  • Que despertam bondade.
  • Muitas vezes em meio às letras-sucatas,
  • Há enganchamentos sem conta
  • Umas grudam-se às outras.
  • Desses dias, encontrei um monturo desses.
  • Puxei a letra A veio "amoração".
  • Estava tudo grudado.
  • Creio ser mistura de "amor" com "oração",
  • Ou "amor" com "ação".
  • Não pensei nem, soldei.
  • Ontem, inventei a palavra jatobacidade.
  • É como me sinto quando aprecio o fruto do jatobazeiro.
  • Embora hoje estou pequiseiro.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Tesouro



  • (Para Fídias)

  • Todos nós já tivemos o nosso lado Tom Sawyer.
  • Durante a minha infância
  • Possuía uma lata grande de leite Ninho.
  • Dentro ficavam guardados:
  • Uma coleção de cards da Seleção Brasileira de Futebol,
  • A cara de um boneco quebrado,
  • Um pedaço de vidro de fundo de garrafa azul royal
  • (servia para olhar o sol)
  • Uma coleção de calendários,
  • Tampinhas de garrafas com figuras de Walt Disney
  • (uma promoção da Coca Cola).
  • Tinha uma moeda antiga,
  • Tudo muito bem guardado.
  • Só eu sabia o local do esconderijo.
  • Era o meu tesouro.

Aviões


Quando eu era ainda mais criança
Pensava que os aviões pousavam nas flores,
Que elas se abriam para eles aterrissarem.
Quando via horizontes desaparecendo pássaros de lata,
Dizia para meus descompassos:
- Lá está a flor se abrindo para os aviões se aquietarem do cansaço.
De contar isso para uma professora
Recebi o título de sem juízo.
Foi o título mais condecoração que recebi.
Ela jogou em mim palavras que pensavam feitas de magoação.
Estava desparafusada de ter o marido na penitenciária.

Receita para poesia de pássaros


(É fácil poesia de pássaros)
Carece de rio murmurante em túnel de árvores
Pés de goiviras bem madurinhas
Cheirando a tarde silvestre
Pedras ásperas roladas de rio para afiamento de bicos
Poesia aparece aos poucos
Ao modo de pássaros adejando cá e lá
Bicando frutos

Liquidez


Vivo a desmanchar as palavras e pô-las em estado de poesia
O vento ajuda a compô-las quando vem forte do meio das árvores
Algumas vezes as matas se desmancham para se igualar às minhocas
A poesia se completa no ocaso quando as cigarras engolem o canto para ouvir a sinfonia das rãs 
Os ziguezigues riscam o  rio e abrem a cortina
O Pantanal é comido pela enorme boca da noite
O índio guató corre sobre os caroços da água
Caroços acesos, iluminando tudo ao modo de tapetes de jacarés
É o espetáculo começando
Espetáculo de letras e canções anfíbias.

Gaudi o santo transgressor

  • Igual a alguns poetas que transgridem as normas da gramática e constroem escritos excepcionais, Gaudi foi um desses desertores e produziu uma arquitetura ousada e surpreendente.

  • Suas obras são esculturas instigantes que parecem saídas de um naco insignificante de argila e transformado em edificações inacreditáveis. Não há como vê-las sem contemplação.

  • As cores, formas e os materiais... tudo nos convida a perquirir cada detalhe.

  • Como não bastasse a excepcionalidade do Palácio Guell sua primeira obra – ele produziu móveis singulares. Há um tocador que parece bicho estranho. Cadeiras lembram animais em movimento (creio ser tênue a linha que separa pintura, arquitetura, literatura, engenharia, anatomia - se é que ela existe).

  • Suas inconfundíveis chaminés transmitem alegria e infância. As torres percorrem os telhados, oferecendo um aspecto similar ao de um pequeno bosque de cipestres.

  • Esse palácio nos reporta a uma escultura surrealista. Não há cantos, há curvas. Há côncavos e convexos.

  • A leveza do formato orgânico dos metais desafia o entendimento.

  • Ele conseguiu levar luz natural a ambientes nunca antes conseguido pelos mais respeitáveis engenheiros.

  • Criou nesse monumento espaços diáfanos, que enganam os sentidos. Até um firmamento se faz presente.

  • A singularidade de tudo o que se vê não ofusca a presença da natureza, denotando o quanto ele a valorizava.

  • Não é de se estranhar que durante a sua construção a imprensa divulgou-a de forma incomum.

  • Os ziguezagues do Colégio Teresiano. Alguém viu algo igual? Seus belíssimos arcos parabólicos. Foi ali que ao ser lembrado para gastar menos, respondeu ao padre que o encomendou: "Com todo respeito, padre Enric, mas o senhor entende de missas, eu entendo de fazer prédios".

  • Casa Calvet, ou a casa da fantasia, a mais convencional de suas obras. Suas famosas cruzes, as belas esculturas no telhado. Os móveis, iguais aos seus edifícios, são a expressão de um equilibrado jogo harmônico entre sobriedade e barroquismo.

  • Cripta da Colônia Guell é pura genialidade e uma de suas obras mestras. Seus arcos parabólicos.

  • A aparência externa, dinossáurica, às vezes lembrando um animal estranho, contradiz o seu interior. Nota-se quão cuidadoso foi esse gênio com a pressão sobre os pilares em conformidade com as escalas.

  • Essa obra é um hino, uma poesia disfarçada de arquitetura. Cada coluna sustenta a composição de uma árvore. Sua modernidade incomoda.

  • Aliás, suas obras são assim: depende de onde se olha se vê o dórico e ao mesmo tempo o gótico, o neogótico, o árabe, o persa, o ultramoderno... logo se volta ao medieval como se rendesse homenagem ao passado glorioso da Catalunha. Há cuidado em prestar culto ao nacionalismo e a religiosidade.

  • Casa Bellesguard é um castelo medieval em miniatura. Sua magnífica porta e a influência do neogótico em suas janelas causam admiração.

  • A fachada recorda a Idade Media.

  • Nessa obra de arte, Gaudi teve o cuidado de respeitar as ruínas da casa de campo do último rei de Aragón. A brancura interior, a luz vazada de coloridos vitrais, em harmonia com azulejos coloridos contrastam com as pedras escuras que revestem as paredes externas.

  • O incrível Parque Guell de pura arquitetura orgânica é simplesmente um encanto escultural.

  • O banco sinuoso e contínuo de mosaico com diferentes fragmentos cerâmicos lembra as gigantescas sucuris pantaneiras. Teria ele pensado em grupos de reuniões a céu aberto? São fascinantes os motivos ornamentais que serpenteiam ao longo de seu corpo.

  • Essa obra revela um artista com uma extraordinária intuição para a forma e a cor: verdadeiro escultor.

  • Esse inigualável conjunto arquitetônico é um estranho corpo de pedra, cimento, ferro, azulejos e ladrilhos espraiados engenhosamente por um terreno acidentado, surpreendendo a cada centímetro.

  • As casas parecem saídas dos contos de fadas. Suas pedras sempre em tom ocre com telhados revestidos de azulejos multicoloridos transmitem felicidade aos céus.

  • O dragão com escamas a base de azulejos multicolores faz-se de guarda, mas encanta mais que assusta. Sua figura representa Pithon, guardiã das águas subterrâneas.

  • Num dado momento um pórtico com colunas de estilo dórico se levanta como um imponente templo grego: uma reverência a Guell, admirador da arte antiga e seu mecenas.

  • As colunas lembram palmeiras. O belo anfiteatro. Suas cavernas com ventilação perfeita. Na aridez do terreno houve o cuidado de canalizar as águas da chuva para reaproveitá-las, combinando arte com funcionalidade.

  • Casa Batló, construída no ponto culminante de sua carreira é pura profusão e riqueza. Chama a atenção as poderosas colunas parecidas com as patas de um elefante. O telhado recorda a espinha dorsal de um dinossauro.

  • Os balcões retorcidos parecem máscaras gigantes. A casa tem pele, é de peixe!

  • Os cantos e as formas que, pela arquitetura convencional seriam quadradas, desaparecem, se ondulam oferecendo o mesmo aspecto de pele escorregadia de uma serpente aquática.

  • Os muros externos são como pele, suaves e moldáveis. Esse sonho de naturalismo e flexibilidade se estende também no seu interior.

  • Nenhum outro edifício de Gaudi mostra tanta modernidade. Sua arquitetura vanguardista é das mais chocantes. A construção nos leva ao mundo da fantasia, assim como a Casa Calvet.

  • O prédio parece mole, algo feito de barro recém-modelado como as mãos de oleiros alisando seus potes.

  • Tudo é curvo, roliço, arredondado. Até o teto. A casa nos transmite o quadro "A Persistência da Memória", de Dali, com seus relógios derretidos. A casa também parece se derreter.

  • Balcões semelhantes a gotas de mel... quem já viu isso?
  • A Casa Batló é verdadeira casinha de alfinin. Nada lembra as pedras duras, frias que modelam o seu corpo arquitetônico.

  • Na sala onde se encontra a lareira, tudo parece rechonchudo, macio, ondulado.

  • A Casa Milá, apelidada de 'a pedreira' provocou estupefação nos contemporâneos de Gaudi, sendo incompreendida durante muito tempo.

  • Não faltou quem fizesse caricaturas, paródias e deboches, desacreditando em cada metro que se erguia… Estariam assustados?

  • Mas com certeza tanta ironia não era mais que uma prova de fascinação que ela exerceu sobre seus contemporâneos.
  • Essa construção constitui uma síntese de todos os elementos que definem a época tardia do estilo gaudiano.

  • A casa é paisagem em movimento. Sua fachada é obra primorosa… fantástica.

  • Os numerosos ventiladores e chaminés configuram uma estranha paisagem de esculturas surrealistas, cujas formas se repetirão muito mas tarde na história da escultura.

  • Este atrativo residia desgraçadamente em detalhes externos, duvidando por completo que Gaudi havia baseado em reflexões práticas. Havia uma antecipação do futuro, como o prelúdio da garagem subterrânea dos porões.

  • Suas obras são marcadas por inúmeros chaminés: características puramente gaudiana.

  • Igreja da Sagrada família, de inspiração gótica, parece saída dos contos fantásticos. Não há nada que se possa comparar em toda a história da arte.

  • Quando falamos de um gênio como esse, o mais comum é apontarmos uma obra de culminação. Mas em Gaudi isto é impossível, pois com a Sagrada Família, sua obra mestra, ele ocupou toda a sua vida.

  • Quando compunha se encantava com a própria obra. Era tanto que não admitia vê-la lenta ou parada. Durante a primeira Guerra Mundial ia de porta em porta pedindo donativos para que os trabalhos não parassem, mas infelizmente só chegou a concluir uma torre.

  • Por falar nelas, lembram as mitras episcopais.

  • A Igreja da Sagrada Família é uma oração de pedra. Lugar onde as rochas exalam Deus.

  • As doze torres que coroam a fachada fazem referência a toda a cristandade, representadas através dos doze apóstolos.

  • Gaudi tinha repugnância pela monocromia. Dizia que a natureza é multicolorida e desconforme, portanto sua obra seria sempre cheia de vida e de formas diversas.

  • Outro detalhe também interessante e que o faz poeta da arquitetura: ele gostava de introduzir em suas obras letras e palavras sob forma de anagramas.

  • É impossível encontrar em suas obras algum elemento igual.
  • A escultura de um caracol, uma tartaruga serve de base a uma coluna situada ao lado do portal do amor, ao lado aparecem animais domésticos.

  • Às vezes até nós mesmos não entendemos como alguns de seus edifícios se sustentam em pé. Algumas obras refletem frágil aspecto, mas se caracterizam por assombrosa firmeza.

  • Tudo é permeado por mosaicos, ladrilhos, cristais, azulejos, madeira, ferro, pedra, vidro, fragmentos de vidros, vitrais, cerâmicas... dominava o ladrilho como nunca.

  • Gaudi antecipou as técnicas de colagem dadaísta, os métodos cubistas de Picasso e Miró, e as próprias pinturas de Miró.

  • As instituições públicas de sua época o ignoraram, mas ele teve sorte com os canais privados, assim como o industrial Guell, seu maior fã e mecenas.

  • O conjunto de sua obra revela ousadia e criatividade insuperável.

  • Sua abnegação, sua religiosidade o tornam santo, tal qual a santidade de sua arquitetura.