ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

sábado, 29 de agosto de 2020

Deus entre a cruz e a espada - Opinião

 


DEUS ENTRE A CRUZ E A ESPADA - CASO FLORDELIS E PADRE ROBSON À LUZ DE UMA REFLEXÃO.


Esses dias têm me sido incomparavelmente muito mais duros pelo que assistimos nas redes sociais EM NOME DE DEUS – do que pelos próprios efeitos decorrentes da Pandemia do Novo Corona Vírus. Particularmente tiro de letra a Pandemia, lendo, escrevendo, assistindo a bons filmes, conversando em família etc... mas as notícias... que notícias! Como nos fazem mal...

Tenho me deparado com católicos muito tristes, escandalizados com as acusações de corrupção que Justiça faz ao padre Robson, decorrentes das doações dos católicos à ANFIPE, Associação Filhos do Pai Eterno, vindas à tona a partir de extorsões de um suposto relacionamento homoafetivo do padre, cujo rapaz armou uma trama envolvendo extorsão, vida de alto luxo, um sino de seis milhões de reais, desvios de dinheiro das obras para compra de mansão na Bahia, fazenda e investimentos em mineração. Como não bastasse chega ao fim a investigação do assassinato do pastor Anderson, cuja esposa Flordelis, pastora evangélica e também Deputada Federal pelo Rio de Janeiro, arquitetou o crime. História horrorosa. E quando a assassina é uma pastora evangélica choca ainda mais, pois se constata uma morte “EM NOME DE DEUS”.

É incompreensível e estúpido alguém preferir assassinar o marido a se separar, alegando que o divórcio é pecado. No processo ela diz exatamente assim: “... fazer o quê? Separar não posso, porque ia escandalizar o nome de Deus...”. Os fatos se agravam quando sabemos que essa pastora representa parte do povo brasileiro na Câmara dos Deputados Federais, no caso os evangélicos.

Não é a minha intenção ferir ou atacar nomenclaturas religiosas, mas alegarem que essa mulher não é evangélica é tapar o sol com a peneira. É rir da cara de todos. Ela é e sempre foi evangélica, assim como o padre Robson é padre, e sempre foi católico. Se ambos fatos não tivessem sido descobertos, eles estariam em ação, EM NOME DE DEUS. Uma, assassina comprovada pelos autos, outra, suspeita de ter desviado dinheiro de milhões de brasileiros católicos. Mas ele não é suspeito de comprar um sino de seis milhões. Ele comprou o sino, comprou as fazendas, comprou a mansão e comprou a mineração, alegando estar investindo. A Justiça diz não "engolir" isso, tendo em vista que em plena construção de uma mega igreja (que se encontra só nos alicerces, mesmo tendo passado oito anos do início da campanha), se use o dinheiro para investir, esquecendo a obra e se vivendo vida de rei.

Conheci uma senhora de 78 anos que enviava mensalmente cem reais de sua humilde aposentadoria de um salário mínimo. Nunca falhava: dona “Maria do Carmo”, esposa do “Sr. Bambão”, de Papari. Ela deve estar se remoendo no túmulo.

Sobre a deputada e pastora evangélica Flordelis, a mesma não pode ser presa porque tem IMUNIDADE PARLAMENTAR. Vejam que recurso absurdo e descarado. Bem a cara da maioria dos políticos brasileiros. Serve para favorecer bandidos. Mas Flordelis foi denunciada, e o pedido acatado. Resta-nos aguardar que a Justiça, através do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados a expulse. Só assim ela será presa. Não é possível que seguiremos tendo uma MANDANTE DE CRIME como representante de um dos pilares da Constituição Brasileira, chamado Câmara dos Deputados.

Flordelis veio da favela. Era pobre de Jó. Lentamente alçou voo sobre camada social mais poderosa, até se tornar cantora gospel, cada vez mais conhecida em todo o Rio de Janeiro. Logo começou a adotar crianças abandonadas, depois se casou. Até aí é digna do respeito e aplauso de todos, afinal tudo isso denota resiliência, luta, solidariedade com o próximo. Lembrando que a a sociedade brasileira é preconceituosa, discrimina pobres e favelados. Inegavelmente a pastora Flordelis era uma heroína. Mas até aí ninguém imaginava que ela já estava casada com um dos filhos adotivos, dezesseis anos mais jovem que ela.

Filhos adotivos não diferem quando o assunto é INCESTO, portanto ela vivia um incesto que só os filhos sabiam. Tudo piora quando o processo revela que esse marido foi tomado de uma das filhas de Flordelis, que também era irmã dele. Fatualmente eles viviam um filme na vida real, e esse filme poderia se chamar “A CASA DO TERROR”. Era uma salada macabra, envolvendo orgias sexuais, rituais estranhos, cultos evangélicos, louvores, unções, gravações de vídeos, brigas, ameaças, alimentos separados conforme o “valor” de cada filho, brigas por dinheiro de bilheteria de shows gospel... uma das filhas, que vinha envenenando lentamente a comida do pai-irmão, disse: "esse pastor Anderson é difícil de morrer"... por fim descobriu-se - conforme o processo - que ela mantinha relações sexuais com outro filho, ou seja, traia o filho-marido com outro filho, enfim O INFERNO DE DANTE ALEGHIERI e O AUTO DA COMPADECIDA, de ARIANO SUASSUNA moravam naquela casa.

Ela entendia que matar o marido-filho era menos feio de que se divorciar, pois ao se separar quebraria um princípio bíblico - ou o sacramento do matrimônio. Ou seja, a “mulher separada” ficaria feia diante dos olhos de Deus e da sociedade. Veja como é forte nela a tradição que a própria Nísia Floresta combatia há mais de cem anos. Entendam o psicológico flordelisiano: ela não achava pecado – nem enojante e inconcebível - transar com o filho-marido. Nem transar com o outro filho-filho. Era menos mau mandar matar alguém. Na sua abominável massa cinzenta via-se Deusa superior à verdade. Pensava que jamais alguém saberia do seu lado pombagira Maria Padilha, excetuando a verve assassina, ou a própria Jesebel. A internet está coalhada de vídeos nos quais ela condena a prostituição e o homossexualismo. Em outros ela chora a morte do marido-filho, diz sentir saudades dele. Flordelis tinha segurança de estar acima das investigações que rolavam.

Para ela ficaria muito feio uma EVANGÉLICA E DEPUTADA FEDERAL DIVORCIADA. Atrapalharia a agenda de shows gospel, pois EVANGÉLICOS E CATÓLICOS OLHAM TORTO PARA MULHERES SEPARADAS. Não seria bom exemplo. Ela queria ter autoridade e ser genuína representante da bandeira evangélica. E como agora é moda ARMAS DE FOGO - agregou mais esse elemento à sua bizarra casa do terror: e ESCOLHEU mandar matar o marido.

A pergunta mais óbvia é: e o quinto mandamento “Não Matarás?” A palavra de Deus vale menos que a dela? Sabemos que ela escolheu mandar matar o marido-filho, usando alguns filhos. Ela usou do lado avesso o mandamento “Honrar pai e mãe” O primeiro mandamento “Amar a Deus sobre todas as coisas” ela nunca o usou em verdade. O segundo mandamento “Não tomar seu santo nome em vão” foi o que ela mais praticou nos shows gospel e nos incontáveis vídeos que abarrotam as redes sociais. “Não desejar a mulher do próximo”, que também pode ser entendido como “não cobiçar o homem da próxima” ela também teve dificuldade na prática. E dentro de sua própria casa. Toda a sua bondade e amor às crianças abandonadas caiu por terra. Ela se tornou o pior exemplo para esses seres já tão sofridos. E ao invés de educá-los, ensinou-lhes a serem assassinos.

No enterro do marido ela se serviu do oitavo mandamento “Não levantar falso testemunho”. Entrou em parafusos, quis abrir o caixão, desesperada, para que o marido-filho levasse com ela um pouco de suas lágrimas quentes. Comoção e pranto parecido ao de Suzanne Richttoffen. Fez o máximo de teatro para dar a entender que os criminosos eram outras pessoas. Mas era falso testemunho.

O caso Flordelis parece ter sido escrito por Agatha Christie ou Edgar Allan Poe. São fatos impensáveis. Mais comuns aos geniais cérebros da escrita. FLORDELIS TENTOU TRANSFORMAR O DIVÓRCIO NO PIOR MANDAMENTO DA “LEI DE DEUS”, e julgou que se sobrepujaria aos demais, tornando-os “fichinhas”. Tudo em nome da preservação de uma imagem que não podemos chamar de Flordelis, mas do próprio DEMÔNIO. Pelo menos no que nos contam sobre o mesmo. Mas não nos enganemos. De singular nessa história temos apenas a trama. A novela é comum e acontece a cada momento, tanto dela quanto do padre Robson, muito embora ele não seja assassino nem incestuoso.

Mas um sino de seis milhões é o mesmo que matar milhares de pessoas de fome. Por quem esse sino dobra? Com certeza não é para os pobres e excluídos. Os sinos dobram para os incontáveis padres que vivem no alto luxo que Jesus tanto condenou.

A pastora evangélica Flordelis é a cara real de boa parte dos evangélicos do Brasil. PROCLAMAM-SE SALVOS MAS ESTÃO CHEIOS DE ÓDIO. Acusam a todos. DIZEM SEGUIR A BÍBLIA, MAS SÓ FALAM EM DINHEIRO, SALVAS RARAS EXCEÇÕES. E saber que ouvi uma senhora evangélica muito idônea - na eleição passada (2014) – dizendo que votou no Pastor Everaldo para Presidente da República, nos assusta. Imagine um homem deste governando. Seria semelhante ao atual governo.

Confesso que me surpreendo com evangélicos que ainda tem a coragem de defender essa cidadã, dizendo que ela estava sob possessão, e que não podemos julgá-la. Particularmente não estou julgando, mas comentando e exercendo a minha capacidade crítica. Sem isso, também seremos Flordelis. E me surpreendo com a omissão dos evangélicos nesse caso. Deveriam estar em massa diante do prédio da Câmara Federal, exigindo que essa assassina fosse expulsa para ontem. MAS ESTÃO EM SILÊNCIO, E ISSO É TÍPICO DA MAIORIA DELES. Esse silêncio revela possessão. Mas possessão seletiva. Evangélicos pentecostais – principalmente – não se silenciaram diante do caso da menina de dez anos, estuprada pelo tio. Fizeram disso um escândalo (junto com católicos), pedindo que a menina não abortasse. Mas se silenciam diante de uma pastora evangélica que manda matar o marido-filho e diz representar os evangélicos na Câmara dos Deputados.

Vejo muito preconceito e fiéis seguidores do Velho Testamento. São espécie de analfabetos funcionais, que leem e interpretam ao pé da letra. Para esse público - evangélico e católico - a “Besta de Sete Cabeças” é uma espécie de jegue com sete pescoços e sobre os sete pescoços, sete cabeças. Se negam a enxergar a Besta de Sete Cabeças ao lado, e em todos os lugares.

Suponho que se Jesus aparecesse, hoje – se é que Ele não ande por aí - estaria ao lado de todas as vítimas da sociedade, ao lado das vítimas dos políticos mal intencionados - que são maioria – ao lado dos inúmeros pedintes que se amontoam nas ruas, ao lado dos sem-teto, das minorias enfim... O LUGAR QUE ELE MENOS ENTRARIA SERIA NAS IGREJAS, ONDE DE DEZ PALAVRAS, NOVE SÃO SOBRE DINHEIRO E RIQUEZA.

Só sei que nos últimos dez anos eu passei a rever muita coisa na minha vida. PASSEI A ACREDITAR MAIS EM PESSOAS QUE EM SUAS FUNÇÕES PROFISSIONAIS. Desse modo um padre, uma freira, um pastor, um político, um ministro da eucaristia ou um ministro do Supremo pode não significar nada para mim – ou pode significar muito – se eu tiver a certeza absoluta do seu bom caráter. Respeito - mas não gosto – quando alguém se aproxima de mim se apresentando – ou sendo apresentado com mil títulos ou funções, pois só me interesso pela mesma enquanto pessoa humana. Nada mais. O resto é ‘flordelis’. É lixo mesmo!

Ao longo dos meus cinquenta e dois anos de idade, conheci padres santos. Alguns já partiram. Outros estão vivos. Conheci - e conheço - pastores evangélicos santos. Conheci - e conheço - religiosos de outras denominações cheios de santidade. SÃO RAROS, pois a maioria está preocupada demais com o DEUS-DINHEIRO, PODER E POLÍTICA. O humanismo está diluído nessa seara. Tem que se olhar muito para enxergar a face de Jesus entre os povos. Hoje, me assusto com o que vejo em muitas igrejas, ventilado como COISA DE DEUS.

Nesses últimos cinco meses a mendicância tem aumentado aqui no centro de Natal. Em casa temos o hábito de guardar frascos plásticos para darmos alimento aos pedintes. Tem sido comum até pedido de sabonete e creme dental. O semblante dessas pessoas é de desespero. Nunca negamos, pois com toda a certeza, a fome e a necessidade devem ser as piores dores do mundo. Enquanto isso um padre compra um sino de seis milhões de reais. Isso é uma espécie de roubo. Creio que, se o que está sendo atribuído a ele for verdade – o homem que também deveria ser exemplo - se esqueceu do sétimo mandamento.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Bibliotecas vivas: história de uma pesquisa (Oralidade)

BIBLIOTECAS VIVAS - HISTÓRIA DE UMA PESQUISA (ORALIDADE)

Em 2009 passei três meses visitando alternadamente a residência dos filhos de Vicente Elísio, bisneto do Coronel Alexandre de Oliveira, o famoso Cavaleiro da Rosa que se encontra sepultado na parede da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, em Nísia Floresta, estado do Rio Grande do Norte. Quase toda noite nos reuníamos na sala: Onaldo, Lulu e Lourdes. Fui também durante alguns domingos à tarde, pois esses encontros não eram marcados previamente. Eu disse apenas que precisaria escrever sobre o ex-prefeito Vicente Elísio, pai deles, que fora prefeito de Papari na década de 40. Eles adoraram a ideia, pois nunca alguém se debruçou sobre essa história. Assim salvei uma importante página da História de Papari. 

Sabedores do que se tratava, bastava eu me apresentar à porta, era muito bem recebido. Em História você não pode se preocupar com diferenças ideológicas, principalmente político-partidárias. Disse isso porque alguns me alertaram que eu não conseguiria jamais pesquisar com eles. Foi o contrário. Eles me disseram os horários que normalmente estavam em casa. Bastava eu chegar, as portas se abriam, e as histórias fluíam em livros abertos em memórias. Nunca conversamos sobre política atual: não era esse o objetivo! 

 

 Assim aconteciam conversas sobre coisas velhas de Papari. Os fatos me eram narrados como se tivessem ocorrido no dia anterior. Graças às mentes privilegiadas dos contadores, inclusive Lulu se lembrava de fatos que nem Onaldo o narrara. Vejam como é interessante as memórias antigas. Um assunto puxava o outro. Eram conversas olho no olho. Onaldo começava um fato, olhava para Lourdes, ele continuava, Lulu jogava um detalhe esquecido, outrora Lourdes lembrava de um detalhe esquecido e assim flui. A cada encontro era uma página nova, buscada naquelas bibliotecas vivas. Acervos preciosos. 

Todos colaboravam com uma informação aqui, outra ali. Ri muito com eles. Foi uma das entrevistas mais deliciosas e divertidas dentre tantas que fiz em Papari. Interessante é que todos eles, quando me viam na rua, perguntavam se eu iria naquela noite, ou naquela tarde. Nossas conversas adquiriram uma química tão forte que lembrava tempo antigo, no qual os netos cercavam os avós defronte as casas para ouvir histórias de Trancoso. Só que eram histórias reais.  

 

Quando concluí a pesquisa, imprimi-a e fiz a questão de entregar um exemplar à família. Nunca me esqueci a fisionomia de felicidade de Onaldo e os demais. Ficou radiante. Agradeceu mais que devia. Emocionaram-se. Até brinquei, dizendo que estávamos gerando um filho naqueles encontros. E o filho havia nascido. Pesquisa é isso!  

Quando soube que Lulu, e depois Onaldo haviam se encantado, reavivou esse filme na minha mente. Só tenho a agradecer a todos eles por terem se disposto a contar tudo o que sabia sobre a história da gestão de seu pai Vicente Elísio, e tantos outros fatos ocorridos em Papari. Se não tivessem ocorrido esses encontros eu não teria escrito a história do seu pai. Eles teriam levado  para o túmulo uma parte da Biblioteca de Papari. Costumo dizer sempre que ainda consegui salvar muita coisa das Biblioteca Viva de Papari, pois tendo chegado ali há 27 anos, empreendi vasta pesquisa junto a idosos de idades entre 70 a quase cem anos. A maior parte dessas pessoas partiram, mas me ajudaram a salvar muita coisa que sem ela jamais os mais novos saberiam. 

 

Às vezes os nativos entram em contato comigo e perguntam: “como é que você sabe disso, se você não é daqui, nem morava daqui nessa época?”. Respondo: “eu não morava, mas falei com aqueles que moravam”. História Oral é isso! Outro detalhe muito curioso diz respeito a nativos que entram em contato comigo para saber coisas que os avós haviam contado, mas que a pessoa não lembrava mais como era em detalhes aquele fato. A Oralidade é preciosa, pois eu precisava daquele material para confrontar com inúmeros outros e dar cada vez mais cientificidade. E assim, juntando os fragmentos, ia montando. Talvez por isso eu tenha até hoje facilidade para escrever de memória inúmeras histórias sobre a Papari antiga. Embora tudo isso esteja anotado, ou transformado em textos, ou ainda guardado, o fato de eu ter conversado com muitos velhos, paramentei-me dessa autoridade. 

Aproveito para agradecer a sua família pela grande contribuição, a qual não foi para mim, mas para as gerações futuras, pois nada existia escrito sobre o período de gestão de Vicente Elísio, pelo menos com tantos detalhes. Já agradeci em vida a todos eles. História é assim! Acaba ficando a saudade. Para finalizar: se eu tivesse me preocupado com ideologias políticas, não teria escrito a história de Vicente Elísio. E hoje ninguém saberia! Em pesquisa não podemos aflorar nossas opiniões pessoais. Assim aprendi.

Estuprada aos dez anos por nós... (Opinião)

ESTUPRADA AOS 10 ANOS DE IDADE POR NÓS

O caso de uma criança de dez anos de idade, estuprada por um tio, e engravidado, provoca discussões em todo o Brasil. O assunto é complexo e cai na seara da justiça, da medicina e religião. É também assunto de Moral, afinal a simbologia de um tio difere muito pouco da simbologia de um pai. E da mesma forma de uma tia. Tios e tias são quase pais e mães dos sobrinhos, portanto é uma espécie de incesto. Esse tio merece prisão perpétua.

Ontem a Justiça autorizou o aborto, mas quando o médico chegou ao hospital para o procedimento, um grupo de católicos cercou a porta de entrada do hospital, impedindo que o profissional entrasse. Houve muita hostilidade. Xingavam o médico de assassino e comunista (os vídeos estão na Internet). Hoje em dia as palavras “comunista” e “pessoas de esquerda” sãos usada pelos ignorantes para traduzir o que eles consideram nocivo à moral, aos bons costumes e à religião e família. É xingamento genérico. Funciona em qualquer confusão. Esbarrou sem querer, Usou máscara, é esquerdista e comunista... assim rotularam o médico e a própria criança: "assassina!" Enquanto isso Jesus está a lá dentro do hospital com a criança.

Ontem, vi a postagem dessa mulher da fotografia, a qual se proclama católica e apoiadora do Governo Federal. Até aí tudo bem. Somos livres, mas as palavras dela são preconceituosas, deturpadas e carregadas de maldade, que não dá para entender como ela se diz “cristã”. Ela culpa a criança pelo estupro. A menina, então com seis anos de idade, pediu que o tio a extuprasse por certo! Questiona por que a criança ficou calada desde quando começou a ser estuprada pelo tio. Sugere que a criança gostava de ser estuprada. Diz que “as mulheres de hoje estão iguais a cachorras no cio”, e “na minha comunidade têm crianças de dez anos que já estão com dois, três filhos nos braços” e outras coisas. Não dá para acreditar que uma mulher seja capaz dessa opinião.

Uma criança de seis anos entende o contato físico como carinho, portanto o tio teve a permissão da criança para fazer o que para ela era carinho. Uma criança não sabe o que é erotismo, sexualidade, excitação e coisas do gênero. Ao longo dos anos o tio estimulou a sexualidade da criança sem que ele entendesse o que acontecia. Só depois ela começou a compreender que algo estava errado.Mas entrou a ameaça. Houve um contexto de terror dentro desse lar, embora disfarçado de amor e carinho, e só veio à tona com a gravidez. A partir dos seis anos essa menina aquiesceu aos “carinhos” do tio sem a mínima noção de sexualidade, e menos ainda, de sexo.

Como sabemos, as meninas se desenvolvem mais rápido que os meninos, e o estímulo provocado pelo tio ampliou ainda mais esse desenvolvimento. Os anais da Medicina registram o caso de uma menina que engravidou aos cinco anos porque tinha uma patologia que a fez menstruar aos três anos e seu corpo se desenvolveu de forma incomum desde então. Essa patologia ocorre ainda hoje. Não é tão comum, mas é fato. Para agravar, o tio estimulou a sexualidade na criança, e tudo o que é estimulado, evolui. No caso dessa menina de dez anos, ela foi estimulada a se tornar mulher sem saber nem o que era pré-adolescência.

A Igreja Católica, como outras, proíbe o aborto, considerando-o crime. É entendido como assassinato. Já a Justiça entende o aborto – em criança -, como violação à infância, risco de morte e traumatização, portanto o favorece. São visões que se chocam. A Medicina explica que o aborto, seja numa criança ou numa mulher adulta, causa danos físicos, traumas e pode levá-la à morte, além de, dependendo o procedimento, tornar a mulher estéril etc. Percebe-se que a Medicina fica entre a cruz e a espada, pois existem médicos que se valem unicamente da ciência, e outros que pesam o aborto na balança da religião.

Em alguns países o aborto é permitido – independente de ser motivado por anencefalia e outras deficiências do cérebro. É entendido como direito de a mulher ter domínio sobre o próprio corpo, portanto uma moça que engravidou do namorado pode abortar, acaso não queira ser mãe naquele momento. Tudo perpassa por atendimento social-clínico para se ter a certeza da opção pelo aborto, pois a pessoa pode mudar de ideia e optar pela maternidade.

Mas a igreja católica - nesse caso - é contra o aborto, independente de qualquer fato, se bem que ela não funciona como Tribunal fora da Igreja. Ser contrária ao aborto é uma orientação que perpassa por considerações da ética cristã etc. É algo que está de católico para católico. Diante disso, os católicos que estavam defronte ao hospital, hostilizando o médico, não representam a igreja, mesmo que fossem católicos. Eles representam seus pontos de vistas religiosos, e por isso não tinham o direito de estarem ali, se a Justiça autorizou o aborto naquela criança. São visões e opiniões diferentes. Causam conflitos. Mas há fatos e fatos.

É complexo dizer sim ou não ao aborto. Pesam muitos outros fatores sérios. O tio cometeu um crime ao violar uma criança dos seis aos dez anos de idade. A Medicina cometerá um crime ao proceder o aborto na vítima do estupro (aos olhos da igreja, pois o considera pecado mortal). Tão mortal quanto o tio ter matado a infância da menina aos seis anis. A Justiça aprova nesse caso específico. Cada lado tem uma alegação que considera legítima. É um imbróglio no qual poucos pensam no futuro da menina.

Creio que o leitor se lembra do caso de um grupo de freiras estupradas na Bósnia por soldados em guerra. O Papa da época não autorizou o aborto, e todas se tornaram mães. Pela lógica, esse fato nem precisaria da opinião do Papa, pois se o entendimento dos católicos é de não abortar em hipótese alguma, seria óbvio que as freiras se tornariam mães, mesmo não sendo aquilo que escolheram para si. A favor das mesmas está o fato de não serem crianças estupradas, mas adultas estupradas. Horroroso, mas real. Esse detalhe também é muito complexo, pois há registros de católicos, evangélicos e pessoas de todas as religiões que apregoam o “não” ao aborto, mas quando engravidam do namorado, esquecem a Bíblia e correm para a clínica. Então, nesse caso, não seria crime?

Crime é uma menina de dez anos ser mãe sem saber sequer o que é ser filha, e muito menos sem ter vivido a infância. Isso parece poético, mas o estupro é algo tão grave que deveria ser alçado à categoria de prisão perpétua. Todos sabem que a maior parte das mulheres (não crianças) estupradas ao longo da História possui síndromes pós-traumáticas, incluindo os pesadelos, tendências de suicídio, anestesia emocional etc.

Uma criança nessas condições terá fortes indícios de desenvolver problemas iguais quando entender o que aconteceu. Talvez o choque seja maior ao pensar sobre o que lhe foi roubado, principalmente a fase preciosa da infância. Creio que uma pessoa adulta só é verdadeiramente completa e normal se viveu intensamente todas as fases de sua vida. Imagine uma menina estuprada dos seis aos dez anos, que não teve infância, e não terá pré-adolescência e adolescência porque foi forçada a se tornar mulher e mãe. Penso que isso seja um crime hediondo, merecedor de eterna prisão ao algoz.

Não tenho filhas, mas confesso que se essa menina fosse minha filha, faria o aborto, sim. Esse assunto é muito amplo, está na alçada de vários outros profissionais. E sobre a mulher da postagem, que culpa a criança, não sou contra o posicionamento dela meramente por ela ser contra o aborto. É direito dela, já que é católica “praticante”. Sou contra o seu alto grau de preconceito, e por sua visão deturpada de infância e dos fatos sociais . Sou contra ela culpar a criança e os pais. Sou contra ela dizer que as meninas de dez anos “parecem cachorras no cio”. Ela desqualifica o gênero dela, generalizando os fatos.

Tudo isso – embora seja outro assunto – entra na alçada de Educação, de problemas familiares e problemas sociais diversos, ausência de políticas públicas concretas diversas e fluentes. O índice de miserabilidade é um grande contribuinte disso tudo, pois gera abandono, descuido. As mães, normalmente sem maridos, precisam ser faxineiras para trazer o pão e o leite de noite. Enquanto isso parentes e até mesmo autoridades estão ali, de olho nas crianças - meninas e meninos - à espera de uma pequena brecha para estuprá-los. Quais políticos - a partir da sua cidade - lutam ferrenhamente contra isso? A menina de dez anos foi estuprada por uma sociedade hipócrita, e há muitas sendo estupradas neste exato momento. De repente até dentro do seu lar. Isso num país no qual o presidente da república estimula o estupro em cadeia nacional, tendo sido gravado dizendo que “não estupraria uma parlamentar pelo fato de ela ser feia”. Não bastasse uma sociedade machista, que conserva vivo o ranço do patriarcado do século XVIII, cuja violência aumenta assustadoramente, somos obrigados a constatar os casos de estupro aumentando, chegando à infância por força desse indesejável filme de terror.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Guimarães Rosa e Manoel de Barros: um sertão entre dois mitos

 

GUIMARÃES ROSA E MANOEL DE BARROS: UM SERTÃO: VEREDAS ENTRE DOIS MITOS .
 
Talvez alguns não saibam, mas as obras “Grande Sertão de Veredas” e “Um certo vaqueiro Mariano”, ambas do genial escritor mineiro Guimarães Rosa (1908-1967), guardam bastidores de outro gênio, o sul-mato-grossense Manoel de Barros (1916-2014). O conto “Com o Vaqueiro Mariano”, sob o título Entremeio: Com o vaqueiro Mariano, integra o livro póstumo “Estas estórias” (1969). Guimarães veio antes de Manoel, e tão antes partiu. Foram só 59 primaveras. Manoel veio depois, e bastante depois se foi. Voejou durante 97 anos. Imagine se Guimarães tivesse se estendido mais. Teria virado palavra. 
 
Manoel já era autor de algumas obras quando leu "Sagarana", de Guimarães Rosa. Ficou encantado e o colocava em excelente conta. Não foi à toa que no seu “Tributo a J.G.Rosa”, ele escreveu: “Passarinho parou de cantar. Essa é apenas uma informação. Passarinho desapareceu de cantar. Esse é um verso de João Guimarães Rosa. Desapareceu de cantar é uma graça verbal. Poesia é uma graça verbal” (Tratado das grandezas do ínfimo, 2001). 
 
Quando Guimarães Rosa começou a construir os alicerces de seu “Grande Sertão: Veredas”, quis enriquecer os seus conhecimentos sobre o tão falado “sertão do Mato Grosso”, observar as boiadas para conhecer a relação delas com os peões pantaneiros, a linguagem, os hábitos, enfim todo aquele universo de modo geral. Em 1952 ele espichou até Nhecolândia, no Pantanal do Mato Grosso do Sul para envontrar-se com Manoel de Barros.
 
Eis que o cicerone pantaneiro marcaria a sua vida, como veremos. Manoel de Barros era louco pela poética de Guimarães. Quem não é! Imagine os dois, juntos, conversando nas entranhas de um bioma emanante de poesia. Na realidade Manoel de Barros também era fascinado por Manoel Bandeira. Uma vez o visitou. Chegando defronte ao apartamento, apertou a campainha e fugiu (não teve coragem de ficar frente a frente com o poeta pernambucano). Mas é outra história! 
 
Pois que bem. Guimarães queria entender o sertão, e logo deu conta que o sertão do Mato Grosso do Sul é outro. Ali, por “sertão” entende-se as matas fechadas, o “mato grosso”, as terras do sem fim... diferente do bioma do sertão nordestino/mineiro, que dali pelas beiradas de Minas Gerais, já se apresenta com tais características. Nesse segundo bioma ele formaria o seu sertão para acomodar Riobaldo e Diadorim. Mas ele tirou proveito com certeza do que viu nas terras de Manoel de Barros. Talvez o sertão de Guimarães fosse o sertão de Euclides. 
 
 
Manoel de Barros nunca imaginou, mas ao receber o consagrado escritor mineiro, se tornaria personagem do livro “Um certo vaqueiro Mariano”, escrito antes de “O Grande Sertão: Veredas. Pois é! Mariano é o próprio Manoel de Barros! O encantamento que Guimarães Rosa sentiu na prosa com Manoel, o diálogo profundo sobre poesia e escrita deu pano para manga. É importante esclarecer que, embora Manoel de Barros fosse um homem de letras – e das letras, diga-se de passagem – não diferia de um peão típico do Pantanal. 
 
Esse comportamento é comum aos fazendeiros daquela região. Eles se misturam aos peões pantaneiros como peões fossem. São diferentes do fazendeiro paulista, que trata o peão com certo distanciamento. Sao mais engracarados! Manoel de barros só retirou a sua capa de peão quando a vida melhorou, as coisas prosperaram e os filhos engrossaram o pescoço. A propósito disso, além dos empregados, João, seu filho, fincou os pés na fazenda, e Manoel de Barros voou para Campo Grande aquietando-se no seu ninho poético de onde só sairia quando se encantasse a passarinho. 
 
Manoel de Barros morou um bom tempo no Rio de Janeiro, onde se formou. Passava o dia na Biblioteca Nacional. Já casado, muito jovem, se desequilibrou financeiramente. Não sabia lidar com dinheiro. O pai morreu em Mato Grosso do Sul. Ele herdou parte da fazenda e 500 bois. Quis vender tudo. Dona Estela tomou a dianteira e impediu. Era uma mineira muito bem criada. Já tinham uma filha: Marta. Manoel de Barros perguntou se ela aceitava findar a vida no Pantanal, supondo que ela esconjuraria, pois iria para um grande sertão cercado de bichos e matas. Para sua surpresa ela aceitou, e para lá se foram. Dizem que “a necessidade faz o sapo pular”. Assim o jovem charmoso “se transformou num peão pantaneiro” do dia para a noite. Tomou gosto por sua herança, sem perder a ternura poética. Em um ano ele quintuplicou a vacaria e não deixou desejar a nenhum fazendeiro de berço. Foi esse “peão” que Guimarães encontrou no Pantanal. 
 
Manoel tinha essa sensibilidade guardada. Caindo no Pantanal quase que de paraquedas ele começou a ver e sentir o planeta de suas raízes, exatamente como uma criança. E todo esse material de poesia ficou arquivado nos seus dedentros, explodindo muito tempo depois com impressionante qualidade literária. Manoel de Barros era a poesia camuflada a peão. Quem o visse não imaginava o seu olhar de infância colhendo poesia diariamente, mesmo laçando bois ou fincando mourões de cerca. O serviço bruto refinava cada vez mais a sua imaginação. 
 
Pois vamos. Agora leiam as magníficas palavras que Guimarães Rosa registrou sobre esse encontro na abertura do livro “Um certo vaqueiro Mariano”: “Em julho, na Nhecolândia, Pantanal do Mato Grosso, encontrei um vaqueiro que reunia em si, em qualidade e cor, quase tudo o que a literatura empresta esparso aos vaqueiros principais. Típico e não um herói, nenhum. Era tão de carne e osso, que nele não poderia empessoar-se o cediço e fácil da pequena lenda. Apenas um profissional esportista: um técnico, amoroso de sua oficina. Mas denso, presente, almado, bom condutor de sentimentos, crepitante de calor humano, governador de si mesmo; e inteligente. Essa pessoa, este homem, é o vaqueiro José Mariano da Silva, meu amigo.” 
 
José Mariano da Silva é um nome inventado. Até nisso pareciam, pois a obra de Manoel de Barros é cheia de coisas inventadas, desde um famoso artista plástico a um avô imaginário etc. José Mariano da Silva é Manoel de Barros! O diálogo que o “peão” Manoel de Barros estabeleceu com Guimarães Rosa foi decisivo para muito do que ele produziria daquela data em diante. Acho impressionante isso. Eram dois monstros da literatura surpreendidos um com o outro. A bagagem intelectual, a serenidade e sensibilidade de Manoel encantou o escritor mineiro. 
 
Esse encontro, testemunhado por tuiuiús, jacarés, ipês, acuris e carandás, poderia ter se restringido apenas ao que Guimarães Rosa escreveu, pois não teve mais testemunhas, mas Manoel de Barros acabou confirmando tudo isso, ao ser entrevistado pela revista “Bric-à-Brac”, na qual ele declarou: “… vi poucas notas da viagem de Rosa ao Pantanal. Quis saber, ele, ainda, de meus receios sobre as confusões com o exótico. Falei, falei demais espichei. Dei a entender que se estava olhando o Pantanal só como uma coisa exótica. Um superficial para só se ver e bater chapa.
 
Mesmo os que cantavam em prosa e verso ficavam enumerando bichos, carandás, aves, jacarés, seriemas; e que essa enumeração não transmite a essência do pantanal, porém só sua aparência. Havia o perigo de se afundar no puro natural etc. Precisamos de um escritor como você, Rosa, para frear com a sua estética, com a sua linguagem calibrada, os excessos de natural. Temos que enlouquecer o nosso verbo, adoecê-lo de nós, a ponto que esse verbo possa transfigurar a natureza. Humanizá-la. Rosa fez tudo isso. Alguns anos depois deu a público o seu Com o vaqueiro Mariano, um livro intenso de poesia e transfiguração.” 
 
Essa declaração é impressionante e fala por si. Manoel conversou com Guimarães Rosa sobre a escrita ideal. Imagine o que eles conversaram! Manoel trazia uma bagagem bibliográfica vasta. Imagine-a somada ao material de poesia que ele tinha no Planeta Pantanal! Um Pantanal inteiro, se bem que ele se tornaria poeta do mundo, dado justamente a sua substancial ilustração. Deixe-me repetir esse trecho impactante das palavras de Manoel de Barros: “... precisamos de um escritor como você, Rosa, para frear com a sua estética, com a sua linguagem calibrada, os excessos de natural. Temos que enlouquecer o nosso verbo, adoecê-lo de nós, a ponto que esse verbo possa transfigurar a natureza. Humanizá-la”. Rosa fez tudo isso. E Manoel também, tendo a oportunidade de ter se lapidado ainda mais por seu amadurecimento, profundos estudos e treinos, tendo a longevidade e a saúde a seu favor, pois enquanto Guimarães Rosa despediu-se da vida aos 59 anos de idade, Manoel de Barros se encantou a passarinho aos 97 anos. Viveu quase um século! 
 
Manoel de Barros fez objeções sobre o fato de Guimarães Rosa citar o Pantanal. Pediu que o mineiro não descrevesse aquele local como exótico e folclórico, e que fosse comedido esteticamente ao dar desregramento do natural, sem exageros. Sugeriu uma nova linguagem. E o próprio Manoel imprimiu essa marca à sua poética. Isso é curioso, pois Guimarães Rosa vislumbrava um português brasileiro na escrita. Guimarães, que já trazia uma escrita apurada, perceptível em Sagarana, teve um insight, e tudo mais que escrevesse doravante seria pincelado de singularidade. 
 
A preocupação com a escrita estava para Guimarães Rosa e Manoel de Barros como para Flaubert. Saía sangue! Mas, inegavelmente, ambos foram muito especiais. Eram hiperdotados. A fôrma onde foram assados se perdeu. Eles sairam do lugar-comum e mergulharam numa oficina constante, um universo de criacionismos... assim se formatou o estilo de ambos. O romance modernista “Grande Sertão: Veredas” é uma obra marchetada à poesia, assim como é poesia toda poesia de Manoel de Barros. 
 
Inegavelmente, Guimarães Rosa revelou uma beleza de escrita muito especial ao construir o seu “Sagarana”, publicado muito antes de “Grande Sertão: Veredas”, mas não se deve negar que o que veio depois estava anis-luz de lapidado e diferente. Porque teve muito daquele papo delicioso nos confins do Pantanal. Guimarães seguiu o conselho. Riobaldo, sombra de dúvidas, também seria o homem do Pantanal. Repito: imagine se ele tivesse vivido 97 anos também! Seria palavra!
 
O “Vaqueiro Mariano” (publicado em fascículos jornalísticos em 1947, virado livro postumamente em 1969) foi a obra-exercício onde Guimarães Rosa afiou os dentes para morder, mastigar e triturar novas palavras, novas sintaxes, novas formas de se comunicar e não se enveredar no “puro natural”. Nesse trabalho a escrita de Guimarães é tão interessante que o narrador e o autor se confundem. Ele teve essa capacidade, ao mesmo tempo que humaniza os bois e revela uma relação quase de amor entre o homem e o animal: “... aqui é o gado que cria a gente...”. O livro é um poema ao Pantanal, e ali Guimarães descobriu que os animais nos ensinam a amar, pois são exemplos em sua amorosidade, constatação essa que seja no Nordeste ou No Pantanal, são iguais. Na realidade essa obra é muito maior. Ela mostra as faces do Brasil. Não foi à toa na dedicatória de Um certo vaqueiro Mariano, Guimarães Rosa escreveu: “Olha aí Manoel, sem folclore, nem exotismo, como você queria”. 
 
Para mim, esse encontro é um dos mais fascinantes momentos de nossa literatura. Não temos muitos testemunhos de fatos tão impressionantes e com reflexos desse tipo na literatura moderna. Já li muitos escritos sobre a obra O Vaqueiro Mariano. Li muitas críticas ao longo dos anos. Manoel de Barros passa ileso. Muitos sequer sabem que Mariano é Manoel, e Manoel é Mariano. De fato é demorado supor que Mariano é Manoel devido à estética do que concebemos como perfil intelectual e perfil de homem tosco. Com toda certeza, se soubessem, tornariam suas falas, suas organizações de ideias, concatenações filosóficas etc muito mais ricas e substanciais. 
 
Chama a atenção o fato de Guimarães Rosa procurar nos sertões do mato grosso subsídios para construir o seu sertanejo, o seu peão, e findar encontrando peões de todos os tipos, em especial um que além de reunir todas as qualidades de um autêntico peão pantaneiro, também era um gênio da literatura. E esse peão lhe ensinou muito mais do que ele sonhou. E não subsidiaria apenas a construção de seus peões, mas sua obra e sua vida. 
 
Aos 17 anos, tive o prazer de conhecer Manoel de Barros, na sua casa na rua Piratininga em Campo Grande. Sinto remorso de não ter registrado aquele dia no qual fui quase um Manoel de Barros apertando a campainha da casa de Manoel Bandeira. Cheguei desconfiado. Seu filho João havia acabado de chegar da fazenda. Descarregava a camioneta e disse que eu entrasse. Gritou "pai!". Manoel de Barros surgiu na minha frente como um filme. Ele ainda não era muito conhecido em 1990, fui ali orientado por Iracema Sampaio, uma escritora, editora da famosa Revista “Executivo Plus”. 
 
Ela havia dado aulas para minha irmã mais velha, quando essa era crianca. Era amiga dele e me orientou a colher nele sugestões de como escrever poesia. Eu não acreditava estar diante do homem propagado – não por questão de fama, pois ele nem era o Manoel que o Brasil conheceria – mas por eu ser muito imaturo, e procurar um homem que me disseram ser genial. Tinha vergonha de mostrar meus escritos. 
 
Contei até isso a ele. Lembro-me que ele disse que “se sentia desonrado quando publicava os seus livros”. Não entendi muito, mas aquilo me acalmou! Sua simplicidade e delicadeza deu àquele momento foros de amigos de longas datas. Creio que ele desceu para se acomodar ao meu tamanho. Assim me explicou. Deu dicas preciosas. Conversamos muito (fui mostrar a ele o que eu apelidava de “poesia”). Levei um pacote de manuscritos à grafite... Mas isso é página para outro livro...

A PALESTINA DESAPARECEU ATÉ DO GOOGLE MAPS - ISSO É PIOR QUE O NAZISMO... PIOR DE TUDO É A CONIVÊNCIA DE RELIGIOSOS... EM NOME DE DEUS?! (OPINIÃO)

VOCÊ ESTÁ SABENDO QUE A PALESTINA DESAPARECEU ATÉ DO GOOGLE MAPS?
ISSO CONSEGUE SER PIOR QUE O NAZISMO... PIOR DE TUDO É A CONIVÊNCIA DE RELIGIOSOS... EM NOME DE DEUS?!
 
Qual a razão de não se poder confrontar a história, a cronologia dos fatos e a própria arqueologia, com opinião religiosa que justifique a morte, tortura e sequestro de pessoas inocentes?
Desde 1948, com a chegada de um povo nômade, que nunca havia se afixado em nenhum lugar da face da terra com características de país, que o povo palestino inteiro sofre com a cotidiana humilhação de ver seu antigo lar arruinado.
Há várias etnias apátridas ao redor do mundo, muitas legítimas e outras forjadas pelas intenções do imperialismo. No Oriente Médio e oeste asiático há o povo Curdo, por exemplo, com uma história antiquíssima de povoamento e pertencimento ao lugar, com língua própria. Já na região dos Balcãs, há um estado artificial tão ilegítimo quanto Israel, chamado Kosovo, fortemente apoiado pelos Estados Unidos, que surgiu do nada, após a fragmentação da antiga Iugoslávia e após a guerra da Bósnia. 
 
A questão é: não se pode confrontar a história, a cronologia dos fatos e a própria arqueologia, com opinião religiosa que justifique a morte, tortura e sequestro de pessoas inocentes.
A água do povo palestino é dominada por Israel, o que é um crime contra a humanidade. O ir e vir do povo palestino para o trabalho só acontece após que todos passem por uma inspeção que dura mais de duas horas diárias.
Crianças morrem, são processadas judicialmente, são sequestradas e desaparecem todos os dias. E o povo palestino não tem nem com o que se defender dessa eterna sangria.
Apoiar Israel é apoiar saqueadores. Não é ser religioso.

Visitando minha prima Maria Dolves

VISITANDO A MINHA PRIMA MAIS IDOSA: MARIA DOLVES...
 
Maria Dolves, nome que aprendi a ouvir desde criança na voz da minha mãe Maria. Quantas lembranças de suas infâncias e mocidades. Maria Dolves, 88 anos, cérebro privilegiado. Ela narra episódios antiquíssimos com riqueza de detalhes. Sua marca registrada é acolher muito bem as visitas e retirar poeira de velhas histórias. 
 
Como deve ser bom envelhecer com o cérebro intacto. Sua casa é uma espécie de museu. Guarda uma galeria antiga dos nossos antepassados, onde se inclui o nosso lendário tio-tataravô Major Manoel Cornélio Barbosa Cordeiro Peixoto Fontoura (últimas fotografias, inclusive a colorizada artificialmente), herói durante a Guerra do Paraguai. Nessa fotografia no palco, ele é homenageado por Getúlio Vargas em Belém do Pará, em 1940. 
 
Morreu com mais de 100 anos de idade. Major Cornélio também fundou a cidade de Santo Antonio do Tauá, no Pará, conforme registram os anais da História, também dispostos em toda a internet. Com relação a Guerra do Paraguai, acho esse episódio deplorável, mas se ele foi considerado herói foi por um contexto daquela época. Teve os seus motivos. As demais fotografias são do marido de Maria Dolves: José Soares, ex-combatente, grande homem. 
OBS. A visita deu-se a exatos 12 meses, bem antes da Pandemia, por isso estamos sem máscaras.


 
 

domingo, 16 de agosto de 2020

Caningado!

CANINGADO! 

Dia desses alguém publicou um pequeno texto numa página do Facebook, sobre a palavra “caningado”. No caudal das reflexões, discorreu sobre uma velha estória - que todos conhecem - defendendo a tese de a palavra ter surgido a partir de um sargento norte-americano, por nome “Canningham”, que desembarcou no "Campo de Parnamirim" junto a milhares de patrícios, durante a Segunda Guerra Mundial para construir a Base Aérea Norte-Americana, hoje Base Aérea de Natal. A escolha desse ponto se deu porque o local era estratégico e mais próximo da África. Facilitaria os voos. 
Contam que - como não poderia ser diferente - Cunningham era muito exigente, e causava antipatia ferrenha aos nativos por ser metódico e perfeccionista. Vivia ralhando com a peonada potiguar que destoava dos norte-americanos pela total falta de qualificação profissional. Os pobres coitados eram “retirantes” dos sertões potiguares. Caíram em Paraná-Mirim em incontáveis “paus-de-arara”, desesperados em busca de emprego. Tempo difícil. Só entendiam de enxada. Isso nos idos de 1942, quando tudo era incomparavelmente mais precário. O que esperar de um magote de matutos que nunca tinha se ausentado um quilômetro da casa onde nasceu? Predominava o analfabetismo entre eles. 
Contam que Cunningham era tão chato que nem pernilongos queriam estar próximos dele. Por tal razão, quando os nativos se referiam ao chatão, diziam:
 
 - “lá vem aquele caninga dos diabos!”
 
Eles não sabiam pronunciar o nome na forma norte-americana, portanto assim o diziam. 
Pois então o autor do texto no Facebook contestou, com muita, propriedade a tal história. Disse que o vocábulo “caningado” não tem “nadas a ver” com o tal americano chato pra chuchu. Para legitimar sua tese, citou o texto de um personagem potiguar que já citara tal palavra nas primeiras décadas do século XX. Não me lembro neste momento quem foi exatamente o escritor, mas é fato. E contra fatos não há argumentos. 
Pois bem. Eis que no bojo dessas discussões bobinhas - e que não levam ninguém a lugar algum – tal qual a pontezinha da “Praça da Ribeira” - mas nos instigam a ringar - alguém entrou em contato comigo, desdizendo tudo isso, sugerindo que eu desdissesse as palavras do rapaz do Facebook. O jovem havia escrito um TCC, e defendido a história do Cunningham como fonte ebulidora do vocábulo "caningado", teimou que a palavra surgiu, sim, por intermédio do citado episódio. Esse povo tem a mania exaltada de endeusar a presença norte-americana por esses rincões. Parece até uma doutrina. Tudo bem que eles influenciaram “os bói”, “as bói” etc. Mas a palavra "caningado" não tem relação alguma com "Cunningham". Com muito cuidado, disse ao rapaz que já havia lido muita coisa antiga de autores norte-rio-grandense, e encontrado a palavra "caningado" em textos anteriores à construção da Base Aérea, portanto não podia desdizer o rapaz do Facebook. Percebi claramente que o jovem queria defender os seus brios por ter feito uma defesa sem ter pesquisado com mais profundidade. Embora naquele momento eu não me lembrava em que documento antigo eu havia lido a palavra “caningado”, apenas expliquei-lhe que ela foi parida aqui mesmo; pode até ter raiz lá dos detrazes da língua portuguesa, sei lá! Quem sabe vem de “cão”. Não o cachorro, mas o tinhoso mesmo! Pois seria “cão-ningado” com o sufixo funcionando a particípio, tipo "encapetADO", "endemoniADO", "empossADO" etc. Mas eu trouxe para o ringue, aliás, para o leitor, algo mais significativo e precioso. Trouxe o nosso genial Luís da Câmara Cascudo. Ele é mais um que nos presenteia com a palavra “caningado”, vinte e nove anos antes da chegada dos soldados do Tio Sam. Vejam o que ele escreveu em 1929, quando ninguém sonhara com a Segunda Guerra Mundial, a Base Aérea Norte-Americana, e tampouco com o “Cunningham”, que até pode ter existido, mas longe de ter sido a gênese dessa palavra, a qual mostra a magnífica força do regionalismo norte-rio-grandense. Leiamos o poema “Banzo”, que Câmara Cascudo escreveu na Revista de Antropofagia (ano I, n. 10, p. 1, fev.1929):
 
Subiu a toada
dos negros mocambos
Sahiu a mandinga
de pretos retintos
vestidos de ganga.
Quillengue, Loanda,
Basuto e Marvanda
fazendo munganga
tentando chamêgo
cantando a Changô.
Escudos de couro,
pandeiros, ingonos,
batuques e danças.
Palhoças pontudas
com ferros nas lanças.
Terreiros compridos
de barro batido.
Cantigas e guerras
com sobas distantes.
Caçada ao leão...
Caninga de choro
zoada de grillo.
Campina de cana
com água tranquila...
a voz do feitor.
Mucanas cafuzas
moleques zarombos.
Na noite retinta
a toada subia
dos negros mocambos... 
 
Pois bem, essa é a palavra "caningado", registrado por Cascudo, e que dirime a ideia de ter surgido na Base Aérea. Caningado é palavra velha como lajeiro. Creio que esse vocábulo seja potiguar mesmo. Nunca o escutei em outro estado. A gente brinca, põe até um ringue na história, mas é tudo por brincadeira. O que mais importa disso tudo é estarmos aqui brincando com a linguagem...
 
(Dedicado ao poeta, músico e escrito Ismael Dumangue)