Por mais que quem não conheça a intelectual Nísia
Floresta hoje, e possa vê-la sob os holofotes de calúnias, preconceitos e
equívocos propagados ao longo do
tempo, dispostos no imaginário popular e até mesmo em jornais e livros, não
estranharia que alguém estranhasse quando afirmo que ela era católica, moralista
e conservadora.
Parece uma antítese, afinal ela causou
"escândalo" na pequenina Vila Imperial de Papary quando, aos 13 anos
de idade escolheu por livre e espontânea vontade, o seu marido e, por livre e
espontânea vontade, separou-se
poucos meses depois. Isso não combina com moralismo, conservadorismo e
catolicismo, mas deixando esses detalhes para outro texto, vamos conversar
sobre a Nísia Floresta católica apostólica romana.
Por tudo o que Nísia Floresta deixou escrito em livros
e jornais, sem dúvida alguma Nísia
Floresta era católica. Ela foi instruída cristãmente e, para surpresa de muitos, alguns de seus livros trazem
referências bíblicas, inclusive
encontros que ela teve com diversas autoridades católicas em suas
viagens, inclusive, como escrevi neste mesmo blog,
o seu encontro com o papa Pio IX.
Mas não se enganem, longe de uma fiel cegamente
obediente, ela guardava reservas
e, como lhe era peculiar, olhava como águia e observava com acuidade, ouvia as
entrelinhas, muito embora muitas práticas eram tão claras e óbvias que não via
quem não queria.
Ela diferiu de uma pessoa católica comum porque viu,
criticou e escreveu o que viu.
Deixar escrito é muita responsabilidade. Ela era uma católica reflexiva e crítica, o que não poderia ser diferente
para uma intelectual. Estava muito
longe dela a adesão acrítica, apologética e fanática.
O seu catolicismo é evidente em vários momentos de sua
obra, e darei aqui alguns breves exemplos.
Nos seus escritos de cunho autobiográfico e nos diários de viagem, acima de
tudo Três anos na Itália, ela conta alguns episódios ocorridos no
mundo católico e revela-se uma pessoa aberta às práticas culturais do
catolicismo europeu daquele tempo, inclusive uma audiência com o Papa Pio IX e
que se fez acompanhar da filha Lívia Augusta de Faria Rocha.
Seu relato e outros registros escritos de próprio
punho a partir de diversas viagens são
fontes claras do seu catolicismo. Se isso não deixar evidente o seu lado
religioso, o que mais precisará?
No livro Conselhos à minha filha (escrito em homenagem ao aniversário
da filha) encontramos várias citações bíblicas e morais, evidenciando seu
profundo conhecimento da Bíblia Sagrada. A partir desse conhecimento cristão,
ela faz várias recomendações à filha, apresentando-os como virtudes.
Há um trecho em que ela adverte Lívia sobre a vaidade,
e para isso busca em Provérbios 16:18 a
seguinte orientação “a soberba precede a ruína”. Numa outra situação ela se
serve de Mateus 5:4 quando é dito que “bem aventurados os que choram, porque
serão consolados”.
As citações bíblicas usadas por Nísia não são por mera
casualidade, há na Nísia-Mãe uma
autoridade moral em que ela se serve da tradição espiritual cristã para
aconselhar maternalmente a filha.
Suas referências sagradas e sua narrativa cristã,
deixa nítido o quanto ela era
familiarizada ao universo católico, portanto para uma mãe moralista que foi
Nísia, ao contrário de muitos julgamentos contrários (por ignorância), ela
buscava na tradição o seu recurso narrativo e formador.
As escolas católicas de Mondovi, na Itália, adotaram Conselhos à minha filha como livro didático. E o que isso significa senão uma
consonância dos padres católicos com o seu pensamento. Mas enquanto ela
se mostra católica, principalmente nessa obra, outras obras trarão críticas
pesadas à Igreja católica e as práticas clericais. E ela poderia nem ter
deixado isso escrito, mas o fez, e o fez com a intenção de que o futuro não a
julgasse como ingênua.
Num dos seus textos ela diz que “o luxo que rodeia
certos prelados contrasta com a
humildade pregada no Evangelho”, e denuncia a vida nababesca de muitos padres.
Ainda em Conselhos à minha filha, ela referencia Provérbios e o
Sermão da Montanha.
No ensaio Um passeio ao aqueduto da Carioca, em que ela se faz
cicerone de um turista, ao passar por um convento de freiras ela diz “Deus não
criou a mulher para viver encerrada em conventos, mas para exercer sua missão
na sociedade”. Ela entendia que aquelas religiosas enclausuradas seriam muito
mais úteis vivendo no meio do povo, ajudando-os de forma concreta. Isso,
obviamente, não agradou os religiosos que a leram (mas ela não estava nem aí!).
Na obra Três anos na Itália ela descreve o Vaticano e
cita diversas figuras religiosas, eventos católicos e relata minuciosamente o
seu encontro com o Papa Pio IX, o qual perguntou-lhe se ela não tinha interesse
em morar na Itália. Ela, inclusive, critica o comportamento inconveniente de
algumas mulheres da realeza que estavam no local para se encontrar com o Papa,
digamos um comportamento desprovido da etiqueta que costumamos achar que essas
senhoras priorizam.
Nísia também fez críticas ao celibato dos padres,
alegando que a igreja exigia uma
prática difícil e desnecessária, e alegava que muitos padres não cumpriam tal regra.
Tudo isso parece contradição, afinal, como alguém
critica uma religião que aparenta seguir? Mas não é bem assim. Na
verdade, ela estava apenas dizendo que a fé não pode estar fora da realidade
social, nem transmutada num mero formalismo imposto por religião, contrariando
a natureza do homem.
Tudo isso nos revela uma Nísia que não se ocultou
atrás do dogma a partir do momento que enxerga injustiças e hipocrisias sociais
em silêncio.
No frigir dos ovos, ao olharmos o lado religioso de
Nísia, vemos uma mulher católica, sim, mas capaz da autocrítica. Não era
alienada e nem encobria os podres daquilo que analisava como contraditório,
arbitrário ou errado.
O catolicismo nela provinha de sua formação cristã,
inclusive de todos os seus ancestrais: pai,
mãe, tias, tios etc. Desse modo vemos uma Nísia cujas convicções morais
pautaram-se no cristianismo.
Sua sensibilidade, seu olhar jornalístico de
observadora social não a impediram
de pensar - e deixar escrito - sua capacidade de se confrontar com a própria
igreja que segue no momento em que vê incongruências entre o que se prega nos
altares e o que se vê no cotidiano.
Nesse sentido muito sensato, Nísia não está sozinha,
pois era o perfil comum a muitos
escritores do seu tempo, os quais, iguais a ela, convertiam a sua experiência
pessoais e sua crítica social em produto literário e argumentativo. E assim
tudo se transformava em material para textos jornalísticos, poemas, poesias,
crônicas etc.
Nísia não renega o catolicismo, mas expõe que os
ensinamentos cristãos estejam
alinhados à vida dos que pregam o Evangelho e harmonizados com a justiça e à
coerência moral.
Nísia Floresta Brasileira Augusta era católica, mas
uma católica que se valia de um catolicismo reflexivo, consciente e crítico.
De Conselhos à minha filha às observações vivas de Três anos na Itália e
Um Passeio ao aqueduto da carioca, por exemplo, constatamos
isso. Mas sem impedir sua
coragem intelectual para mostrar as falhas e reivindicar coerência e ética.
Essa moeda de duas faces - fé e crítica - revelam sua grandeza como escritora
com visão civilizada e admirável. 22.8.2025, 01h50.
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