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Mário de Andrade ao lado do monumento de Nísia Floresta em 1929
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ACTA NOTURNA – MÁRIO DE ANDRADE
EM NÍSIA FLORESTA
Há 96 anos, o intelectual modernista Mário de Andrade (1893-1945) esteve em Papary (Nísia Floresta). A descoberta ou a revelação de uma nova fotografia
relacionada à história de Nísia Floresta e de qualquer município, representa sempre um acontecimento de
grande relevância para o município. Cada imagem incorporada ao acervo
fotográfico local é uma peça que ajuda a recompor a memória coletiva,
permitindo-nos enxergar, com mais nitidez, o passado que nos constitui.
Trata-se de um patrimônio visual que transcende o
valor estético: ele documenta, comprova, emociona e educa. E esse valor se
amplia sobremaneira quando percebemos que figuras notáveis da história do país
estiveram em Nísia Floresta, visitaram seus lugares simbólicos e se fizeram
fotografar diante do monumento erguido em homenagem à sua mais ilustre filha.
Ver tais personalidades ali, entre o túmulo e a paisagem de Papary, é como
testemunhar o encontro da história local com a história nacional, num gesto
silencioso, mas profundamente revelador.
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Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó (1835-1855) fotografada pelo intelectual modernista Mário de Andrade em 1929. Obs. Do lado esquerdo, vemos uma sequência de casarios. Do lado direito ainda não havia moradia tão 'colada' à matriz porque era o cemitério original. Adiante, vemos o cruzeiro (atualmente inexistente). |
Do final de 1928 a fevereiro de 1929, o intelectual
modernista Mário de Andrade fez um amplo turismo de pesquisa no Rio Grande do Norte. À época, ele tinha 36
anos. Seus estudos tiveram um caráter etnográfico e jornalístico, que
futuramente se transformaria na obra O Turista Aprendiz, hoje preservada
no acervo da Universidade de São Paulo (USP). Nessa obra, Mário documenta seus
momentos mais importantes sobre o convívio com a intelectualidade modernista e
a cultura popular nordestina.
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Casario no centro de Papary (Nísia Floresta) fotografado pelo intelectual modernista Mário de Andrade em 1929. |
No próprio diário, ele diz que sua viagem visava
“estudos literários” e registrar manifestações culturais populares do Nordeste.
Registrou músicas, danças, festas, tradições, costumes e expressões artísticas
que jamais encontraria no meio acadêmico e no universo erudito das grandes
metrópoles, mas sabia que tudo aquilo constituía a essência viva da identidade
nacional e precisava ser registrado.
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Casario no centro de Papary (Nísia Floresta) fotografado pelo intelectual modernista Mário de Andrade em 1929. |
Esse “turismo acadêmico” partiu de uma iniciativa
pessoal, cujo financiamento foi patrocinado em parte pelas crônicas que ele
escrevia em diversos jornais e pelo apoio que recebia em todos os lugares que
visitou. Seus registros tornaram-se fontes preciosas para estudos futuros e,
até hoje, são fundamentais para o entendimento do patrimônio material e
imaterial do Rio Grande do Norte.
Mário de Andrade chegou a Natal por ferrovia, onde
foi calorosamente recepcionado. A partir daqui, ele programou suas viagens pelo
litoral e pelo sertão, cujo meio de transporte eram automóveis cedidos por
anfitriões e amigos. O grande mestre Luís
da Câmara Cascudo (1898-1986), que à época tinha 31 anos de idade,
hospedou-o em sua residência e fez-se de cicerone, acompanhando-o em quase
todos os lugares, além de Antônio Bento
(1902-1988) e outras personalidades locais - prefeitos, padres e
senhores de engenho. Mário de Andrade era uma novidade, e isso talvez tenha
revestido a todos de um espírito especial de anfitriões.

Mário visitou Macau, Assu, Caraúbas, Martins,
Caicó, Currais Novos, Parelhas, Lajes, Arez, Canguaretama, Goianinha, Papary
(Nísia Floresta) e São José de Mipibu. Inclusive, registrou a “Intendência
Municipal” e algumas imagens do centro, encantando-se com a terra do açúcar
amargo. Nos municípios, voltava-se para o que de mais significativo havia - por
exemplo, as salinas de Macau, os carnaubais do sertão, os engenhos de Goianinha -, e conheceu o célebre coquista Chico
Antônio (1904 -?), que o fascinou. Em Arês, Canguaretama e Nísia
Floresta, ficou impressionado com os frontões dos cemitérios, que registrou
como “exemplos de arte popular”.
Muito culto, Mário sabia que estava na terra onde
nasceu a intelectual Nísia Floresta
Brasileira Augusta (1810-1885): “a mais notável mulher de letras do
Brasil”, como escreveu Oliveira Lima
(1867-1928). Portanto, fez questão de visitar Papary (hoje Nísia Floresta)
e levar uma fotografia ao lado do túmulo. As fotografias - que hoje, às
vésperas do aniversário de 215 anos do nascimento de Nísia Floresta, apresento
ao município pela primeira vez - consistem em ícones que agregam um valor muito
especial a todos.
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Adiante, o túmulo (1954), atrás, o monumento (1909) Fotografia: L.C.Freire |
Saber que Mário de Andrade esteve ali, leu as
placas de bronze em língua francesa e portuguesa e, com certeza, teve Nísia
como tema de uma boa conversa com Câmara Cascudo, é simplesmente
extraordinário, pois impregna o local de um ar todo especial. E quando sabemos
que já cogitaram remover o monumento e o túmulo dali, transferindo-os para um
terreno na entrada do município, é de se ficar horrorizado.
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Fotografia: L.C.Freire |
Ouvi essa divagação maluca dentro de respeitável instituição do estado, e dito justamente a mim por um intelectual, concordando com os dois autores da proposta: um dele é escritor, o outro, dono de um desses cemitérios chiques, que só enterram ricos. Obviamente que essa maluquice tinha como propósito fazer um marketing - não sobre a pessoa de Nísia Floresta - obviamente -, mas sobre os famosos cemitérios do empresário que iria patrocinar o tal monumento.
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Fotografia: L.C.Freire |
Senti, claramente, que não havia intenção alguma de enaltecer a intelectual Nísia Floresta, até porque essas pessoas nunca fizeram nada em prol da história, da memória e nem do local onde está o túmulo e monumento de Nísia Floresta que, inclusive esteve abandonado até poucos meses. Ainda bem que já
demoveram essa ideia bizarra: afinal, exatamente nesse local, Nísia Floresta
nasceu e viveu até os 13 anos. O local é um marco de onde alçou voo para o mundo, espalhando civilidade, um dos maiores nomes do Brasil. A aura histórica dessa localidade legitima os
nisiaflorestenses a protestar sempre contra tal proposta, portanto fica o registro.
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Fotografia: L.C.Freire |
Construir outro monumento a Nísia Floresta no município, em outro lugar, é
compreensível e não vejo problema algum, mas arrancar dali o original seria um
profundo desrespeito, gesto de quem não tem o que fazer. E AQUI ESTOU PARA
MOVER CÉUS E TERRAS PARA IMPEDIR. Que construam qualquer obra em qualquer lugar, mas demolir a história genuína, basta. E sei que o professor Jorge Januário de Carvalho, um guardião daquele local, se uniria a mim para tal, afinal ele traz uma história de quase meio século de respeito e valorização da memória de Nísia Floresta, fato que testemunho há 33 anos.
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O Sítio Floresta, onde Nísia nasceu, guarda os semblantes de Henrique Castriciano de Souza (1874-1947),
que esteve ali em 1913, e, quatro anos antes, de Câmara Cascudo, Alberto Maranhão (1872-1944), Monsenhor Antônio Xavier de Paiva (1846–1919),
Cel. Francisco de Oliveira (1832-1916) - pai de Cascudo, Cel José Joaquim de Carvalho e Araújo (1853- ?) - e outras figuras à ocasião da inauguração do monumento. E o
próprio Mário de Andrade, em 1929. Portanto, jamais devemos apagar essa aura
histórica, se bem que só o monumento e o túmulo - por si - bastam e justificam
sua permanência ad aeternum ali.
Enfim, dado o recado, vamos retomar o fio da meada. Em Papary, Mário de Andrade apreciou almoço com
cajus e cocos verdes: “O horizonte de repente encurta bem pra direita e cai da
banda de lá. Na barra dele o matinho ralo, certas feitas, desaparece numa
careca de duna. São as praias, é o mar-de-punga ou-lê-lê-lê, é o verde mar de
navegar!... E por hora e meia assim, ventada, despoeirada, o trem de ferro que
vem de Pernambuco, vai fazendo ‘vuco, vuco’ e entra em Natal. Pontualmente.
Quatorze horas”, escreveu.
Ao registrar suas impressões sobre Papary (hoje
Nísia Floresta), Mário escreveu: “Papari lembra também a espantosa Nísia
Floresta […], que mulher! Nasceu em Papari e o monumentinho comemora a amiga de
Augusto Comte (1798-1857), Giuseppe Mazzini (1805-1872),
colaboradora da unificação italiana, reivindicadora dos direitos da mulher,
viajante na Alemanha, o diabo!”. Ao usar a expressão “monumentinho”, julgamos
que ele o considerou modesto diante da grandeza da homenageada. Suas palavras
traduzem a intensidade de sua admiração pela intelectual potiguar.
O monumento de Nísia Floresta foi construído em
1909, na ocasião do que então se julgou ser o centenário do nascimento de Nísia
(o que, na verdade, seria 1810). O projeto foi uma iniciativa do governador Alberto Maranhão (1872-1944), em
parceria com o Congresso Literário formado por diversos intelectuais. A
presença de Mário de Andrade no monumento de Nísia Floresta é icônica.
Essa visita poderia meramente testemunhar um espaço
de memória e, também, representar uma ponte entre a tradição oitocentista - simbolizada por Nísia - e o modernismo do qual ele era expoente. Mas a imagem
representa muito mais. Do mesmo modo em que Mário estava inserido num projeto
visionário com o seu Modernismo, Nísia viveu, intensa e amplamente, diversas
ideias modernistas quase cem anos antes. Ao lembrar-se dela em Papary, Mário
reconhecia que a intelectualidade do Brasil profundo também podia ser feminina,
ousada e cosmopolita.
Em São José de Mipibu, município vizinho, a visita
de Mário foi marcada por anotações sensíveis. Ele encantou-se com a Casa da
Intendência (como se vê escrito em alto-relevo na própria parede) e também fez
questão de fotografá-la em vários ângulos. Comentou tratar-se de “uma
preciosidade arquitetônica”, enaltecendo a harmonia e a autenticidade das
construções impressionantes daquele município.
O conjunto de suas impressões, vistas em textos e
imagens, resultou em um legado que ultrapassa a simples narrativa de viagem.
Mário deixou registros que se tornaram fontes fundamentais para os estudos do
patrimônio cultural do Rio Grande do Norte. Ao destacar Papary e evocar Nísia
Floresta como “espantosa”, ele não apenas reconheceu a grandeza dessa
intelectual, mas também inscreveu o nome dela em um dos projetos mais
ambiciosos da modernidade brasileira: a busca por uma identidade cultural
plural, viva e enraizada no povo - o que tanto combinaria com a nossa Nísia, se
viva estivesse.
Creio que o “encontro” entre Mário e Nísia, diante
de seu “monumentinho” em Papary, simboliza a continuidade de uma tradição
intelectual que liga o século XIX ao modernismo e que permanece como referência
para o Brasil contemporâneo.
Pois bem, amanhã é o aniversário de nascimento da mulher Nísia Floresta, e eis que quem ganha o presente, é a cidade de Nísia Floresta, ou melhor, nós...
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Igreja Matriz de Sant'Ana e São Joaquim, em São José de Mipibu (RN), fotografada pelo intelectual modernista Mário de Andrade em 1929.
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Igreja Matriz de São João Batista em Arês (RN), fotografada pelo intelectual modernista Mário de Andrade em 1929.
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Obs. A mesma foto de capa da postagem. Precisei cortar (a de cima) por questão estética na postagem do blog. |
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Intendência de São José de Mipibu em 1929, fotografada por Mário de Andrade. Originalmente esse belo prédio foi a "Casa de Câmara e Cadeia" (foi demolido)
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Intendência de São José de Mipibu em 1929, fotografada por Mário de Andrade. Originalmente esse belo prédio foi a "Casa de Câmara e Cadeia" (foi demolido) |
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Intendência de São José de Mipibu em 1929, fotografada por Mário de Andrade. Originalmente esse belo prédio foi a "Casa de Câmara e Cadeia" (foi demolido) |
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Intendência de São José de Mipibu em 1929, fotografada por Mário de Andrade. Originalmente esse belo prédio foi a "Casa de Câmara e Cadeia" (foi demolido). Vê-se, atrás, um prédio icônico (demolido). |
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Frontão do Cemitério de Goianinha (RN), fotografado por Mário de Andrade em 1929. |
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Frontão do Cemitério de Arês (RN), fotografado por Mário de Andrade em 1929 |
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Frontão do Cemitério de Arês (RN), fotografado por Mário de Andrade em 1929 |
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Fonte (das fotografias feitas por Mário de Andrade):
- Mário de Andrade.Fotógrafo e Turista Aprendiz.
- Mário de Andrade. O Turista Aprendiz.
- Acervos da Universidade de São Paulo (USP).
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