ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO COMIGO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. O pelo formulário no próprio blog. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. O título NISIAFLORESTAPORLUISCARLOSFREIRE foi escolhido pelo fato de ao autor estudar a vida e a obra de Nísia Floresta desde 1992 e usar esse equipamento para escrever sobre a referida personagem. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto trechos com menção da fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

sábado, 5 de abril de 2025

“O ABISMO SOB AS FLORES DA CIVILIZAÇÃO” E AS FESTAS JUNINAS NO RIO GRANDE DO NORTE, O QUE NÍSIA FLORESTA NOS ENSINA...

 


“O ABISMO SOB AS FLORES DA CIVILIZAÇÃO” E AS FESTAS JUNINAS NO RIO GRANDE DO NORTE, O QUE NÍSIA FLORESTA NOS ENSINA...

Antes de entramos no âmbito da reflexão, leiamos esse trecho do ensaio ‘O abismo sob as flores da civilização’ (Il L’abissotto i Fiori dela civilitá), escrito por Nísia Floresta, parte da obra ‘Cintilações de uma alma brasileira’ (Scintilled’um’anima brasiliana’, publicados originalmente Florença, Itália no ano de 1859.

"A música, esta celestial inspiração de almas poéticas e religiosas, mas tão profanada desde que se fez usar para matar alegremente os homens, e para depravar a mulher, atira e encilha os dois sexos numa dança desenfreada, à qual comanda o gênio da presente corrupção.

A desfaçatez, a luxúria, os excessos dos sentidos disputam o reino de dissolução, envolvendo num véu transparente a ruína dos povos; ruína que a civilização aprova e fomenta num contrassenso que horroriza o pensador, e lança nos ânimos gentis a dor e o desconforto!

Após muitas libações, a dança; após a dança, o passeio entre os verdores de inumeráveis alamedas. E depois, ainda, o infernal turbilhão de ‘valse’; onde extenua-se o vigor do corpo, quando aquele da alma já se dissipou.

Ali passeiam cabeças vazias; aqui lábios impuros pronunciam fugidiamente aquelas palavras tão poderosas sobre o pudico lábio da mulher. Um pouco apartado, ao lado de uma Megera enguirlandada, senta-se um jovem, ou melhor, um espectro vivente, que arrasta-se ele também à ‘Foire au plaisir’ (1), quando a morte já imprimiu o fatal sigilo sobre sua fronte. – O infeliz ilude-se! A sorte pôs ao seu lado, em vez de um anjo talvez abandonado, um demônio que o enfeitiça; precipitando-o para um fim prematuro, após ter-lhe desfibrado o corpo e a alma...” 1- Feira de diversões.

Nísia costumava jogar no papel muito do que testemunhava. Tudo era matéria prima para crônica. Ela presenciou a cena acima às margens do Sena, “para os lados de Asniére”.

Embora eu transcrevi o trecho completo, minhas observações se detém apenas aos quatro primeiros parágrafos, tendo em vista que o restante é óbvio demais. Para o bom entendedor...

Pois bem, já estão aparecendo os cartazes de propaganda do São João dos municípios do Rio Grande do Norte e isso traz muitas mensagens sublimares. É sobre isso que ontem eu conversava com uma pessoa que trabalha com cultura, inclusive citei essa passagem escrita por Nísia, tendo me lembrado dela. O assunto foi sobre a descaracterização das festas juninas do Nordeste. Aqui me atenho ao Rio Grande do Norte para falar com propriedade. Já ressalvo que não se trata de congelar o passado, engessando-o, tendo em vista que a civilização anda para frente.  Também não estou propondo que as festas sejam festas catequéticas. Refiro-me a conservar intacta a essência das coisas da terra (como os gaúchos fazem). Lá eles dizem “Mateus, primeiros os teus”. (Certíssimos!).

Você percebe que esse texto de Nísia Floresta parece escrito hoje. É atual demais. A postura de estranhar certos comportamentos modernos faz parte da história da humanidade. Antes de Cristo há registros de sábios criticando o comportamento dos jovens. Isso sempre existirá. O que farei agora, inclusive, é nada mais que isso. O que Nísia Floresta fez, foi nada mais que exercer o seu direito de estranhar o que viu.

Essa coisa de estranhar o comportamento da sociedade é parecido com a rotação da Terra. Não para. O tempo vai passando e as críticas aos efeitos do Sol vão acontecendo. É um círculo que não cessa.

Mas o que ‘O Abismo sobre as flores da civilização’ de Nísia Floresta tem a ver com isso tudo. O ensaio é dedicado aos jovens. Vamos entender isso tudo a partir da significação do título. “O ABISMO” se refere aos perigos aos quais os jovens estão sujeitos se se permitirem o mal (má companhia, por exemplo). “AS FLORES” são os próprios jovens. “AS FLORES” são as virtudes; tudo aquilo de bom que um jovem pode trazer dentro de si e praticar enquanto civilização. E a civilização? O que significa. “CIVILIZAÇÃO” é a humanidade.

Mas vamos retomar a conversa sobre Cultura. Eu defendi a ideia de que uma Festa Junina, em especial, é algo muito forte no Rio Grande do Norte. Ela está na alma do povo potiguar. As coisas juninas transcendem, estão no ar. As pessoas praticam as festas juninas dentro de casa, no quintal, na calçada, no bairro, no comércio formal e informal, nos festejos públicos. É uma fusão de tradições em que encontramos a gastronomia, os festejos, a linguagem, as bebidas, hábitos, religiosidade, musicalidade, enfim, uma gama de coisas.

Do mesmo modo que lá em cima Nísia Floresta critica a forma como a mulher é tratada nas músicas, o comportamento dos jovens nas festas públicas, devemos fazer agora. Vamos rever o que ela escreveu: “A música, esta celestial inspiração de almas poéticas e religiosas, mas tão profanada desde que se fez usar para matar alegremente os homens, e para depravar a mulher, atira e encilha os dois sexos numa dança desenfreada, à qual comanda o gênio da presente corrupção”.

É isso! Se há 166 anos alguém se horrorizou com o que viu em plena França, imagine hoje. Não vou entrar em detalhes. Basta ver os vídeos que têm em abundância na internet, pós-festas. Creio que pai algum gostaria de saber que sua filha ou o seu filho se submetem a tanto vexame (drogas, comas alcoólicos, estupros, brigas, acidentes etc).

O outro detalhe da minha conversa se detém ao comportamento da maioria das prefeituras de Natal e cidades vizinhas, que tem a bizarrice de trazer cantores sertanejos para o São João do Nordeste. O que Gustavo Lima e Luan Santana têm – por exemplo – com o São João do Rio Grande do Norte? Na verdade, eles estão para a Festa de Peão de Boiadeiro, de Barretos, interior de São Paulo, como Elba Ramalho, Alceu Valença, Zé Ramalho, João Gomes, Jorge de Altinho, Petrúcio Amorim, Flávio José, Zé Vaqueiro, Dorgival Dantas e uma porção de outros artistas incríveis estão para o São João do Nordeste. São costumes e momentos totalmente opostos.

Não é preconceito, bairrismo ou algo do tipo. É sensatez. Principalmente quando se refere às instituições públicas que promovem a Cultura (Secretarias, Fundações etc). Esses órgãos de governo tem o dever moral de serem os primeiros a preservar a sua cultura, ao invés de usar a máquina pública ao seu gosto pessoal. Alguém já viu Elba Ramalho ou João Gomes se apresentando na Festa de Peão de Boiadeiro de Barretos? (Nunca!). Aquilo pertence a eles. É a essência deles. Da mesma forma o São João do Nordeste que tem tudo a ver com a nata da música nordestina, ao zabumba, ao pandeiro e à sanfona.

Assim como no Brasil há espaço para tudo, as festas do Nordeste tem lugar para todos, MAS NO MOMENTO CERTO. São João são outros quinhentos! O problema é que as instituições públicas de cultura parecem não saber disso. E isso é uma forma de corrupção, pois quando os gestores negam ao seu povo o fomento às suas raízes culturais nos momentos certos, eles estão corrompendo a sociedade.

É muito injusto ver as nossas crianças e os nossos jovens perdendo a sua identidade cultural ou entendendo as festas públicas como espaços de degradação.

Pois bem, se você é daquelas pessoas que sentem saudade da beleza, da poesia, da amorosidade, da presença das famílias, da alegria de pobres e ricos juntos, felizes, do respeito nos festejos juninos como um todo – sem caretice – desde a sua estruturação às apresentações artísticas, o que você faz enquanto povo para trazer de volta essa essência?

Que tal pensar? Pensar e por em prática ideias e alternativas para que a Nordestinidade volte aos bairros, às vilas, às cidades. Que os artistas da terra sejam respeitados, que sejam remunerados com justiça, assim como os sertanejos são, seja aqui ou no Sudeste.

Quando Nísia Floresta critica a falta de poesia na aura cultural, referindo-se às músicas que trazem letras e coreografias cheias de vulgaridade, quando ela critica os equívocos nos festejos públicos, quando ela fala de corrupção, ela sente a ausência da qualidade nas letras das músicas, ela fala do desconforto que muitos sentem nos festejos que deveriam fazer o contrário.

Para quem não entendeu: não sou contra os sertanejos nem a outros ritmos, inclusive nasci num estado em que as emissoras de rádio tocam sertanejo o dia inteiro – sou fã de Milionário e José Rico e Tonico e Tinoco e uma porção de artistas sertanejos de verdade –, mas os sertanejos devem ter lugar nas festas nordestinas que os cabem. O São João, não! O São João é quando o povo do Nordeste deve recarregar as suas baterias culturais, renovando-as, transmitindo-as às novas gerações... Que tal pensar!

terça-feira, 1 de abril de 2025

Há lugares em Natal que mais parecem saídos de um filme de terror...



Hoje surpreendi-me quando vi essa fotografia (à esquerda) no grupo “Natal não há tal”, de João Gothardo Emerenciano. É o prédio da Fundação José Augusto, na sua versão original, quando funcionou ali o Grupo Escolar Antonio de Souza, na década de 60, na rua Jundiaí. Eu conhecia essa versão original do prédio em outras imagens antigas, mas essa fotografia colorizada saltou a beleza arquitetônica desse prédio de maneira muito especial, por sinal, belíssimo. 

Chamo a atenção sobre o que se tornou esse prédio, a começar pelo atual frontão horroroso e de extremo mau gosto. Sobre sua arquitetura atual, poderíamos dizer assim “Por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento”, mas não cabe aqui. Como palestrava a minha mãe, “O pão bolorento é por fora e por dentro”. O aspecto interno da Fundação José Augusto desde sempre é excelente para ambientar um filme de terror de Stephen King. Pense num prédio que deprime e entristece quem ali entra. 

Confesso que quando vou ali sinto uma coisa estranha. O que surpreende é que entra e sai governadores e ninguém arranca a morbidez de sua arquitetura interna. NÃO DIRIA DESCARACTERIZAR AINDA MAIS, MAS DAR A APARÊNCIA MERECIDA E PERTINENTE A UM PRÉDIO QUE É O PILAR DA CULTURA DO RIO GRANDE DO NORTE. Imagine se não fosse! 

Há pessoas equivocadas que entendem que restaurar, preservar elementos arquitetônicos antigos é engessar/congelar o passado. Nada disso! É História. É Memória. É Cultura! E é possível tornar um prédio aparentemente aterrorizante num joia atual. É só querer!

Até o presente, nunca entrou um governo que restaurasse esse prédio no aspecto de torná-lo um ambiente agradável aos olhos e ao espírito. E olhe que se trata de uma instituição em que 99 por cento de quem entra ali é artista ou mexe com cultura, uma classe que nos liga à alegria, cores, dança, luzes, reflexos, festa, alvura... Mas não! É um lugar que, pelo menos a mim, parece carregado. Parece aquele conto de Poe. Como se evolasse miasmas de suas paredes, como fosse ruir... 

Se eu fosse governador do Rio Grande do Norte devolveria as características arquitetônicas originais de todo o prédio, até porque é uma poesia da construção. Ou melhor, devolveria as características originais dos mais significativos prédios da Natal do século XIX e XX que sobraram espalhados pela Ribeira e Cidade Alta. Quando não fosse possível a alguns, devolveria as fachadas originais, tal qual foi no passado. Seria prioridade. Devolveria todos os coretos originais das praças. Devolveria as características originais do Atheneu, dos célebres cinemas do centro e de tantos poemas arquitetônicos que ainda resistem na Ribeira e na Cidade Alta, deteriorados, descaracterizados, mexidos por gente sem noção. É tão fácil. É só querer. 

Esses prédios precisam ser ocupados por pequenas secretarias. Basta de alugar prédios de pessoas particulares. Logicamente que não há como restaurar sem inserir alguns elementos modernos como sistema de ar-condicionado, iluminação de led etc, mas há como fazer algo belo e moderno dentro do antigo. Um engenheiro e um arquiteto sério faria isso como quem compra goma em feira. E trago esse mesmo raciocínio no que se refere ao centro da Cidade Alta (outro filme de terror). 

Quem tem coragem de andar neste exato momento (20h06) na Praça João Maria? E na Ribeira? Tem que ser feito algo nesse aspecto. Nem que, de início, perfilassem centenas de postes altíssimos de luz de led nessas áreas, tornando tudo um dia, como se o sol fosse. Luz, depois da educação, é o melhor remédio contra bandidagem, portanto trago essa luz, a qual gostaria que jorrasse onde os miasmas existem...


domingo, 30 de março de 2025

Memórias de Alysgardênia C. M.F. Durante o Golpe Militar de 1964


O Golpe Militar de 1964

Era uma tarde aparentemente comum de 1964. Sessenta e um anos se passaram desde então, mas a lembrança daquele dia permanece viva, tatuada na memória de Alysgardênia como um eco distante e doloroso de um tempo sombrio (Essa história foi vivida por minha esposa e sempre há contextos em que ela aparece. Até hoje ela sente desconforto ao contá-la, mas entendo que é necessário jogar holofotes sobre a mesma, para que os jovens, principalmente, conheçam e saibam quão aterrorizante foi a Ditadura Militar no Brasil, essa página deplorável e - absurdamente - reivindicada por algumas pessoas insanas nesse último governo em que vimos o ex-presidente elogiar o maior torturador do Brasil e seu filho reivindicar o AI-5, alegando que com um cabo e um soldado é possível fechar o Congresso acional)... Vamos à História...

Dona Maria J. Albuquerque. M. seguia sua rotina habitual: dirigia-se ao Colégio Lins de Vasconcelos, na Praça dos Três Poderes, no coração de João Pessoa, para buscar suas filhas, Alysgardênia e Geuma, de cinco e quatro anos respectivamente. A praça, imponente e serena, abrigava o Palácio do Governo, o Tribunal de Justiça e a Assembleia Legislativa. O centro nervoso da capital.

Palácio da Redenção (Palácio do Governo), João Pessoa, PB, onde elas se protegeram.

Nos dias em que o tempo permitia, a jovem mãe transformava essa obrigação diária em um momento especial (Coisa de mãe). Após a escola, levava as meninas à sorveteria. Em seguida, sentavam-se nos bancos de ferro torneado, à sombra da majestosa figueira que dominava o cenário, enquanto dividiam pipocas e risadas inocentes. Era dia de alegria e d. Maria J. tinha o hábito incomum de registrar momentos triviais de sua vida, portanto há imagens do dia em que se passou o episódio que será narrado  a seguir.

Dona Maria J. com as filhas Geuma (à esquerda) e Alysgardênia no fatídico dia que em João Pessoa estourou a Ditadura Militar, no mês de abril de 1964.

Naquela tarde, no entanto, a paz costumeira foi abruptamente rompida. Ao cruzarem a Praça dos Três Poderes, encontraram-se de repente no epicentro de uma tempestade política. Aquilo surgiu como um passe de mágica. Uma multidão, tomada por fervor e indignação, protestava contra a Ditadura Militar que se instalava no Brasil. Gritos ecoavam, palavras de ordem eram lançadas ao vento, e um caixão - símbolo da morte da democracia - ardia em chamas. Vidraças estilhaçavam-se, objetos voavam contra as fachadas dos edifícios, pessoas corriam para todos os lados e o caos se espalhava como um incêndio incontrolável.

O terror se instalou nos olhos de Alysgardênia e Geuma. As pequenas começaram a chorar, agarrando-se à mãe, que, por sua vez, sentia o coração pulsar descompassado. Para ela, tudo aquilo era um pesadelo acordado. Foi nesse instante que, como um anjo surgido do céu, apareceu um homem. Ele vestia o uniforme que ela percebeu se tratar de funcionário do Palácio do Governo. Percebendo o pavor da jovem mãe e das crianças, ele se aproximou rapidamente. Identificou-se, orientando-a a correr com as filhas para dentro do Palácio, que logo foi fechado às pressas.

Dona Maria J. com as filhas Geuma (à esquerda) e Alysgardênia no fatídico dia que em João Pessoa estourou a Ditadura Militar, no mês de abril de 1964.

Lá dentro, abaixadas atrás de um sofá no vasto saguão envidraçado, mesmo resguardadas, sentiram-se vulneráveis, expostas a um cenário de guerra. Lá fora, tiros ressoavam, gritos se misturavam ao som de sirenes e passos apressados. O medo era sufocante. Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, o funcionário retornou, chamando-as apressadamente, e saíram pelos corredores laterais. Desse modo aquele bondoso homem guiou-as até uma rua nos fundos do Palácio e ajudou-as a embarcar em um táxi, garantindo que escapassem daquele inferno.

Ao deixarem para trás a Praça dos Três Poderes, viram um cenário irreconhecível. O comércio fechava suas portas às pressas, pessoas corriam desnorteadas, policiais militares e soldados do Exército patrulhavam cada canto. Quando finalmente chegaram em casa, encontraram o Sr. Gustavo M., marido de d. Maria J., angustiado. Ouvindo tudo pelo rádio, ele acabara de chegar do trabalho e já se preparava para ir ao centro, desesperado para encontrar a família. O alívio tomou conta dele ao vê-las sãs e salvas.

Da esquerda para direita: D. Maria J., Geuma, Alysgardênia e Sr. Gustavo M., um dia festivo na escola.

Somente mais tarde compreenderam o que havia acontecido. Aquele dia fora o prenúncio de um novo tempo no Brasil: a Ditadura Militar se instaurava sob a justificativa de conter o avanço do Comunismo. Mas, como perceberiam ao longo dos anos, tratava-se apenas de uma cortina de fumaça. O real propósito era o controle do poder, a manipulação das leis para benefício próprio e a institucionalização da repressão. Usavam discursos de Deus, pátria e família para disfarçar a corrupção que se espalharia pelos corredores do governo.

Alysgardênia no dia do seus 15 anos, tempos de chumbo... tempos em que ouvia horrores narrados por seus pais, como a vizinha que sumiu, levada pelos agentes da Ditadura Militar

Alysgardênia também se recorda, já adolescente, de conversas bem reservadas - entre seus pais -, que naquele tempo não incluíam os filhos em tais assuntos, sobre uma universitária que morava no quarteirão próximo de sua casa e que eram pessoas conhecidas deles. Ela integrava algum movimento estudantil na UFPB, e desapareceu misteriosamente. Naquele tempo as pessoas contrárias ao regime militar eram chamadas de 'subversivas', então seus pais contavam que ela supostamente havia sido sequestrada por militares. Só se sabe que essa moça nunca mais apareceu. É uma das mortas e desaparecidas do período da Ditadura Militar na Paraíba. Durante toda a sua mocidade eles presenciaram o sofrimento dos pais dessa moça, esperançosos de reencontrarem a filha. Só não sabiam que morreriam velhos sem realizar o sonho.

Local onde se deu o episódio.

Seu pai também contava de um homem (com certeza um policial à paisana), que rondava o bairro eventualmente, se inserindo nas conversas de bares, lanchonetes, restaurantes, jogo de futebol. Um homem misteriosos, que mais ouvia que falava. Diziam se tratar de um olheiro dos militares. Eles ficavam ouvindo conversas e nessas sentinelas mapeavam possíveis 'subversivos', forneciam os endereços e o resto ficava para os militares. Certamente foi assim com essa vizinha que desapareceu. 

Dona Maria José com a filha Alysgardênia no fatídico dia que em João Pessoa estourou a Ditadura Militar, no mês de abril de 1964.

O episódio deixou marcas profundas em Alysgardênia. Mesmo tendo apenas cinco anos, o trauma a acompanharia para sempre. Até hoje, ao contar a história, ela se emociona. E, em meio às memórias dolorosas, persiste a lembrança daquele homem - um desconhecido que, como um anjo anônimo, carregou duas crianças no colo e as levou para um lugar seguro, enquanto o Brasil mergulhava nas trevas. Vem a imagem da vizinha e a história do olheiro dos militares... tempos de medo...

O tempo passou, já adulta, Alysgardênia foi cursar Teologia em São Paulo. Certo dia entrou na sala um dos professores de uma das disciplinas... Esse homem era o Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, autor do Livro "Brasil Nunca Mais". Alysgardênia conta que suas aulas não eram aulas. Eram lições de sabedoria em todos os aspectos. No mesmo curso Alysgardênia ainda teve o privilégio de ter o padre Zezinho como professor.

Ainda em São Paulo, Alysgardênia participou do movimento DIRETAS JÁ, que surgiu em Alagoas e foi tomando conta do Brasil. Diretas Já foi um movimento político de cunho popular que teve como objetivo a retomada das eleições diretas ao cargo de presidente da República no Brasil, durante a ditadura militar brasileira. A possibilidade de eleições diretas para a Presidência da República no Brasil durante o regime ditatorial, se concretizou com a votação da proposta de Emenda Constitucional Dante de Oliveira pelo Congresso. No entanto, a proposta foi rejeitada, frustrando a sociedade brasileira. Ainda assim, os adeptos do movimento conquistaram uma vitória parcial em janeiro do ano seguinte quando Tancredo Neves foi eleito presidente pelo Colégio Eleitoral

O movimento ganhou massa crítica e reuniu condições para se mobilizar abertamente. E foi em São Paulo que a investida democrata ganhou força com um evento realizado no Vale do Anhangabaú, no Centro da Capital, em pleno aniversário da cidade de São Paulo – dia 25 de janeiro. Mais de 1,5 milhão de pessoas se reuniram para declarar apoio ao Movimento das Diretas Já e no meio dessa massa humana, lá estava Alysgardência com alguns amigos. O ato foi liderado por Tancredo Neves, Franco Montoro, Orestes Quércia, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Luiz Inácio Lula da Silva e Pedro Simon, além de artistas e intelectuais engajados pela causa. A essa altura, a perda de prestígio do regime militar junto à população era grande. 

 Tempos bons. Tempos diferentes do que foi a terrível ditadura militar...

Evento ocorrido em João Pessoa durante a Ditadura Militar.

Para quem desconhece, este é um retrato singelo do que foi o Golpe Militar de 1964, que amanhã, 31 de março, completa 61 anos.

Nasci no Mato Grosso do Sul, numa cidade cortada por uma rodovia. Minha mãe costumava contar que, exatamente na época do episódio narrado acima, os caminhões militares cruzavam a BR em longas fileiras, carregando soldados e tanques. O golpe era o único assunto nas rádios, anunciado de forma solene pelo Repórter Esso, na Hora do Brasil, na voz grave que marcava os dias de medo.

O tempo passou, mas as cicatrizes da ditadura ainda estão abertas. E, como a história insiste em se repetir, é preciso lembrar: o golpe foi um golpe. A liberdade foi sufocada. O medo se tornou cotidiano. E a democracia, por longos anos, foi apenas uma lembrança distante. Foram tempos de chumbo, de mortes, torturas e muita corrupção encubada...

PARA QUEM DESCONHECE – NO CASO, OS JOVENS – EIS UMA SÍNTESE BREVE DO QUE FOI O GOLPE MILITAR DE 1964...

Na noite de 31 de março de 1964, as forças militares deflagraram um golpe que resultou na deposição do presidente João Goulart. O governo democraticamente eleito foi derrubado sob a justificativa de uma suposta ameaça comunista—uma narrativa fabricada e amplamente apoiada por empresários, latifundiários, grandes veículos de comunicação e setores da Igreja Católica.

Desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, os setores conservadores já se moviam contra Goulart. Somente em 1963 ele conseguiu retomar o regime presidencialista, mas sua postura progressista e suas propostas de reformas estruturais alarmaram as elites. O comício na Central do Brasil, em 13 de março de 1964, foi a fagulha final: diante de 150 mil pessoas, Jango anunciou medidas de reforma agrária e o controle das refinarias privadas. A resposta foi rápida e organizada. No dia seguinte, a oposição reuniu-se na “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, prenunciando o golpe.

Na madrugada de 31 de março, os tanques tomaram as ruas. João Goulart ainda tentou articular resistência, mas ao perceber que aliados estavam sendo presos e que os Estados Unidos apoiavam os militares, desistiu. Seguiu para Porto Alegre e, posteriormente, exilou-se no Uruguai. Antes mesmo de sua saída do país, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a presidência, passando o cargo interinamente para Ranieri Mazzilli. Mas o poder real estava nas mãos dos militares, que assumiriam o controle total do país.

O regime instaurado em 1964 perduraria por duas décadas. Durante esse período, opositores foram perseguidos, presos, torturados e mortos. A censura calou artistas, jornalistas e intelectuais. E os militares, como sempre, tentaram reescrever a história, disfarçando o golpe como uma necessidade patriótica. Alegavam estar salvando o país do comunismo, mas não havia comunismo algum—apenas o desejo de manter o poder sob suas botas.

 


domingo, 2 de março de 2025

Roubo em igreja...

 

OBS. Todas as imagens aqui postadas dizem respeito a essa reportagem. Não se tratam das igrejas mencionadas no texto.

Antes de ontem assisti a uma reportagem sobre roubo em igreja. O fato se deu no Rio de Janeiro. O ladrão é pessoa conhecida naquele espaço, pois costumava decorar o templo, portanto tinha total liberdade para transitar ali sem despertar suspeita. O criminoso é colecionador de obras de Arte e tem um acervo impressionante (se não fosse tão ladrão).


Ter obras de Arte sacra de 300/400 anos não significa ser ladrão. Os livros contam histórias de homens que, há mais de 100 anos, empreendiam longas viagens pelas províncias do Brasil comprando oratórios, santos de madeira (folheados a ouro) e peças sacras dos engenhos falidos e em decadência. E esse comportamento, por si, explica o porquê de - hoje - existir tanta peça sacra nas mãos de colecionadores sem que isso seja fruto do furto em igrejas.


Esses homens eram justamente colecionadores e comerciantes desse tipo de obra de Arte. Isso não se resumia aos engenhos e fazendas, mas às casas da cidade, onde os fazendeiros residiam e mantinham verdadeiros museus sacros. 


Esses homens, no caso, eram meramente oportunistas e espertos. Não eram ladrões. É certo que eles pagavam valores irrisórios, trocavam por outras coisas, mas, enfim, não havia ilegalidade naquela aquisição. Por mais que nos admiremos com o fato de um colecionador possuir objetos sacros de 200/300 anos ou mais, os mesmos não devem ser vistos como criminosos, mas é necessário os olharmos com reservas, pois, infelizmente, entre os honestos há os ladrões.


Isso explica o porquê de encontrarmos tantos tesouros em galerias de obras de Arte sacra principalmente nas capitais brasileiras, até porque os donos morrem, os filhos vendem, trocam, doam, até jogam no lixo (por ignorância). Dia desses um homem estranhou certa peça numa galeria de arte Sacra. Ele achou muito parecida com uma obra roubada na igreja de determinado estado há mais de 40 anos. Então ele fotografou-a. Na mesma hora recebeu o retorno de um especialista confirmando se tratar  da peça roubada. A polícia federal baixou no local instantes depois. Isso acontece eventualmente, pois muitos especialistas visitam essas galerias com tal finalidade.

Há pouco mais de um ano, vi uma postagen no no Instagran, em que uma figura muito conhecida e respeitada no Rio Grande do Norte mostrou um medalhão com a imagem de Nísia Floresta em bronze. É uma peça no diâmetro de um LP.  Ele a adquiriu numa galeria de Arte no Rio de Janeiro. Identifiquei aquela peça no mesmo instante, bastou bater os olhos. Ele, no caso, não cometeu nenhum crime, mas digo com certeza absoluta que é uma peça roubada. Creio que pertencia ao Centro Norte-Rio-Grandense, pois tenho fotografias de uma exposição sobre Nísia Floresta que ocorreu ali em 1954 e esse medalhão está sobre uma mesa envolta por figuras potiguares notáveis, dentre elas o ex-presidente Café Filho. Esse medalhão foi confeccionado na França em 1851. Entrei em contato com a pessoa, expus o fato e o orientei a doá-la ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, mas a pessoa me  ignorou. Nunca respondeu.

Excetuando esses colecionadores e comerciantes de obras de Arte Sacra, o único local que possui grandes acervos são as igrejas e, infelizmente, é o local preferido de colecionadores criminosos. Uns pagam para roubarem. Outros vão em pessoa. Há, inclusive, ladrões de obras de Arte em cemitérios também.



Na década de 70 houve um furto milionário na Igreja Matriz de São José de Mipibu, cidade da região metropolitana de Natal. Até hoje, lá pelas bandas do Pantanal, minha mãe guarda uma carta com o recorte de jornal dando notícia do episódio. 


Foram várias imagens portuguesas do século XVIII, em madeira, folheadas a ouro. Por sorte a Polícia Federal encontrou as peças muito tempo depois.


O maior acervo de obras de Arte Sacra no Rio Grande do Norte – na minha opinião – se encontra na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, em Nísia Floresta, município integrante da região metropolitana de Natal. Há um ostensório em prata pura e um relicário em prata e ouro puros, imagens portuguesas do século XVIII em madeira folheada a ouro, um lampadário de 20 kg em prata portuguesas maciça, crucifixos em madeira e Jesus Crucificado, crucifixos solitários – todos em madeira do século XVIII, candelabros de bronze, escultura em tamanho natural de Jesus Morto em madeira do início do século XIX, roupas clericais centenárias com galões de ouro e prata, toalhas, cálices, bandeiras de procissões da época que o município se chamava “Papary”, grandes móveis em madeira de lei (cômodas e roupeiros), livros manuscritos e uma infinidade de pequenos assessórios sacros.


Sabemos que a Igreja Matriz de Nossa Senhora já sofreu vários furtos (não é segredo para ninguém). Alguns atribuídos a determinados padres – ditos a boca de siri – e outros supostamente furtados a pedido de colecionadores. Particularmente, sinto falta de algumas imagens e peças valiosas e até móvel que conheci em 1992 e que fui percebendo estarem sumindo ao longo do tempo. “Quem disso usa disso cuida”, portanto, sem intimidade com aquele templo, pensava que a exposição dessas peças oscilava, de acordo com alguma orientação dos padres, numa espécie de reserva técnica como fazem nos museus. Muito tempo depois percebi que eu estava tremendamente enganado.


O fato de a igreja ainda não ter sido tombada nos impede de termos uma lista com todos esses elementos sacros, portanto só quem conhece a igreja de longas datas sabe sobre esses furtos. Vale ressaltar que esses furtos não se resumem apenas a obras de Arte de grande valor, mas até mesmo a peças em gesso (a exemplo do “Anjinho Deus lhe Pague”), uma peça aparentemente sem valor, mas só aparenta, tendo em vista que ela e outras que foram furtadas têm valor histórico pelo tempo que ali estão.

Pois bem, vendo essa reportagem, me voltei para a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, tendo em vista a dimensão do seu acervo e a falta de um esquema de vigilância eletrônica.



Entendo que lugares como Nísia Floresta, com um patrimônio dessa monta deve haver uma politica pública de proteção diferenciada, não por privilégio, mas por dever de salvaguarda. O verdadeiro privilégio é saber que a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, em Nísia Floresta, é um museu vivo, um elemento singular, inigualável, um tesouro da História da Arte e da Arquitetura Sacra. 


A Prefeitura Municipal de Nísia Floresta e a Câmara Municipal de Vereadores devem ao povo de Nísia Floresta a proteção desse tesouro. É hora de criar uma lei com edital para concurso, providenciando uma guarda especializada pela proteção 24 horas desse templo. Não se trata de privilégio, pois estamos falando da História do Brasil. Estamos falando de precaução.

Fica a reflexão e a sugestão.














sábado, 1 de março de 2025

Tarcísio Gurgel O informante da literatura potiguar



“Tarcísio Gurgel é um escritor de duas cabeças”. A definição é do próprio Tarcísio, explicando o fato de haver produzido literatura exclusivamente em Natal, mas inspirado no universo mítico de Mossoró, onde nasceu e participou de movimentos importantes, como o Teatro de Estudantes Amadores (Team).

Em entrevista exclusiva a O Mossoroense, o escritor revela elementos de sua obra ficcional, constituída por três livros de contos: “Os de Macatuba”, “O Eterno Paraíso”, e “Conto por Conto”, e comenta aspectos positivos e negativos da literatura norte-rio-grandense.

Ao longo da conversa, Tarcísio Gurgel, que confessa haver abandonado uma experiência com a poesia para se dedicar ao conto, na hora certa, antecipa detalhes sobre “Informações da Literatura Potiguar”, livro mais recente de autoria dele, cujo lançamento nesta cidade será hoje, às 18 horas, na filial da livraria A.S. Book Shop.

POR CID AUGUSTO

O MOSSOROENSE – Você nasceu em Mossoró, fez teatro na cidade, mas tornou-se escritor em Natal. Pelos critérios adotados em “Informação da Literatura Potiguar”, Tarcísio Gurgel é um escritor mossoroense ou natalense?
TARCÍSIO GURGEL – Tarcísio Gurgel é um escritor de duas cabeças, porque, na verdade, se você pegar a minha pequena obra de ficção curta, ela tem um imaginário que não é explicitamente mossoroense, mas certas situações remetem a isso. No último livro, “Conto por Conto”, tem uma história em que há alusão à luta política de Mossoró. Então, o meu universo mítico, por assim dizer, é Mossoró e isso me marcaria como um autor mossoroense. Mas, inegavelmente, toda a minha vida literária é em Natal.

OM – É possível alguém se tornar escritor?
TG – Tornar-se escritor é uma coisa de processo. Você nunca pode dizer: “A partir deste momento, eu me tornei escritor”. Mas comigo aconteceu pela orientação providencial de Deífilo [escritor Deífilo Gurgel, irmão de Tarcísio] que, aliás, foi quem decretou a morte do poeta em mim, em boa hora. Ele foi muito honesto ao ler os poemas que eu escrevia e ao sugerir, sem ser grosseiro: “Você não acha que você talvez escrevesse melhor conto?”, partindo de uma dedução simplista, que era a do meu envolvimento com o teatro.

OM – Por que Nísia Floresta e Milton Pedroza não podem ser considerados escritores norte-rio-grandenses, apesar de haverem nascido no Estado?
TG – Nísia, não. Ninguém mais européia, carioca, pernambucana que ela no âmbito literário, o que não diminui o valor intelectual da sua obra. Milton Pedroza, sim, e eu até me penitencio porque acho que não dei a devida ênfase à contribuição dele.

OM – Mas ele saiu sedo de Mossoró e do Rio Grande do Norte?
TG – Veja bem: ao sair, ele já havia publicado “Passos Cegos” e, parece-me, um outro trabalho cujo título não lembro. Há um substrato mossoroense, norte-rio-grandense, na obra de Milton que o torna presente em nossa literatura e ele, de resto, é um autor muito importante. Para se ter idéia, numa antologia de Graciliano Ramos, publicada postumamente, estão três autores do Rio Grande do Norte: Milton, Humberto Peregrino e Peregrino Júnior, sendo este um autor cuja obra mais importante é amazonense.

OM – Qual o caminho de Macatuba?
TG – O caminho de Macatuba passa por Mossoró e passa por outras cidades literariamente marcantes, numa gradação difícil de se explicar.

OM – As personagens de “Os de Macatuba” são inspiradas em pessoas reais de Mossoró?
TG – Não necessariamente. Aqui e acolá houve personagens episódicas que eu saberia identificar. Por exemplo, há um papagaio no livro que realmente existiu, e que foi iniciado em safadeza por uma prima minha, maravilhosa, chamada Aparecida, infelizmente já falecida. Durante muito tempo ela tentou pervertê-lo, até que conseguiu.

OM – A experiência de ator do Team, com participação em “Eles não Usam Black-Tie”, de Gianfrancesco Gaurnieri, “Esquina Perigosa”, de J.B. Priestley, e “O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes, exerceu que influência em sua carreira de escritor?
TG – Nessa coisa de facilitar a criação de diálogos, de uma certa agilidade com que esse diálogo se constrói. As coisas que eu escrevo, quanto à qualidade, não sou eu quem deve avaliar, mas, no que diz respeito aos diálogos, como eu exercito muito, eu escrevo, reescrevo, rasgo, até alcançar uma forma que me satisfaça, a coisa se constrói sem aborrecer o leitor e, com certeza, é fruto da vivência no Team.

OM – O seu segundo livro de contos, “O Eterno Paraíso”, é dedicado a Maria Pata Choca, Zé Alinhado, Manoel Cachimbinho, Benício Gago e Cristina dos Pimpões, entre outras figuras populares de Mossoró. É somente isso ou o contista buscou algo nelas para compor personagens?
TG – Essas figuras me ajudaram a construir esse universo mítico. Benício Gago, por exemplo, chegava à padaria de meu pai e os padeiros mexiam com ele. Quando estava de boa veia, Benício cantava uma musiquinha que, melodicamente, lembrava “Águas de Março”, o que cresce a minha convicção de que aquela música deve ter raízes populares.

OM – Por falar em dedicatória, “Informação da Literatura Potiguar” é dedicado a Luís da Câmara Cascudo, por ser “um clássico em qualquer literatura” e a Deífilo Gurgel, Vingt-un e Raimundo Soares de Brito, por serem “generosos exemplos”....
TG – Exatamente isso que eu penso. Cascudo é muito citado e/ou criticado, mas pouquíssimo lido. Quando as pessoas lêem Cascudo de forma seletiva, chegam à constatação de que eu não exagerei. E quanto a Vingt-un, Deífilo e Raimundo Soares de Brito, é que esses (não estou falando inverdade nem estou sendo grosseiro), embora não tenham atingido, por força das circunstâncias, aquele estágio literário, são pessoas de uma generosidade intelectual que me comove.

OM – Quais são essas circunstâncias?
TG – É que Cascudo teve o direito de se preparar para revelar à humanidade o talento dele, enquanto os outros lutaram com muita dificuldade, trabalhando desde muito jovens. O que Raimundo Soares de Brito faz em Mossoró, gastando os próprios proventos, que não devem ser tão altos, para manter aquele acervo, recebendo com carinho as pessoas que o procuram e valorizando a nossa produção intelectual, é incrível. Essa tarefa de Vingt-un com a Coleção Mossoroense, que já ultrapassa três mil títulos, ninguém, nenhuma instituição cultural do Brasil tem a coragem, a paciência e o zelo de fazer. De modo que todo tipo de homenagem a eles acaba sendo pequena.

OM – Foi mesmo a de Cascudo a maior contribuição para a literatura Potiguar?
TG – No que diz respeito ao tipo de produção literária, com traços distintivos de outros povos, eu nem sei se seria Cascudo. Com relação à vida cultural do Estado, tenho certeza. Há outro nome que se aproxima de Cascudo, que é Henrique Castriciano. Em determinado momento, Henrique serviu de exemplo para o próprio Cascudo.

OM – Cascudo era um animador cultural...
TG – Cascudo, também como Henrique, acabou sendo um animador cultural de extrema importância. Em alguns momentos eu digo, e alguns amigos ficam chocados, que chego a desconfiar de o que seria Jorge Fernandes se não tivesse tido um interlocutor como Cascudo, que ouvia e reconhecia a importância da poesia e, mais do que isso, remetia sua produção poética para outros intelectuais.

OM – Existe realmente uma literatura norte-rio-grandense ou é preferível chamá-la apenas de literatura produzida no Rio Grande do Norte?
TG – Há uma literatura norte-rio-grandense.

OM - Existem traços peculiares na produção livresca do RN?
TG – Não tenho dúvida de que a literatura produzida por Ferreira Itajubá era uma literatura norte-rio-grandense. Não tenho dúvida de que a literatura produzida por Palmira, Jorge Fernandes, Zila Mammede, Jaime Hipólito, Raimundo Nonato, é literatura norte-rio-grandense, pois possui peculiaridades culturais do nosso povo.

OM – Tudo vale a pena quando a alma não é pequena, ou escrever maus versos não compensa?
TG – Escrever maus versos não compensa. Não há como se blefar com literatura, porque a literatura tem uma mensagem a ser veiculada, cujo elemento fundamental é a beleza, uma beleza que pode ser até feia, conforme nos ensinou Baudelaire.

OM – Antônio Marinho criticou duramente Segundo Wanderley, acusando-o de ser condoreiro em tempos de simbolismo. Ainda existem escolas em tempo de globalização?
TG – Se não um estilo de época, há pelo menos um discurso de época. Vivemos um período em que se colocam desafios em variados planos, período de uma revolução na eroticidade, na política, na economia, na configuração urbana, nos meios de transporte e, no plano das linguagens, algo que chega ao virtual, ao plano da Internet. O discurso de época tem que contaminar as obras de arte, afinal a gente não escreve para pessoas do passado, mas sim para dar a pessoas do futuro a dimensão de como as coisas se constituíram numa determinada época e local.

OM – E as formas?
TG – Ainda hoje há poetas exercitando, já não digo nem formas poéticas, porque essas são eternas, mas novos sentimentos, novos discursos.

OM – O que você acha das pessoas que optam por divulgar obras exclusivamente na Internet?
TG – Não me agrada muito. O suporte físico do livro ainda é muito veemente para ser descartado.

OM – No Brasil, há políticas culturais de efeito prático?
TG – Eu não acredito nessas leis de cultura que estão postas aí, até por uma questão de impaciência. O governo precisa é abrir linhas de crédito para quem escreve ter oportunidade de publicar e comercializar o próprio trabalho.

OM – Mudando o rumo da conversa, não seria a crítica uma tentativa de se impor o gosto pessoal do crítico?
TG – Isso depende do crítico. Por quê? Porque uma coisa é você levar em conta uma resenha feita por um cidadão que trabalha profissionalmente em jornal, com pouco mais de 25 anos de idade, e outra coisa é você pegar um trabalho crítico da dimensão de um Antônio Cândido.

OM – Mas a crítica é realmente importante?
TG – Ou a gente cuida de preservar características essenciais, não fazendo concessões demasiadamente, ou tende a ter uma literatura de qualidade inferior. Claro, eu sou o primeiro a reconhecer que isso é antipático, que isso é uma maneira até certo ponto grosseira de falar, sobretudo entre pessoas que estão se iniciando, mas vejo a crítica como uma necessidade. É aquela coisa de a gente, de alguma maneira, lutar pelo aprimoramento do gosto. Sem essa luta, corre-se o risco de se fazer um tipo de obra artística simplista.

OM – O RN possui bons críticos?
TG – A gente se ressente muito de um exercício crítico pra valer. Não existe crítica no Rio Grande do Norte. O último grande crítico daqui terá sido, certamente, Antônio Pinto de Medeiros, outro intelectual importante que passou por Mossoró. Acho até que Dorian Jorge Freire e o próprio Jaime sofreram influência do espírito meio irreverente de Antônio Pinto.

OM – Você compara os acervos das instituições públicas a velhos sótãos. Nossa cultura está entregue às ratazanas e traças?
TG – Em alguns casos, sim, infelizmente.

OM – O jornalismo roubou Dorian Jorge Freire da literatura ou ele seria uma espécie de escritor realizado no jornalismo?
TG – Eu tive dois prazeres enormes com cronistas norte-rio-grandenses, organizando um livro de Dorian e um de Sanderson Negreiros. Mas Dorian é um tipo de escritor lato senso [expressão que significa em sentido amplo]. Sobretudo quando ele trata de uma memória com acento de nostalgia, nenhum outro autor do Rio Grande do Norte consegue alcançá-lo. Dorian escreve de forma notável essa coisa da memória.

OM – A Coleção Mossoroense, coordenada por Vingt-un, não merecia análise mais profunda em “Informação da Literatura Potiguar”?
TG – Merecia, não: merece! Mas eu preciso realizar uma pesquisa mais aprofundada sobre a Coleção Mossoroense. Como me fixei em Natal e nem sempre dispus de muita oportunidade de fazer esse trabalho, acabei ficando devedor de algumas coisas.

OM – Os novos movimentos poéticos do Estado, tipo a Sociedade dos Poetas Vivos e a Poema, pecam pela ausência de uma estética?
TG – Os movimentos são muito válidos e muito importantes, mas todos os que existiram se caracterizavam por uma grande desorganização. No movimento modernista de São Paulo, por exemplo, um brigou com o outro, uns se destacaram mais, outros menos. Preocupa-me, muitas vezes, tentar um certo traço de união, uma identidade. O ecletismo que caracterizou a “Revista Antropofágica”, me agrada mais que um certo “espírito de corpo” de grupos constituídos que, muitas vezes tem a marca da generosidade, mas que, esteticamente, pode ser perigoso. No entanto, como esses do nosso Estado são movimentos muito novos, com certeza terão desdobramentos interessantes.

OM – Os romancistas norte-rio-grandenses são ruins ou o fato de estarem distantes dos grandes centros editoriais, fora das igrejinhas do Centro-Sul, é o responsável pela pouca divulgação de suas obras?
TG – A literatura do Rio Grande do Norte padece de uma situação muitíssimo curiosa, que é a seguinte: como ela praticamente nasceu em Natal, com um poeta de estrema popularidade, que era Lourival Açucena, criou-se uma coisa da poesia. A literatura do Rio Grande do Norte é uma literatura predominantemente poética e isso há de ter inibido alguns ficcionistas, inicialmente.

OM – Mas o Rio Grande do Norte não tem elementos interessantes para a ficção?
TG – A história cultural de Natal registra episódios e tem um sabor dramático, romântico, que faria a festa de qualquer ficcionista. E se a gente vai para Mossoró, essa é uma cidade potencialmente fantástica para a ficção. Espanta-me, exatamente isso. A gente não tem tido a sorte de ter grandes ficcionistas em Mossoró, produzindo a partir da saga mossoroense. Eu costumo dizer que enquanto Natal é lírica, Mossoró é épica.

OM – Como você analisa a sua própria ficção?
TG – Se você me perguntasse se eu considero o que eu escrevo em matéria de ficção uma coisa ótima, eu responderia que não considero; se você me perguntar se eu me acho um bom contador de histórias, também não. Na verdade, as histórias se constroem para mim, esses pequenos contos, com certa lentidão, com certa dificuldade. O que me socorre é o exercício com linguagens e, como eu sou egoísta, penso que todos deveriam fazer o mesmo.