“O ABISMO SOB AS FLORES DA CIVILIZAÇÃO” E AS FESTAS JUNINAS NO RIO GRANDE DO NORTE, O QUE NÍSIA FLORESTA NOS ENSINA...
Antes
de entramos no âmbito da reflexão, leiamos esse trecho do ensaio ‘O abismo sob
as flores da civilização’ (Il L’abissotto i Fiori dela civilitá), escrito por
Nísia Floresta, parte da obra ‘Cintilações de uma alma brasileira’ (Scintilled’um’anima
brasiliana’, publicados originalmente Florença, Itália no ano de 1859.
"A música, esta
celestial inspiração de almas poéticas e religiosas, mas tão profanada desde
que se fez usar para matar alegremente os homens, e para depravar a mulher,
atira e encilha os dois sexos numa dança desenfreada, à qual comanda o gênio da
presente corrupção.
A
desfaçatez, a luxúria, os excessos dos sentidos disputam o reino de dissolução,
envolvendo num véu transparente a ruína dos povos; ruína que a civilização
aprova e fomenta num contrassenso que horroriza o pensador, e lança nos ânimos
gentis a dor e o desconforto!
Após
muitas libações, a dança; após a dança, o passeio entre os verdores de
inumeráveis alamedas. E depois, ainda, o infernal turbilhão de ‘valse’; onde
extenua-se o vigor do corpo, quando aquele da alma já se dissipou.
Ali
passeiam cabeças vazias; aqui lábios impuros pronunciam fugidiamente aquelas
palavras tão poderosas sobre o pudico lábio da mulher. Um pouco apartado, ao
lado de uma Megera enguirlandada, senta-se um jovem, ou melhor, um espectro
vivente, que arrasta-se ele também à ‘Foire au plaisir’ (1), quando a morte já
imprimiu o fatal sigilo sobre sua fronte. – O infeliz ilude-se! A sorte pôs ao
seu lado, em vez de um anjo talvez abandonado, um demônio que o enfeitiça;
precipitando-o para um fim prematuro, após ter-lhe desfibrado o corpo e a
alma...” 1-
Feira de diversões.
Nísia
costumava jogar no papel muito do que testemunhava. Tudo era matéria prima
para crônica. Ela presenciou a cena acima às margens do Sena, “para os lados de
Asniére”.
Embora
eu transcrevi o trecho completo, minhas observações se detém apenas aos quatro
primeiros parágrafos, tendo em vista que o restante é óbvio demais. Para o bom
entendedor...
Pois bem, já estão aparecendo os cartazes de propaganda do São João dos municípios do Rio Grande do Norte e isso traz muitas mensagens sublimares. É sobre isso que ontem eu conversava com uma pessoa que trabalha com cultura, inclusive citei essa passagem escrita por Nísia, tendo me lembrado dela. O assunto foi sobre a descaracterização das festas juninas do Nordeste. Aqui me atenho ao Rio Grande do Norte para falar com propriedade. Já ressalvo que não se trata de congelar o passado, engessando-o, tendo em vista que a civilização anda para frente. Também não estou propondo que as festas sejam festas catequéticas. Refiro-me a conservar intacta a essência das coisas da terra (como os gaúchos fazem). Lá eles dizem “Mateus, primeiros os teus”. (Certíssimos!).
Você
percebe que esse texto de Nísia Floresta parece escrito hoje. É atual demais. A
postura de estranhar certos comportamentos modernos faz parte da história da
humanidade. Antes de Cristo há registros de sábios criticando o comportamento
dos jovens. Isso sempre existirá. O que farei agora, inclusive, é nada mais que
isso. O que Nísia Floresta fez, foi nada mais que exercer o seu direito de
estranhar o que viu.
Essa
coisa de estranhar o comportamento da sociedade é parecido com a rotação da
Terra. Não para. O tempo vai passando e as críticas aos efeitos do Sol vão
acontecendo. É um círculo que não cessa.
Mas
o que ‘O Abismo sobre as flores da civilização’ de Nísia Floresta tem a ver com
isso tudo. O ensaio é dedicado aos jovens. Vamos entender isso tudo a partir da
significação do título. “O ABISMO” se refere aos perigos aos quais os jovens
estão sujeitos se se permitirem o mal (má companhia, por exemplo). “AS FLORES”
são os próprios jovens. “AS FLORES” são as virtudes; tudo aquilo de bom que um
jovem pode trazer dentro de si e praticar enquanto civilização. E a civilização?
O que significa. “CIVILIZAÇÃO” é a humanidade.
Mas
vamos retomar a conversa sobre Cultura. Eu defendi a ideia de que uma Festa
Junina, em especial, é algo muito forte no Rio Grande do Norte. Ela está na
alma do povo potiguar. As coisas juninas transcendem, estão no ar. As pessoas
praticam as festas juninas dentro de casa, no quintal, na calçada, no bairro,
no comércio formal e informal, nos festejos públicos. É uma fusão de tradições
em que encontramos a gastronomia, os festejos, a linguagem, as bebidas,
hábitos, religiosidade, musicalidade, enfim, uma gama de coisas.
Do
mesmo modo que lá em cima Nísia Floresta critica a forma como a mulher é
tratada nas músicas, o comportamento dos jovens nas festas públicas, devemos
fazer agora. Vamos rever o que ela escreveu: “A música, esta celestial
inspiração de almas poéticas e religiosas, mas tão profanada desde que se fez
usar para matar alegremente os homens, e para depravar a mulher, atira e encilha
os dois sexos numa dança desenfreada, à qual comanda o gênio da presente
corrupção”.
É
isso! Se há 166 anos alguém se horrorizou com o que viu em plena França,
imagine hoje. Não vou entrar em detalhes. Basta ver os vídeos que têm em
abundância na internet, pós-festas. Creio que pai algum gostaria de saber que
sua filha ou o seu filho se submetem a tanto vexame (drogas, comas alcoólicos,
estupros, brigas, acidentes etc).
O
outro detalhe da minha conversa se detém ao comportamento da maioria das
prefeituras de Natal e cidades vizinhas, que tem a bizarrice de trazer cantores
sertanejos para o São João do Nordeste. O que Gustavo Lima e Luan Santana têm –
por exemplo – com o São João do Rio Grande do Norte? Na verdade, eles estão
para a Festa de Peão de Boiadeiro, de Barretos, interior de São Paulo, como
Elba Ramalho, Alceu Valença, Zé Ramalho, João Gomes, Jorge de Altinho, Petrúcio
Amorim, Flávio José, Zé Vaqueiro, Dorgival Dantas e uma porção de outros
artistas incríveis estão para o São João do Nordeste. São costumes e momentos
totalmente opostos.
Não
é preconceito, bairrismo ou algo do tipo. É sensatez. Principalmente quando se
refere às instituições públicas que promovem a Cultura (Secretarias, Fundações
etc). Esses órgãos de governo tem o dever moral de serem os primeiros a
preservar a sua cultura, ao invés de usar a máquina pública ao seu gosto
pessoal. Alguém já viu Elba Ramalho ou João Gomes se apresentando na Festa de
Peão de Boiadeiro de Barretos? (Nunca!). Aquilo pertence a eles. É a essência
deles. Da mesma forma o São João do Nordeste que tem tudo a ver com a nata da
música nordestina, ao zabumba, ao pandeiro e à sanfona.
Assim
como no Brasil há espaço para tudo, as festas do Nordeste tem lugar para todos,
MAS NO MOMENTO CERTO. São João são outros quinhentos! O problema é que as
instituições públicas de cultura parecem não saber disso. E isso é uma forma de
corrupção, pois quando os gestores negam ao seu povo o fomento às suas raízes
culturais nos momentos certos, eles estão corrompendo a sociedade.
É
muito injusto ver as nossas crianças e os nossos jovens perdendo a sua identidade
cultural ou entendendo as festas públicas como espaços de degradação.
Pois
bem, se você é daquelas pessoas que sentem saudade da beleza, da poesia, da
amorosidade, da presença das famílias, da alegria de pobres e ricos juntos,
felizes, do respeito nos festejos juninos como um todo – sem caretice – desde a
sua estruturação às apresentações artísticas, o que você faz enquanto povo para
trazer de volta essa essência?
Que
tal pensar? Pensar e por em prática ideias e alternativas para que a
Nordestinidade volte aos bairros, às vilas, às cidades. Que os artistas da
terra sejam respeitados, que sejam remunerados com justiça, assim como os sertanejos
são, seja aqui ou no Sudeste.
Quando Nísia Floresta critica a falta de poesia na aura cultural, referindo-se às músicas que trazem letras e coreografias cheias de vulgaridade, quando ela critica os equívocos nos festejos públicos, quando ela fala de corrupção, ela sente a ausência da qualidade nas letras das músicas, ela fala do desconforto que muitos sentem nos festejos que deveriam fazer o contrário.
Para quem não entendeu: não sou contra os sertanejos nem a outros ritmos, inclusive nasci num estado em que as emissoras de rádio tocam sertanejo o dia inteiro – sou fã de Milionário e José Rico e Tonico e Tinoco e uma porção de artistas sertanejos de verdade –, mas os sertanejos devem ter lugar nas festas nordestinas que os cabem. O São João, não! O São João é quando o povo do Nordeste deve recarregar as suas baterias culturais, renovando-as, transmitindo-as às novas gerações... Que tal pensar!