Professora
Marineide Freire e sua relação com os ideais de Nísia Floresta (texto
autorizado por sua família)
O propósito de evocarmos personagens da história,
torna-se louvável - creio - quando o associamos ao presente e nos deparamos com
nuanças que permitem revê-lo em pessoas e fatos. Quando interagimos o episódio
ou a figura ilustre a fatos do hoje, ou a pessoas que conhecemos, que têm
alguma relação ao objeto aventado, a persona notável adquire uma
visibilidade inteligente.
É com essa visão que, hoje, ao estarmos a dois dias da
data do aniversário de nascimento de Nísia Floresta Brasileira Augusta,
lembro-me da Professora Marineide Freire, de Tororomba, cuja história todos
conhecem. É com muito respeito à sua memória e aos seus familiares que tecerei
as palavras abaixo.
Tororomba, acanhado distrito de Nísia Floresta, região
metropolitana de Natal, distando-se 42 km dessa capital, possui quase tudo para
impedir que seus nativos alcem vôos mais longínquos, mas não foi assim para a
professora Marineide Freire, a qual tinha uma luz especial.
Costumo sempre lembrar que algumas pessoas nascem e
crescem sem se aperceber dos seus derredores. Muitas vezes a incapacidade de notar
as diversas problemáticas sociais, na qual muitas vezes ela própria é vítima, a
torna um ser vegetativo, que passa a vida a contemplar através das janelas as
mesmices e os nadas. Sua vida é a rua e o seu quintal. Mas não foi assim com
tal educadora.
Conheci essa nisiaflorestense quando ela ainda não era
universitária. Tratava-se de uma pessoa inteligente, alegre, comunicativa,
extrovertida e agradável. Uma vez ela me procurou na EMYP para pedir algum
material sobre a nossa Nísia. Disse que todos diziam que eu possuía informações
mais substanciais sobre o assunto. Atendi-a de pronto e ficamos amigos.
Certo dia ela contou-me, feliz, que estava cursando Artes
na Universidade Potiguar (UNP). Como uma das minhas formações é nessa área,
fiquei feliz e coloquei-me à disposição para o que ela precisasse em termos de
livros ou dúvidas sobre o assunto. Até brinquei com Marineide, dizendo: “veja
só, você buscou uma área na qual a nossa Nísia era mestra; ela era apaixonada
pelas Artes e as descrevia como se fosse uma artista de fato. A Arte nos
permite abrir o terceiro olho”. Ela quis saber o porquê da minha afirmação
e lá fomos nós mergulhar nos escritos da nossa Nísia e da sabedoria antiga.
Os anos se passaram e ela findou desenvolvendo o seu
estágio na EMYP. Foi uma excelente profissional. Cheia de ideias, sempre
pedindo opinião, curiosa, sonhando mil projetos... Logo se formou e integrou o
quadro de professores municipais. Ao mesmo tempo associou-se ao Sindicato dos
Trabalhadores em Educação de Nísia Floresta, fundado pelo professor João
Anastácio (salvo engano), tornando-se sua diretora e pioneira na reorganização
desse órgão.
Em pouco tempo ela evoluiu a olhos vistos. Muito
consciente dos problemas sociais de seu município, muito interessada em mudar a
realidade da pobreza, do marasmo e do ostracismo em que se encontrava a “terra
do camarão”, enfim interessada em interferir naquele cenário. E, curiosamente,
sempre ela me abordava, perguntando algo mais aprofundado sobre Nísia Floresta
e opinião sobre o cenário social local.
Certo dia surgiu na cidade uma emissora de rádio
comunitária muito curiosa: a “Rádio Baobá”. Funcionava num moderno prédio
construído pela escritora Angélica Timbó. Durante a inauguração compareceram
figuras notáveis de Natal, destacando-se Enélio Petrovich, diretor do Instituto
Histórico e Geográfico do RN, dentre outras.
A referida emissora tinha uma linha interessante. Todas
as pessoas que chegavam ali, falavam ou eram anunciadas, não importando a
programação. Óbvio que não era uma bagunça, como pode parecer. Tinham regras,
mas era literalmente uma rádio comunitária. Todos os assuntos iam a público,
democraticamente. E lá estava Marineide Freire engajada na “Rádio Baobá”,
planejando mil coisas... se agigantando como a famosa árvore africana.
O tempo passava e a cada dia ela ampliava o seu rol de
amigos, inclusive pessoas de outros municípios, com novos conhecimentos, enfim
os seus sonhos e horizontes se tornavam maiores. A cada ano ela dava um salto
positivo enquanto ser humano, enquanto mulher, enquanto ser pensante e crítico.
A Professora Marineide Freire não era mais a pessoa
olhando da janela e vendo as bananeiras e mangueiras em sucessivas safras. Ela
se destacava assim como Nísia Floresta se destacou. Algumas pessoas se
assustavam com ela. Creio que a nossa Nísia exerceu na tororombense uma forte
inspiração. Sua inteligência fervilhava e ela não conseguia mais janelar.
Em pouco tempo a Professora Marineide Freire estava
envolvida em tudo, reuniões disso, daquilo e daquilo outro, sempre de maneira
destacada e com opinião própria. Não era muito amante dos poderosos. Isso se
tornou claro desde o início. E pudera. Não combinava a uma personalidade tão
esclarecida e insubmissa os moldes típicos tradicionais, ou seja, o formato
autoritário dos que fazem o poder nas cidades interioranas, com poucas
exceções.
Uma vez ela me disse que não queria ser conduzida por
líderes que tinham como principal objetivo podar as pessoas, impedindo-as de
falar o que pensavam e lutar por justiça e cidadania. Por isso negou dar as
mãos aos tais. Era realmente uma mulher que passou a entender a liberdade na
sua acepção plena. Pessoa que lançava luz às piores escuridões. Só assim ela
alçaria voos altaneiros lentamente. Confesso que a admirava e enxergava nela
uma esperança de liberdade plena para a velha Papari.
Uma vez, num grande evento cujo nome da intelectual Nísia
Floresta foi citado, ela pediu a palavra e disse “quem aqui conhecia Nísia
Floresta antes de Luís Carlos Freire? Quem aqui conhecia o seu hino, sua
história e sua obra antes de ele colocar os seus pés em nossa cidade e inventar
mil linguagens para falar sobre ela? Tudo o que aprendi sobre Nísia Floresta
devo a ele, tudo o que nós daqui sabemos, devemos a ele”.
Seu gesto me marcou muito pela gratidão, pelo respeito,
embora eu não soubesse do alcance do meu trabalho. Estranhei aquela colocação
porque muitos fazem o contrário: renegam os seus mestres. Acredito que a
construção do parecer que ela me deu decorreu exatamente da multiplicidade de
eventos que eu realizava sobre a nossa Nísia. E isso a marcou. Creio.
Não me lembro exatamente o dia e o ano que ela deixou de
voar, mas foi um dia cinza. Dia chuvoso e frio. A notícia trouxe um ar sombrio
à cidade. Fiquei estático, olhando para o nada e lembrando do seu sorriso e
alegria contagiantes. Não gosto de me lembrar. Prefiro recordar da vivacidade
desse ser espetacular. A notícia chegou-me com as mais variadas interpretações
e até mesmo sentenças horríveis.
O meu pai dizia que quando conhecemos verdadeiramente
alguém o defendemos incisivamente, exceto até a configuração de provas
contrárias. E a Professora Marineide Freire era dignidade pura. Uma das
sentenças criadas sobre o triste episódio chocou-me de tal forma que não
acreditei existir pessoas capazes de criar barbaridades tais.
É inacreditável como muitos de nossos semelhantes são
capazes de aventar ficções absurdas sobre outrem, inclusive até “amigos” dela,
nativos, com suas exceções obviamente, mas pessoas que a conheciam há mais
tempo que eu. E que deveriam tê-la defendido.
Nísia Floresta foi alvo das mais absurdas sentenças, e a
Professora Marineide Freire viveu algo parecido, embora não pôde ouvir tais
absurdos. Nísia Floresta não teve quem a defendesse em seu tempo, portanto eu
considerei naquele momento uma injustiça imperdoável se repetir o mesmo com
aquela Professora respeitável, cuja inteligência se abria como a mais perfumada
flor. A essência de sua intelectualidade perfumava as inteligências de muitos
alunos e amigos, defendendo a educação e a cultura, prometendo muito para a
sociedade nisiaflorestense.
Durante a celebração da missa de corpo presente, pedi a
palavra e de maneira serena e consciente, falei sobre ela, defendendo a sua
moral, a sua idoneidade, destacando a sua respeitabilidade. Não pensem que tive
receio pelo delicado assunto. Falei sem medo, pois “a injustiça aos vivos deixa
o ônus da contrapartida. Aos mortos, resta o injusto silêncio, e aos acusadores
a covardia e a consciência pesada”. Assim dizia o meu pai.
Lembro-me que após ela ter sido guardada sob a terra,
duas horas depois, o presidente do Sindicato dos Professores de Natal – SINTE,
cujo nome não me recordo – e também não o conhecia - esteve em minha casa com
um grupo de educadores natalenses. Ele parabenizou-me, agradeceu o meu gesto na
Igreja Matriz e pediu se eu poderia escrever um texto nos moldes do que havia
falado no púlpito. No outro dia, no SBT, houve um programa de televisão
dedicado a ela. Os caracteres do texto que escrevi passaram lentamente na tela
sob fundo musical e assim encerrou o programa. O fato de o SINTE ter dado tanta
importância ao meu gesto reforçou-me a certeza de que minha interferência foi
realmente necessária.
Hoje, passados tantos anos do episódio, resolvo soprar a
poeira que encobre o seu nome e a sua história. E o faço para sensibilizar as
novas gerações, para que elas se lembrem de valorizar as pessoas visionárias e
abnegadas iguais a Professora Marineide Freire. Que aprendam a valorizar a
Arte, a Cultura e proclamar apenas a verdade.
Talvez você pense. Mas o que ela tanto fez? Qual o
grandioso legado dela? O cerne da questão não é quantitativo, não é matemático.
É reconhecermos o que ela pensava fazer por Nísia Floresta e não pôde,
justamente no momento que mais estava pronta intelectualmente. Ela iniciou. Fez
o baldrame muito bem feito e deixou para nós o restante.
Mas na vida temos que estar prontos para tudo, e não cabe
a nenhum ser humano depreciar as demais pessoas envolvidas nessa história, pois
quem sabe o seu voo foi interrompido justamente pelos criacionismos, pelas
ficções já evidenciadas nesse texto.
Enfim a nossa mestra se foi, mas embora pareça
contraditório, PERMANECEU por sua história, cuja síntese pode ser resumida numa
só palavra: CORAGEM. E coragem é para poucos, num cenário onde a maioria cede
às hipocrisias, onde muitos querem o afago do Poder Público, ignorando a
miséria, a fome, a injustiça, enfim os problemas sociais que esse dito “Poder”
tanto ignora. Muitos querem o colo do Poder Público, ao invés de lutar contra
suas omissões, mandonismos, farras, tripúdios, enfim suas mazelas. Dá mais
trabalho.
É mais gostoso, é mais quentinho estar junto dos
parecidos. Creio que os que estão poderosos entendem ser desconfortável a opção
pelos pobres. E isso assusta quando muitos desses seres falam tanto sobre Deus,
desfilam com grossíssimas Bíblias sob as axilas, rebumbando gigantescas glórias
e aleluias. Outros, desenrolam enormes rosários e terços em améns sem fim. Mas
é só da boca para fora. Pura retórica! Diferente do pensamento da Professora
Marineide Freire que iniciaria, NA PRÁTICA, ações que deveriam ser prioridade
aos que falam tanto em Deus.
Muitos se negam transformar-se plenamente num instrumento
de cidadania e justiça. Muitos ignoram o bem coletivo. Muitos se negam a
juntar-se às pessoas que possuem o mesmo espírito da Professora Marineide e
Nísia Floresta. É mais fácil se juntar aos iguais e deixar de lutar contra os
vistos pela sociedade como ‘inimigos’, somando-se a eles. Não falo ‘inimigos’
numa conotação de picuinha, mas os inimigos no aspecto daqueles que não se
importam com os problemas sociais. Que se lixam para os menos favorecidos.
Diferente do pensamento da Professora Marineide Freire.
Para mim, e com certeza, para a Professora Marineide Freire,
a verdadeira religião é querer que o vizinho esteja tão bem quanto eu estou.
E mais uma vez recordo Nísia Floresta, cuja síntese
também era CORAGEM. Essa coragem, na sua acepção filosófica, está em falta em
muitos panoramas brasileiros, pois parte considerável de seus atores sociais
acha o bastante o uso de maquiagens sociais, alimentando o âmago dos poderosos
a troco de meros centavos, mesmo vendo os descasos para com os mais diversos
públicos. Mesmo vendo os rangeres de dentes de seus próprios entes familiares.
A Professora Marineide Freire, nesse momento tríduo de
comemorações de 12 de outubro, é muito sugestiva, pois, igual a Nossa Senhora
Aparecida, rogava pelos pobres. Igual a Nísia Floresta, lutava por
independências e justiças. E, igual às crianças, sonhava em crescer e fazer mil
coisas.
A Professora Marineide Freire condenava engodos, e nunca
se curvou a quem não se curvava aos pobres e não se debruçava em prol de
trazer-lhes dignidade.
Encerrando essa homenagem, quero aproveitar a oportunidade
para dar uma sugestão à Câmara de Vereadores de Nísia Floresta, assim como já
fiz em outros momentos, em aspectos diferentes e fui atendido. E já que em
Nísia Floresta alguns órgãos públicos e ruas são batizados com alguns nomes de
pessoas que nunca pisaram os pés na cidade, que nem a conhecem, torna-se
legítima e digna outra minha sugestão.
Que o nome dessa grande mulher, Professora Marineide
Freire, seja merecida e dignamente presenteado a uma escola ou a um futuro
ambiente onde a Arte e a Cultura sejam a grande luz. Assim ela permanecerá
verdadeiramente no coração de todos aqueles que alçam vôos altaneiros e não
temem escuridões. Professor Luís Carlos Freire. OBS. Apesar do sobrenome
igual, não somos da mesma família.
Emocionante!
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