Setembro de 1954 desponta nas páginas da história como o mês em que o Brasil reparou uma dívida histórica com a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885) e com o município em que ela nasceu.
O túmulo foi localizado 1950 em Rouen, após quase setenta anos em solo francês, pelo jornalista cearamirinense, Orlando Dantas (1896-1953), mas só em 1954 se efetivou o traslado. O intelectual Marciano Alves Freire, presidente do Centro Norte-Rio-Grandense do Rio de Janeiro, recebeu incumbência do Governo Brasileiro para essa missão, e no começo de setembro, começava-se o processo de devolução não só de um corpo mumificado – quase intacto –, mas de identidade, memória e reconhecimento.
A decisão de trasladar o corpo da escritora, nascida em Papary - município que em 1948 mudara oficialmente de nome para Nísia Floresta -, contou com forte articulação política, intelectual e diplomática desde meado da década de 30 do século XX, com destaque para Henrique Castriciano de Souza (1874-1947) e Adauto da Câmara Miranda Henrique (1898-1952), esse último, seu primeiro biógrafo (ambos morreriam sem ter realizado o desejo de ver o traslado).
Em 1954 o governo francês autorizou a
exumação, e autoridades brasileiras, respaldadas pelo Itamaraty, lideravam os
trâmites para que nada faltasse na cerimônia de retorno, com apoio do
presidente da república João Café Filho, coincidentemente norte-rio-grandense.
Na manhã de 5 de setembro, o navio
Loide-Brasil aportou em Recife trazendo a urna funerária. Já ali se viveu
tensão: autoridades alfandegárias demandaram documentação precisa, relutaram em
liberar o ataúde, por entenderem-no como “carga especial”. Só a intervenção do
presidente Café Filho (1899-1970) garantiu que o corpo seguisse sua marcha. A
chegada foi anunciada com solenidade: representações literárias e acadêmicas,
entre elas a Academia Pernambucana de Letras, estiveram presentes, cujo caixão
foi velado nessa instituição; Nilo Pereira, importante figura intelectual
pernambucana, foi um dos que o acolheu.
Seis dias depois, em 11 de setembro, o poema do retorno tocou Natal, capital do Rio Grande do Norte. O caixão chegou pela Base Naval, aproximadamente nesse local foi exposto ao povo no instituto de Educação, aos cuidados da professora Chicuta Nolasco (1908-1995), vigiado por forças da Marinha e da Aeronáutica, com cortejo, bandas de música e manifestantes emocionados. O Rio Grande do Norte era governado por Sylvio Pedroza (1918-1998).
O município de Natal, sob a administração do prefeito
Wilson de Oliveira Miranda (1919-1988) participou de forma significativa por
meio da Prefeitura Municipal, da Igreja Católica e de instituições culturais e
de imprensa. Em Natal, celebrou-se missa de encomendação com Monsenhor João da
Mata Paiva (1897-1965), e naquele mesmo dia foi lançado selo dos Correios como
homenagem postal ao regresso de Nísia, gesto que expressava o cunho nacional
que aquela devolução representava.
No dia 12 de setembro, o cortejo seguiu para o município de Nísia Floresta. A cidade que havia sido chamada Papary, agora definitivamente homenageava sua filha ilustre. A Prefeitura local, sob os préstimos do prefeito José Ramires da Silva (*16.6.1923+25.3.2000), junto com autoridades estaduais, vereadores, Igreja paroquial e cidadãos comuns, preparou recepção popular. O ataúde foi conduzido em procissão pelas ruas até a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, onde foi celebrada missa solene pelo jovem padre Rui Miranda (1928-2011), que contava com 26 anos à ocasião.
Como o mausoléu definitivo
ainda não estava pronto, os restos mortais ficaram provisoriamente depositados
na Matriz, até que se concluísse a construção do túmulo no Sítio Floresta, em
1955, quase nove meses após a chegada, ao lado do monumento que havia sido
erguido em 1909, justamente sobre as ruínas da casa onde Nísia residiu. Esse
monumento foi erguido para se comemorar o centenário do seu nascimento, embora
que adiantaram um ano, tendo em vista que ela nasceu em 1810.
Outras instituições fizeram-se presentes: a imprensa local e regional, jornais do Rio Grande do Norte e de Pernambuco cobriram o evento, relatos destacam o envolvimento de cidadãos, associações culturais e entidades religiosas. Aviões sobrevoaram o local do cortejo, em Nísia Floresta, despejando panfletos com o retrato de Nísia Floresta e sua biografia preparada por Luís da Câmara Cascudo (1898-1986).
A
recepção não foi só de autoridades, mas de professores, estudantes, moradores
das comunidades rurais próximas, que vieram às ruas para saudar o corpo da
escritora que, décadas antes, havia deixado sua terra para viver entre
realidades de ‘exílio’ e inovação intelectual.
Esse conjunto de momentos - a chegada
conturbada a Recife, a consagração pública em Natal, a emoção em Nísia Floresta
- representa mais do que uma simples cerimônia: simboliza o retorno de algo
muito maior do que restos mortais. É o regresso da voz de uma mulher que falou
de igualdade, liberdade e educação quando ainda poucos se atreviam, é a
coroação de sua memória com o reconhecimento coletivo.
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