O DIA DA DESCIDA DE “EMANOEL”
Era
mais ou menos nove horas. O episódio passaria despercebido, não fosse o cuidado
do cura em celebrá-lo com alegria junto ao povo, eternizando-o nas lembranças
de quem o testemunhou, até que a morte os conduza aos sete palmos, e os sinos
“batam”.
Era
um dia muito especial para mim. Minha mãe estava em Papari, berço de nossos
ancestrais. Ela deixara o estado do Mato Grosso do Sul, dias antes, e passou
uma manhã comigo. Acostumado desde jovem a andar com máquina, registrei o
momento ao lado desse meu tesouro de incalculável valor. As imagens não são
perfeitas, pois descuidei-me de regular a velha Kodak, mas falam muito.
Além
do padre João Batista Chaves da Rocha – amante da História, portanto peça rara
nos dias atuais, havia seminaristas, coroinhas, delegado, prefeito,
professores, promotora de justiça (ainda me lembro do seu nome: Yádia Gama Mayo,
uma gaúcha que marcou história nessas plagas); juíza (Drª Eliane); também
faziam côrte vereadores, alguns secretários municipais, demais autoridades e
pessoas comuns.
O
sacerdote passava cá e lá, apressado, fechando os últimos detalhes para a
descida do sino da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó. Na terra da intelectual
Nísia Floresta, tudo é transformado em festa, assim como ela o fazia em seus
colégios no Rio de Janeiro, assustando os pais desacostumados ao lúdico.
O
povo aparecia de todos os lados, cheios de curiosidade. Um vuco-vuco
interminável. O sino, maciço, fabricado em bronze misturado a ferro, com peso
aproximado a uma tonelada, viera de Recife há mais de cem anos. Os infinitos
rebimbares, banhos de sol e chuva, segundo alegavam, causou-lhe uma rachadura
crítica, comprometendo o som, justificando a sua retirada.
“O som, agora, tá gasguito, não vai nem nos
conjunto; antigamente as badaladas respondia longe”, explicou o Sr. Bambão,
responsável por décadas pelo toque do sino durante as celebrações. Esse mister
foi herdado do pai e já fora transmitido ao filho Vicente.
“Cansei de estar no cercado e me guiar pelo
sino. Houve um tempo em que o sino informava hora, não era toda hora, mas
algumas horas. Lembro que próximo a Currais o som chegava para a gente”,
contou-me o senhor José Moreira do Nascimento, 85 anos.
“Em Tororomba, eu era pequena, menina, quando
mamãe mandava a gente ir pro banho; na primeira badalada do sino a gente corria
pro banho, jantava e fazia carrera pra rua pra missa; antes da última badalada
nóis já tava na igreja nas missa de Domingo”, explicou Natália Gomes do
Nascimento, 90 anos.
Os
depoimentos revelam o simbolismo todo especial acerca do sino da Igreja Matriz
de Nossa Senhora do Ó, cuja responsabilidade ia além do convite para a missa.
Ao longo de sua trajetória, a monumental peça serviu para comunicar ao povo
incontáveis eventos que se davam nos assobradados cômodos superiores da Matriz.
Era “o rádio” de Papari, assim posso comparar.
Blem...blem...blem...blem...blem...blem...blem...
o bispo Dom Perdigão adentrara na vila com comitiva, em visita pastoral. As
paróquias potiguares eram subordinadas ao Bispado de Olinda. O evento,
raríssimo, devia ser espetaculoso. A entrada do lugarejo fora decorada com
guirlandas de flores, fitas coloridas e o sino fechavam o papel de tornar
radiante o episódio. Seus badalos eram ensurdecedores.
Blem...blem...blem...blem...blem...blem...blem...
o alistador chegara à cidade para alistar jovens para a Guerra do Paraguai. O
imperador Dom Pedro não poupou província alguma. Duque de Caxias e Conde D’Eu
garantiam que retornariam vitoriosos, mesmo que custasse a vida de quase toda
população masculina jovem daquele país.
A
Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, em seus primórdios, era o centro das atenções.
Tudo acontecia na Matriz. Muitas vezes coincidiam datas. Todos os cômodos eram
usados. Pudera! Num tempo cuja cidade não tinha imóveis administrativos, exceto
prefeitura, a igreja cumpria papel de abrigar todos os serviços vindos de fora
para beneficiar o povo. A Matriz era auditório, escritório, berço de reunião
abolicionista, enfim centralizadora de tudo.
Durante
décadas o serviço militar foi realizado ali. As primeiras eleições deram-se
exatamente sob a cumplicidade das paredes da Matriz. O sino chamava os
eleitores para a eleição no primeiro andar da Matriz. A cidade, predisposta, já
sabia o que aconteceria, portanto aguardava apenas identificar o badalar. Era
hora de ir para a Matriz.
Poucas
pessoas sabem, mas os sinos da Matriz tinham nome. Uma das duas torres é o
campanário, onde ficava uma espécie de carrilhão. Ali moravam juntos o sino
principal, ou sino-mor, frontal, batizado de “Emanoel”, Deus Conosco, portanto
Deus chamava todos a toda hora para a sua casa. À sua direita jazia o sino
médio, “Joaquim”, o avô de Jesus. O sininho menor, ao fundo, Maria, a Mãe de
Jesus. Por último, o sino “Menino Jesus”. Eram quatro peças de tamanhos
diferentes. O soar dos sinos da velha Papari era pleno de sacralidade. O
rebimbar consistia em bênçãos levadas pelo vento a quantos casebres de taipa
alcançassem.
Do
alto do campanário, Emanoel, o velho de bronze, viu de tudo. Aliás, a família
testemunhou séculos de história. Viram os novo-fascistas se aglomerarem diante
de seu Cruzeiro quando do Integralismo. Viu a chegada dos despojos de Nísia
Floresta. Viu os negros escravos que em seus cômodos escuros eram guardados por
bondoso – e corajoso – padre abolicionista. Viu padres em conflito com
políticos, padres apaixonados por políticos, padres fazendo corridas de
jumento, freiras-vigárias escandalizando os católicos conservadores
simplesmente por serem mulheres, Campanha da Fraternidade sendo parida debaixo
de uma mangueira, enfim não houve episódio que ele não testemunhasse.
Tudo
o que dizia respeito aos paparienses tem as paredes da Matriz como testemunha,
e convocados pelos sinos. Sendo que nem todos eram badalados simultaneamente
para todas as situações. Por tudo isso a igreja é intocável. Tudo o que for
tocado para descaracterizá-la, consiste em afronta e mutilação à sua essência histórica
e, por que não dizer cristã.
Quando
o povo era convocado, o gesto se dava por toques específicos, extintos depois
que a cidade começou a ver erigidas as suas instituições públicas. Assim, os
espaçosos cômodos da Matriz foram sendo esquecidos.
No
aspecto ritualístico, havia outra simbologia nos toques do sino. Obviamente
falo de um tempo também remoto, anterior a 1996, ano que o sino foi arreado.
Havia toque para enterro de anjo, toque para enterro de pagão, toque pra
enterro de “moça-virge”, toque para enterro de gente idosa, enfim, os toques
informavam a cidade inteira sobre quem estava indo para a “terra dos pés
juntos”.
Os
três sinos, tocados simultaneamente, só aconteciam durante eventos festivos. O
primeiro toque da Hora do Angelus era anunciado por Emanoel. Maria se
encarregava de continuar chamando o seu povo nos demais toques anteriores ao
início do terço. Joaquim e Jesus sempre dormiam nesses momentos. Não se
incomodavam com a voz da filha. Certamente era música para os ouvidos deles.
Creio. O som de Maria, embora delicado, não era menos audível. Atingia a mesma
distância do Pai. Mas completamente diferente do som clangoroso de Emanoel.
Pudera! Até nisso os “engenheiros” medievais pensaram. Digo assim porque seu
contexto arquitetônico, embora do século XVII, é desse período.
Mas,
no tocante a tais simbologias, hoje restaram os toques pertinentes aos rituais
da missa, procissões, festividades externas. Aparentemente sino tem relação
apenas com alegria.
Não!
No
curso de um enterro o sino toca. Enterro dado à tardinha tem aura misteriosa de
tristeza. O ocaso e o momento fúnebre ampliam a sensação. A cor dourada da
tarde, sob o som letárgico da morte deixa uma sensação de vazio. Imagino o que
deve sentir quem enterra familiares nessas horas. Se eu morresse, queria
enterro com dia nascendo, pássaros cantando, sol vivo e cidade nervosa.
Mas,
retomando o assunto da retirada do sino. Há décadas que “Joaquim”, o gigante de
bronze e seus familiares, perderam o seu modo original de ser acionado. Escavacando
informações em 1992, os antigos não souberam me informar o ano dessa mudança.
Ninguém mais o tocava por via das cordas manuseadas no térreo, através de
adequados “puxavantes” ou “mucicas”...
É!
Havia toques embalados, lentos, nervosos e repinicados.
O
sino fica seguro através de uma estrutura muito fornida de madeira, atravessada
por um eixo de ferro encaixado na estrutura de alvenaria da própria torre. É o
contrapeso. Essa peça tem fundamental importância. O sino fica preso através de
sua coroa atravessada por esse eixo, depois encaixada na parede, num relevo
convexo. Um mecanismo o impede de deslizar horizontalmente. É uma mecânica
interessante, servida das leis da física.
Em
algum tempo do passado – ou desde a sua inauguração – o espetacular objeto e os
demais passaram a soar por via dos braços fortes dos sineiros, ou “mestres de
sino”, os quais seguravam (literalmente) o pinguelo interno, batendo-o contra
sua campânula. Esse pinguelo, em formato fálico, em sua função original, ficava
preso a um eixo abaixo da coroa, de modo que se movimentava livremente,
conforme as puxadas da corda.
Considerando
que em todos os lugares do planeta Cristianismo há um sino rebimbando através
de uma corda – livre, leve e solto – balançando em torno de um eixo horizontal
de 360º, exceto os elétricos e o de Nísia Floresta, suponho que algo de grave
aconteceu no passado, e pôs em risco os fiéis e o próprio “Emanoel” e seus
familiares, pois todos adoeceram. Seja o que for, nunca mais o sino retomou a
sua característica original. Nunca mais dobrou. Sempre recebeu pancadas por
força das mãos humanas.
Creio
que a rachadura, que teve comprometida a qualidade e dimensão de sua
sonoridade, foi ocasionada exatamente por isso. A pancada direta, dada pela
força do homem é incomparável à força provocada pela movimentação da corda. Há
uma física na reverberação dos sons, a qual se dá através do manuseio original,
por via das cordas.
As
pancadas que assisti ao vivo, algumas vezes, por curiosidade, se dão através de
força descomunal. E saber que Jesus, Maria e Joaquim também eram acionados
dessa forma, entende-se claramente porque se despedaçaram. Jesus, por incrível
que pareça, foi o que se danificou primeiro, a ponto de não existir nem rastos
para se fazer um chá (coisa de padres que não davam valor à História). Só resta
saber se Joaquim e Maria permanecem guardados, pois os vi até 2012. São peças
de valor estimativo incalculável. É a memória das raízes de Papari.
A
excelência dos sons só acontece por intermédio de sua mecânica original.
Observe o soar de sinos em algum filme. É um som melodioso, musical, harmônico,
agradável. Isso ocorre porque o sino, em sua essência, funciona assim. Talvez
os sinos foram inventados por poetas e músicos. Creio que em meio a tantas
interferências na referida Matriz, ao longo dos anos, esqueceram de devolver ao
sino sua gênese mecânica original. Esse reparo passa despercebido há séculos. É
algo a ser analisado e quem sabe empreendido por futuros padres.
Pois
bem, sua retirada, em 1996, ficou a cargo da Marinha, como se vê nas
fotografias. Os marinheiros quebraram a alvenaria em sua parte convexa, onde se
encaixava o eixo de ferro, peça principal na sustentação do objeto, e o
caminhão-guindaste fez vir abaixo Joaquim, já idoso, combalido e apiedado pelo
povo que o aplaudia com emoção. Todos sabiam que ele estava indo para o
hospital dos sinos, no Pernambuco. A Marinha montou uma equipada UTI, pois
tinha noção do notável paciente.
“Joaquim”
retornaria remoçado e curado da fratura.
Houve
muita alegria aplausos, falas, agradecimentos. Mas quando “Joaquim” deixou a
cidade, causou uma rachadura em todos os corações que ali estavam. O buraco
deixado na torre se estendeu a todos os distritos. Um vazio tomou conta de Papari.
Saiu dali o pai amado. Joaquim e Maria ficaram na UTI, acamados na caminha
detrás do altar-mor. Aguardam até hoje uma campanha. O povo não se preocupa
tanto com a História. É mais fácil dinheiro sair do bolso para coisas
supérfluas. Autoridades? Nem se fala. Boa parte quer coisa em troca. Fica
difícil. O Papa orienta que não é bom os religiosos se misturarem.
Dona
Maria do Carmo, esposa do Sr. Bambão, sineiro, não se conteve vendo o caminhão
deixando o Átrio da Matriz. Perguntei por que ela se emocionava. Respondeu:
“tenho medo de ele não voltar... de mandarem outro”.
Pessoas
com idades entre 80 a 90 anos, chorosas, contaram-me que não tinham noção de
quando Emanoel subira ao campanário. Óbvio que não se deu em 1755, data da
“conclusão” da igreja. Mas eu perguntei porque queria saber se ele havia sido
retirado antes. Se isso houvesse ocorrido anteriormente, os mais velhos
saberiam. E diante dessa informação passei a acreditar que o sino havia descido
uma única vez após a sua instalação original, há mais de cem anos.
Tudo
isso reforçam duas hipóteses: 1ª ele ter se rachado devido às pancadas dadas
através do pinguelo manuseado com as mãos; 2ª no ato da colocação já teria sido
constatado possíveis riscos de acidentes e, devido à gigantesca dificuldade de
retirá-lo e recolocá-lo novamente – através de força humana – adotaram o toque
por via das mãos, abolindo as cordas.
Isso
significa que, provavelmente, o sino de Papari nunca dobrou de fato. Ou seja,
nunca foi tocado do térreo da igreja, por via de corda com um sacristão se
dependurando e o objeto em pêndulo, em harmonia com o contrapeso. Em outro
momento contarei aqui mesmo como se deu a subida do sino quando da sua
instalação, há mais de cem anos.
Pois
bem, algum tempo depois o sino retornou. Foi outra festa. Parecia que o sol
estava sendo colocando no campanário. Emanoel reluzia mais que essa estrela de
quinta grandeza. Um senhor perguntou se ele era de ouro. Com certeza Emanoel é
de ouro! A restauração e o polimento deram-lhe coloração de ouro puro. Não se
percebia sinal algum de enxerto de bronze e ferro em sua campânula.
O
sino foi recolocado em seu local original após um único passeio. E Emanoel se
fez Deus Conosco. Nunca mais o viram tão belo. E os toques foram retomados ao
longo do tempo. As mãos humanas se encarregaram de permanecerem espancando-o...
blem... blem...blem...blem...
Trabalho
perfeito!
Não!
Passado
algum tempo a rachadura retomou o seu vinco original para decepção de todos.
E
nunca mais foi o mesmo. Ficou ainda pior.
Creio
que, hoje, essa peça deve ser descida e exposta à visitação pública, pois pode
se partir inteiramente. E outro, com as mesmas dimensões seja adquirido.
Sino
é comunicação, música, alegria... e pode ser tristeza. Ele ‘fala’ que gente
morreu, que Jesus subiu aos Céus, que a hóstia está sendo elevada, que a santa
chegou da carreata, que a procissão percorre as ruas, que uma virgem morreu,
que um anjo está sendo enterrado, que o morador antigo faleceu, enfim...
Blem...blem...blem...blem...blem...
Espera-se
que um dia o povo papariense se curve de fato à Sagrada Família de bronze, e
devolva a seu campanário legítimo.
Em
Papari os sinos nunca dobraram. OBS. Eu havia dado n título “CAMPANÁRIO DA SAGRADA FAMÍLIA – O DIA QUE “EMANOEL” DESCEU
AO SOLO DE PAPARI”, porém um sacerdote me corrigiu, explicando que a
Sagrada Família é apenas Jesus, Maria e José, portanto o mudei. OBS. O presente
texto foi iniciado em 1997 e concluído em 2019.
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