E TOME, E TOME, E TOME, E TOME E TOME...
(História real)
Habituado
a descer ao bairro Ribeira para fotografar, tomei, aliás, topei com uma cena
que me fez repensar sobre alegria, felicidade e jovialidade. Normalmente, quando escolho um
tema fotográfico, esquadrinho o local com a acuidade. Assim, compilo fachadas,
portas, janelas, portões, parasitas, enfim uma plêiade de elementos
históricos invisíveis para muitos. Pois bem, sábado elegi os ladrilhos
hidráulicos sobreviventes nos pisos do bairro aonde Natal veio ao Mundo no dia
de Natal.
Eu
registrava um chão de esquina, com nódoas de pisadas de bailes antigos. O
desenho era primoroso, lembrando minhas aulas universitárias de Geometria Descritiva. As cores
sobrepostas davam excelente noção de profundidade à maravilhosa arte.
Estabelecimento antigo, comandado por sobejos de famílias que resistem ali.
Deixei o local e segui contemplando.
De repente uma música foi se intensificando conforme a minha aproximação. Ouvi,
nitidamente: “e tome, e tome, e tome, tome, tome...”
A “cantiga de grilo” não
tinha fim. O refrão comandava a melodia, sufocando o restante da letra, se é
que havia.
E tome, e tome, e tome,
tome, tome...
Um transeunte falou-me:
cuidado, andar por esses becos tirando fotografia o senhor pode ser roubado...
acontece muito. Agradeci.
E tome, e tome, e tome,
tome, tome...
O mantra reverberava mais
alto, mesclado a cheiro de peixe frito. Logo senti um cheiro de bar e, mais
próximo, cheiro de gente esquecida. Muitas cadeiras e mesas emolduravam o
ambiente. Entrei e pedi um guaraná. Foi difícil a balconista entender. Música,
risada, gritos, entre e sai de gente, conversa alta...
E tome, e tome, e tome,
tome, tome...
No dancing, uma velha contando
uns sessenta e cinco anos se remexia num frenesi pleno. Nem todas adolescentes
mostrariam tanta malemolência. Morena, metida numa blusinha desses tecidos
moles, agarrados ao corpo (creio fosse um top), mini-saia nos mesmos conformes,
cabelos negros ao estilo tintura, unhas escarlates, roídas no toco como quem
lava muita roupa. Lábios realçados por batom lamacento na mesma cor dos dedos. Todos apreciavam o bailado da dançarina velha. Velha igual
aos casarios da Ribeira.
O público era diversificado. Gente de todas as idades. Um jovem parecia ser uma espécie de namorado da velha. Quando iam dançar juntos, o rapaz a reivindicava com bastante autoridade, rodopiando o seu corpinho com firmeza. Comparada ao porte do partner, ela se tornava boneca levada pelo compasso. Havia muita obediência nela.
O público era diversificado. Gente de todas as idades. Um jovem parecia ser uma espécie de namorado da velha. Quando iam dançar juntos, o rapaz a reivindicava com bastante autoridade, rodopiando o seu corpinho com firmeza. Comparada ao porte do partner, ela se tornava boneca levada pelo compasso. Havia muita obediência nela.
E tome, e tome, e tome,
tome, tome...
A música era intensa. Quando
em vez o rapaz a deixava no saloom e
se abancava à mesa para um trago. Os clientes apreciavam Pitu e Devassa em meio
a pratos variados, guiados a farinha. Uns com peixe, outros com galinha. Poucos
com camarão. A velhota seguia o jovem imitando-o no deguste. Após o gole, dava
uma rabissaca, fazia uma espécie de charme com os cabelos, e retomava o embalo
de sábado à tarde na Ribeira velha e abandonada. Era a atração do boteco. Seus
trejeitos de dançarina roubavam a cena, totalmente despreocupada com possíveis
censuras. Acho que não havia julgamentos ali. Sua plateia talvez a enxergasse
como poderosa.
E tome, e tome, e tome,
tome, tome...
Nada de a música parar. E nem
de a velha deixar de dançar. Se por ali passasse gente dada a recatos, enxergaria
devassidão. Não pela beberagem, creio, mas pela alegria e desenvoltura desmedidas.
Nada que não lembrasse muita felicidade. Todos gargalhavam, falavam alto, gritavam, comiam
sem etiquetas, brincavam. Algumas mulheres, sentadas sobre as pernas dos
homens, prováveis namorados, davam gaitadas demoradas, cujas bocas pareciam
engolir o Céu. A velha levantava o braço, variando a coreografia. Bamboleava os quadrios e ventre, ora de maneira amaciada, ora com caráter desenfreado. Havia uma moça eletrizante dentro dela.
E tome, e tome, e tome,
tome, tome...
A velha dançava a incessante música como se fosse a derradeira tarde com o seu bem. Haviam franguinhas jovens no cenário. O rapaz nutria fidelidade incomum para com a sua deusa. Beijavam-se
cinegraficamente com volúpia que coraria os pudorados. Esquecia de
informar: contava no máximo uns dezenove anos o rapaz. Era transparente não existir obstáculos naquela paixão espetaculosa, acariciada, clamante de olhares.
E tome, e tome, e tome,
tome, tome...
Dado momento, o rapaz
retornou à mesa, pôs-se a degustar pedaços fornidos de galinha e a jogar
colheradas de uma farinha amarela na boca. A velha, apegada ao dancing, dançava, dançava, dançava.
Havia charme no jogo de corpo da velha. Era um físico esquálido, obediente à
sua coreografia particular. Ela meneava a cabeça, segurava as mechas aneladas
como para fazer um rabo de cavalo. Os cabelos ondulados colaboravam com o
charme. De repente, penteava-os freneticamente, fazendo as vezes de pente seus
dedos abertos. Sacudia-os lá e cá, conforme os tomes. Era muito charmosa a
velha. Charme estranho, mas inegavelmente atraente. Havia uma preocupação constante em sensualizar. A intensidade de sua
graciosidade, mesmo esdrúxula, alçava volume à medida que era admirada. Os
olhares nutriam o seu poder de odalisca cheia de charme. Charme de velha alegre. Feliz. Jovem. Havia plenitude nela e na dança.
E tome, e tome, e tome, tome, tome...
A música era real, muito
presente. Após alguns instantes bailando sozinha a velha reivindicava o
parceiro. Fazia um rodopio e, tal qual uma franguinha, se amunhecava nas pernas
do namorado. Surgia um beijo hollywoodiano. Ares levemente erotizados escapavam
à platéia. Logo retomavam o dancing.
Dessa vez a coreografia emanava ares voluptuosos. Ela curvou o tronco para o
chão, fez como se acocorasse, colocou as mãos sobre os joelhos e jogou toda a
sua energia para as nádegas, tremelicando-a com fazia Carla Peres em seus
tempos áureos. Desabaladamente. A velha aproximava o bumbum o máximo possível
das frentes do rapaz. Ele colocava as mãos em concha sobre o bumbum da velha e
o segurava com firmeza. Era parte da coreografia. Outrora o rapaz mengava, ora agia
um tremelique na cintura. Era dança de intimidades.
E tome, e tome, e tome,
tome, tome...
A música saia das paredes.
Estava impregnada no boteco. Presa nas bocas dos presentes. Após essa
coreografia que pareceu exigir mais energia, retornaram a mesa para um reabastecimento de
cerveja e nacos de frango. O rapaz denunciava-se glutão e sorvia goles mais
generosos. A velha aparentava apenas molhar a língua como uma cobrinha
pesquisando cheiro. Logo se abancou
novamente. Dona de uma energia admirável, a velha riscou destino ao dancing. Passou a dançar freneticamente
uma mistura de coreografias fluídas de sua criatividade e dos eflúvios da água
que passarinho não bebe. Creio. Ela possuia uma criatividade admirável ao se movimentar,
E tome, e tome, e tome, tome,
tome...
O rapaz demorou-se na
consumação dos acepipes. A velha, agora, fazia charmes. Colocou o dedo indicador
na boca e fez cara insinuante. Não havia pista alguma de alcoolismo naquele
corpo antigo. O rapaz sorriu com as pálpebras querendo despencar. Ela piscou
como piscam moçoilazinhas apaixonadas. Fez rodinhas contínuas com o dedo
indicador, chamando-o ao seu posto. A dança continuou intensa como se iniciasse
naquele instante. A festa continuou. A velha continuou. Deixei o boteco,
admirado pelo show gratuito. Se me perguntarem o que aprendi naquela tarde de
boteco velho, diria: aprendi que felicidade e alegria são relativas.
No prenúncio do ocaso não
houve mais registros de ladrilhos-hidráulicos.
E tome, e tome, e tome,
tome, tome...
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