SENHOR ROSALINO
(CONTO DE FICÇÃO - INSPIRADO EM FACETAS REAIS)
A vida declama poemas inaudíveis a quem perdeu a graça de ouvir os sons
existentes atrás dos detrases. A mesma vida torna essa poética imperceptível a
quem sufocou a competência de enxergar o invisível. Ter a capacidade de
torná-los audíveis e visíveis comprova que a verdadeira visão vem da alma, e
reside nos recônditos mais inesperados da simplicidade.
Uma
antologia poética não significa simplesmente uma coletânea de poesias e poemas
guardados nos livros. Ela precisa ser outros, como escreveu o poeta Manoel de
Barros, sobre ele. O “eu” das antologias precisa ser dividido com os “eus”
existentes da alma de pessoas e coisas especiais. Uma declamação poética pode
ser o agir dessas pessoas. Pode ser o enxergar das coisas julgadas
insignificantes. Essas pessoas precisam ser lidas, pois são livros expostos nas
prateleiras invisíveis da vida.
O
senhor Rosalino foi uma dessas antologias de carne e osso que me impressionam
até hoje. Conheci-o quando ele contava 93 anos. A experiência de sua amizade
reforçou intensamente o meu modo de interpretar o homem comum, habitante dos
campos, roçados e lugares interioranos. No bojo desse livro vivo, a própria
velhice revelou uma face que eu não conhecia tão bem. Nunca me despedi dele sem
levar pepitas de ouro, furtadas despercebidas, enquanto ele exalava
poesia.
Os
europeus aprenderam a se curvar aos seus reis e rainhas. Os japoneses se curvam
aos professores. Exatamente o que sempre fiz, reverenciando os idosos, muitos
deles invisíveis por boa parte das pessoas. Os velhos são co-autores de quase
tudo o que escrevo. Não há como escrever sem vê-los e ouvi-los. Precisamos
jogar fachos de luz aos velhos poemas feitos de velhos.
Os
lugares rurais ou as áreas periféricas das cidades facilitam as relações com
pessoas antigas. Elas estão sempre defronte às suas casas, muitas vezes
esparramadas numa cadeira, ou mesmo sobre um tronco de árvore envernizado pelo
uso. As diversas nuanças do regionalismo têm lugar cativo na minha vida. Os modos de falar e a sabedoria dos velhos
instigam a minha curiosidade. Creio que nos meus de dentros há uma Ecléa Bosi.
Enxergar velhos talvez seja meu defeito de nascença.
Ao
longo da vida nós amealhamos um patrimônio no que diz respeito à nossa
existência. É o patrimônio cultural, afetivo, experimental que, segundo Nélida
Piñon, vai se avolumando, vai se fundindo continuamente ao que temos. Creio que
o patrimônio de pessoas iguais ao senhor Rosalino é mágico, pois concentra uma
antologia de práticas quase inexplicáveis. É o livro da vida. É a poética da sabedoria.
“Nunca vi ventos do Sul que aos três dias não chovesse”. Como sabe disso o
homem que nasceu e morreu num sítio e nunca pisou na escola?
O
senhor Rosalino nasceu e alcançou incríveis 103 anos de idade no mesmo
município. Chamava a passagem dos anos de primavera. Morava no Sítio Bananeira.
O máximo que se afastou do seu torrão natal foi quatro quilômetros rumo à
cidade vizinha. Viveu suas primaveras a dezoito quilômetros do mar, mas o
desconhecia. Declarava ter vontade de ver “aquele marzão de água de sal que
passa na televisão”. Mas certamente a vontade nunca foi prioridade. Lombo de
jumento não faltou à sua mocidade. Ônibus e bestas tem à vontade no presente. A
justificativa do senhor Rosalino é história de Trancoso, como ele próprio
sentencia aos fatos que não acredita.
A
infância, juventude e velhice desse alfarrábio de sabedoria tiveram como palco
os roçados de macaxeira, batata-doce, inhame, milho, enfim os incontáveis
ciclos de vida da agricultura e criação de animais. Ele nunca foi um engenho de
fogo morto. Vivia aceso e crepitante, moendo, moendo. Foi assim aos seus
antepassados. Era assim com ele. As estações do ano representavam as novidades
que renovavam as suas forças e espiritualidade.
Um
ano chovia acanhado, no outro o inverno gritava. Num mês morria uma bezerra, no
outro berravam três. Eram novidades que reivindicavam o seu envolvimento
constante. Pediam trabalho, força, suor, garra. O sítio, em suas infinitas
demandas, emanava poesias sem fim. Ele alegava que tudo aquilo era a sua vida.
Eis uma resposta a pergunta sobre a praia. Se ele fosse à praia, deixaria a sua
vida.
Perguntei
se ele gostava daquela lida. Respondeu que se nascesse novamente queria a mesma
vida e a mesma mulher, dona Janoca, de 93 anos de idade. Assim existia o senhor
Rosalino.
Nem
sempre ele respondia as perguntas de maneira óbvia. Quase sempre devolvia outra
pergunta. Outra vez sua resposta não correspondia ao questionamento. Depois,
através da convivência, nossa amizade fortaleceu e entendi melhor o exemplar
autêntico de poesia viva. Descobri que ele não vai à praia por estar colado na
Bananeira. Ele não se imagina distante de seu lugarejo. As respostas não
respondidas no momento da pergunta se revelavam no dia-a-dia. Nem sempre
através de palavras, mas pelos atos.
“Quer
conhecer tudo da pessoa, coma um saco de sal junto dela”, dizia. Seu adágio
servia para ele. Que pena ter experimentado tão pouco desse sal. Imagino se eu
tivesse apreciado todo o saco ao seu lado.
O
filósofo espanhol Jorge Larrosa-Bondía, defendeu que experiência não é o que
nos passa, o que toca ou o que acontece. É o que me passa, é o que me toca e o
que me acontece. Todos os dias passam diversas coisas, mas, ao mesmo tempo,
quase nada nos acontece. Resumindo: tudo o que se passa está organizado para
que nada nos aconteça. A experiência de vida daquele livro de sabedoria,
chamado Rosalino, se explica nesse filosofar. O sítio acontecia nele, passava
nele, através dele. O sítio o tocava. Ele vivia o sítio. O sítio era as carnes
dele.
Pilares
centenários de aroeira sustentavam o alpendre de sua assobradada casa de taipa.
Exemplar caiado com janelas em azul Royal tal qual o pai deixou. Ainda resiste
na mão dos filhos. Ambiente aconchegante e confortável. Não parecia feito
daquele material. Construção alta de quatro águas, coberta de telhas. Seu pai
nasceu e morreu exatamente ali. Ao bisavô não foi diferente. Declamava que o
sítio lhe bastava. Aqui tem de tudo e mais um pouco. O que não tem eu mando
buscar no comércio. Não posso viver no mundo, pois tenho criação. Quem vai dá o
cumê dos porco, das galinha? Quem vai olhá as pranta? Saia poesia do senhor
Rosalino.
O
inimaginável emanava daquele homem. Suas palavras encantavam. Suas atitudes
cativavam. Era um encantador de pessoas. Agia o impossível para a propriedade
lhe bastar. Fez galinheiro, chiqueiro, cerca, porteira, jirau, roça, leirão,
cacimbão, hortas no chão, hortas suspensas, pequenos açudes, forno, fogão à
lenha. Represou água do pequeno riacho, desviou para os leirões de inhame. Todo
dia um reparo. Sempre algo de novo, arrancado de suas lâmpadas invencionáticas. o Professor Pardal brasileiro.
Sabia
remédio e mezinhas para qualquer doença. Tudo tirado de sua terra ou mandado
buscar na feira local. Conhecia variados meles. Percorria a propriedade a pé,
ora no lombo de cavalo, ora na carroça, veículo de transporte de safras. Perdeu
as contas das experiências realizadas com plantas tentando adaptá-las às suas
terras, lugar cheio de invencionices. Criou uma floresta silvestre e frutífera,
verdadeiro Augusto Ruschi. Funcionou o seu mesmo amor aos bichos domésticos e
silvestres.
Conhecia
muitas espécies de borboletas, cobras, sapos, formigas, passarinhos, calangos e
lagartas. Identificava as vozes da passarada, traduzindo o que diziam para ele
ou para a mata. Sabia mais da vida daquelas miudezas florestais que da vida da
cidade. Essas coisinhas insignificantes enverdeciam informações preciosas sobre
a dinâmica do sítio. “Esse vem-vem cantando sem parar... tem gente estranha
chegando”. Dito e feito. Conservava mania de andar na mata. Dizia sentir-se
bem. Seria o parente nordestino do poeta Manoel de Barros?
Amava
conversar. “Gosto de jogar conversa fora”. Guardava histórias impensáveis sobre
os antes do seu município. Era fascinante ouvir suas trovas luso-nordestinas,
ibéricas e medievais relativas a príncipes, princesas, coronéis, figuras
cômicas, “malassombros”, cangaceiros, reis, santos e tramas de poderosos. Seu
HD mental armazenava romances datados de mais de setecentos anos, vindos nas
caravelas europeias, abancadas ali não sei como. Creio que o leitor tenha constatado a razão do meu fascínio
pelo senhor Rosalino. Era um homem cheio de páginas.
Vê-lo
acontecendo esses saberes punha-me perplexo. Muitas de suas páginas, segundo
ele, eram assinadas pela avó Sinhazinha. Outras, pelo avô Simplício. Muitas
dessas trovas, quase sempre trágicas, como a nau catarineta, traziam poesias de
reinos distantes e desconhecidos. Não tinha fim a sua Enciclopédia Sitiânica.
Enciclopédia da vida.
Quem
passasse pela estradinha de barro vermelho, batido, sinuosa, depois da ponte de
madeira do Roncador, florescida de ipês, se sentia atraído pelo cartão postal
em formato de sítio. Era a terra do senhor Rosalino da Silva, como diziam os
moradores dali. Se aquele Éden me pertencesse, o mar não seria um meu
conhecido.
Nunca
vi pessoa igual para interpretar os fenômenos naturais. Quase tudo tinha
explicação que fluiam com espontaneidade. Mestre ou doutor da vida seria título ideal ao senhor
Rosalino. “As formigas tão trilhando desde antonti. É chuva boa; elas pendem
pro sul”. Outra vez sentenciava “céu talhado, chão molhado”. Explicou-me que se
o céu estiver parecendo leite coalhado, é chuva naqueles dias. A chuva será
muita, senhor Rosalino? “Mais ou menos, tá meio esfacelado o céu, mas vai
molhar. Os carão não tão cantando muito. Quando pegam cantar tão chamando
inverno franco”.
Nunca
visitei o senhor Rosalino para não levar para casa um novo conhecimento. Era um
baú de sabedoria. Certa vez, o apanhei fincado no seu canavial. Estava
agachado, cutucando os brotos novos de cana. Tive uma aula que nunca me
esqueci. Ele disse para os seus botões: “essa já é a ressoca!”. Aquilo chamou a
minha atenção. Perguntei sobre o assunto ele explicou que quando se planta um
olho de cana pela primeira vez, está-se fazendo a “planta”. Ela brota, cresce e
é colhida. Fica a touceira. Ela vai dar vergônteas. É a “soca”, ou seja, as
raízes que ficaram da primeira colheita. Quando você repete o corte da cana
adulta e deixa novamente a touceira, partirá para a “ressoca”, que é a terceira
versão. Quando corta pela terceira vez e brota novamente teve-se a contra-soca.
Como saberia disso sem conviver com aquele tesouro preciosíssimo?
Um
dia, o avistei pingando um líquido avermelhado num ferimento do dedo. “É
Barbatimão”, o melhor remédio do mundo para fechar ferida”. Explicou que o
produto não deixava o machucado inflamar. Vinha da casca de uma árvore, curtida
em álcool até ficar escura. Passou uma hora desenrolando o novelo de suas
propriedades curativas.
Explicou
que barbatimão “bota abaixo qualquer doença de mulher”, infecções urinárias,
“coisas na pela”, “ursa”, inflamação, infecção, “probremas de veia”. Destacou
que, curtido em água, através de garrafadas, podia-se beber em doses pequenas.
Servia para curar diarréia, inflamação da garganta, hemorragias, escorbuto,
complicações pulmonares e respiratórias.
“Os
estudante vem aqui buscá prá esses negócio de pele”. Relatou que o uso popular
do barbatimão vem das cascas, do caule ou entrecascas na forma de decocção,
infusões e tinturas. Corri no “Dr. Google”. Descobri que a farmacopéia
brasileira usa esse produto na fabricação de antibióticos e até pomadas.
Impressionante!
O
velho Rosalino tinha uma saúde de ferro. “Meu filho, eu não sei o que é doença.
Se uma dôzinha nas perna vez em quando for doença, é a única que tenho; basta
pegá trabaiá e some tudo”. Ele possuía uma vitalidade admirável. Não parecia
ser tão espichado na idade. Agilidade, destreza e lucidez eram sinônimos
daquele homem antigo. Proclamava: “o que adoece o povo novo é dormir demais e
não trabaiá. Quem cedo se deita e cedo se levanta, doença, pobreza e velhice
espanta. As pessoa têm que se movimentá”. Ao dizer isso, sentou-se no chão e
suspendeu as duas pernas atrás do pescoço. Fiquei perplexo!
Condenava
visitas cheirando votos. Atendia bem. Não fazia questão de se demorar com elas.
Alegação de sempre: o sitio precisado dele. “Esses povo vive aqui pigorando apoio,
eu só tenho o meu voto; não arrebato eleitô, se bicho e pranta votasse eu até
ajudava”. O velho era uma reserva moral no pacato município. Nunca se envolveu
com nada que não fosse da porteira para dentro. “Quem se mistura com esse povo
perde a cor”.
Quando
convidado para convenções e comícios, a pedido dos figurões políticos, alegava
sem cerimônias: “eu que não vô prá comiçu. Acolá prá cá tem a mesma passada.
Quem vai cuidá dos meus bicho?”. Seu modo sincero, longe de soar grosseiro, não
antipatizava, certamente pela serenidade. Assim despertava respeito e
admiração. Ele não se via fora do seu habitat.
A
idade avançada legou-lhe uma alimentação mais comedida, obviamente pelo ritmo
de seu metabolismo, mas comia de tudo, priorizando os produtos do sítio. Cansei
de vê-lo sob as árvores, comendo mamão, goiaba, chupando cana. Era uma graça!
Escondia um menino dentro dele. Creio que há um novo nas entranhas dos velhos.
Alguns permitem serem carregados pelo menino. Outros, não. São os idosos
rabugentos, como dizem. Ou aqueles cuja doença os aquietou. Muitas vezes
acompanhei os seus almoços e me descobri numa aula de gastronomia. O sítio
tinha um academicismo. Foi quando o encontrei almoçando com a esposa. Faziam
uns bolos amassados com as mãos. Misturavam feijão verde com farinha de
mandioca. De quando em vez, sorvia seu caldo numa xícara de louça. Ele dizia
“loiça”.
Perguntei
da iguaria. “É raposa”, nome do bolo moldado nos dedos. Almoço com “raposa” é
exclusividade na mesa do povo daquele lugar. Não se comia outra coisa. Alegava
que a iguaria já era o “conduto”. Findado o banquete, mastigava um naco de
rapadura e bebia água de pote. Às vezes, rapava o doce com faca e jogava as
pazadas na boca. Dona Janoca o imitava, depois ia para o jirau lavar as
caçarolas. Uma multidão de galinhas, patos, perus, chafurdava a água escorrente
no rego. Hora da merendinha dos bichos. O velho ganhava cadeira de balanço,
sesteando meia hora. Nunca esticou mais que isso. Cena antiga, começada com
seus antepassados.
Havia
uma rotina no sítio. Na verdade era literalmente um novo dia. O leitor vai
entender adiante. Todos acordavam às quatro e meia. Um dos filhos ordenhava,
serviço que o velho tinha condições de fazer, mas, por prudência, abandonara.
Dona Janoca molhava as plantas que emolduravam a casa. A luz do dia chamava
para o café passado pela esposa ou alguma filha. O velho ficava cheirando o que
fazer. Era sempre depois do café. Então ganhava o sítio. Ele apreciava cuscuz
com ovo, carne guisada com fruta-pão, macaxeira com peixe. Não gostava de pão,
exceto o que a esposa fez durante a vida toda. Abandonara recentemente o
fabrico devido a idade.
O
forno à lenha caiu para filhos, genros e noras, em ocasiões especiais, atrás de
assar leitão, bolo de macaxeira, bolo preto e outros pratos de festa. Encerrado
o café matinal o senhor Rosalino ganhava o sítio, sempre misturado com filhos
ou netos. Retornavam às onze horas. “Bora merendar”, assim dizia. Jantavam às dezoito horas. No frigir dos ovos
o dia fora diferente, pois duas porcas pariram, o pé de pupunha desabara sobre
o galinheiro. O touro da vizinhança fora visto no milharal à tardinha. Os dias
diferiam em sua rotina.
Havia
uma televisão na sala. Sentenciava que televisão estragava a pessoa. “Essa tal
tem coisa boa, mas a maior parte é milacria”. Priorizava o rádio para ouvir a
Hora do Brasil. A família seguia a cartilha espontaneamente. Aprendiam vendo.
Dona Janoca se corava quando assistia certas cenas de novela. O lugar da
televisão era gasto com um toco na porta da casa. O velho espalhava histórias
de Trancoso em quem chegasse. Senhor Chicó, vizinho, estava ali quase toda
noite, agarrado àquelas viagens, muitas vezes com “the end” de malassombros.
Encerrada
a programação, ele dormia igual a um anjo. A madorna se esticava até a hora do primeiro canto dos galos. Como foi dito no início, ele
não trocava a lida do sítio por nada. A esposa não fazia diferente. Pareciam
engenho em movimento o dia todo. Isso o afastava de televisão e outros inventos
que porventura algum neto lhe apresentava, talvez tentando aquietá-lo em casa.
Quando lhe foi mostrado o aparelho de celular, disse “isso faz é má,
desassossega a gente; eu quero é paz aqui no sítio”.
Na
época junina o sítio formigava diferente movimentação. O milharal, plantado em
março, após o dia de São José, explodia espigas gigantes. Uma multidão de
familiares e vizinhos alegrava a colheita, preparando canjica, bolo e pamonha.
O fogão a lenha ardia até a boca da noite. O processo começava pela manhã. O
sítio cheirava a comida de milho. A casa não tinha lugar para espalhar
travessas, pratos, quartinhas e panelas cheias de acepipes.
O
empreendimento se dava na antevéspera de São João. O dia seguinte era exclusivo
para espalhar varais de bandeirinhas, fazer fogueira e outros preparativos para o festeiro que tinha início às dezenove horas e adentrava na madrugada. O evento se regava a forró com sanfona, triângulo, zabumba e pandeiro. As girândolas do fogueteiro “Mané Catinga” tinham lugar cativo.
Engenharia precisa. As explosões eram obedientes ao velho Rosalino que
comandava o ritual junto ao fabricante. Havia anunciação para que todos
despejassem os olhos na engenhoca. O resto... o resto era poema.
Encerrado
o foguetório o senhor Rosalino ganhava a cama às onze horas. Nunca excedia. Os
demais caiam no forró. Data de dormir tarde também era a véspera do Natal. Um
dos únicos dias que deixava o sítio à noite. A família assistia a missa do
galo.
“Elia
disse a Elói e Elói disse a Elia, que o cobreiro se cura com arruda e água
fria”. Assim o encontrei certo dia, explicando a um vizinho mezinha contra
cobreiro. Em seus raros dias de peixe fora d’água, se abalava à cidade para
resolver assuntos de escritório, cartório ou “nos lugar de dotô”, como dizia.
Era quando gastava cerimônias. Os modos corteses, nem por isso despidos do
pitoresco se revestiam de polidez.
Nesse
dia emborcava o chapéu para o peito. Diante de tais “doutores” usava a
expressão “falando com pouco ensino”, ou “com licença da palavra” antes de
abordar o assunto que o arrastava ali. Já na rua roubava a cena. A cidade
inteira corria para vê-lo. “Seu Rosalino... Ô, Seu Rosalino... Seu Rosalino...”
O velho era reverenciado por sua decência e o fato de espalhar a poesia gostosa
dos seus palavreados, suas sintaxes tortas, enfim tudo o que ele falava era
singular e atraente. O transeunte daquele dia não era uma pessoa qualquer. Era
“Seu Rosalino!”. Nessas visitas
reclamava dos preços de tudo “foi-se embora a caridade, só ficou a carestia”.
Ele não falava. Ele poesiava.
Três
anos sem vê-lo. Soube da sua morte. Deus lhe concedeu 103 primaveras. Quase
morri. O dia foi de lembranças em meio a risos, choro e contemplação do
horizonte. Não era para pessoas daquela qualidade partir. É desperdício.
Enterraram uma biblioteca viva. Desapareceram para sempre infinitos adágios,
neologismos, frases de efeito, poesias, invencionices verbais, brincadeiras,
sermões, comparações, interpretações sobre a natureza, pessoas, bichos, vida...
Não
dá para listar o que foi perdido. Dá pena ver morte de pessoas-ouro, pessoas-baú...
pessoas sábias iguais ao senhor Rosalino. Ele que, gratuitamente, e sem
perceber, me outorgou um certificado de conclusão do curso de Pessoas-Poemas...
disciplina raríssima, quase extinta. “O ser humano é uma amostra no tempo da
natureza humana”. Assim escreveu o psicanalista inglês Donald Winnicott...
LUÍS CARLOS FREIRE - 2001
LUÍS CARLOS FREIRE - 2001
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