VOTOS DE POBREZA
(Conto de ficção)
Manjedoura
é nome da cidade antiga, fincada naquele sertão quente e acanhado. O topônimo
sugestivo denuncia a religiosidade cristã de seus habitantes, talvez para
amenizar a temperatura ou passar impressão de recanto de paz. A cidade, igual a
quase todas, vive de verbas do Governo Federal. Lugar pobre. Paupérrimo. A
igreja de São José é o centro das atenções, berço de festividades constantes. Lugar
de projeção de políticos e revelação de cantores. Os eventos insistem em dar vida
ao lugar moribundo, exceto de gente e bichos que insistem naquela secura. O
mexerico do momento é sobre uma adutora se arrastando próxima. Quase ninguém
acredita que terá água de torneira.
O
menino João Lucas, ou “Luquinha”, como o chamam, nasceu numa casa de taipa, no povoado
de Lago Seco. Moravam de favor, como sempre reclamava a mãe em seus ápices de
agruras. Passavam muita fome. Ela culpava-se não terem um pedaço de chão. A
propriedade pertencia a um fazendeiro que os instalou ali sob a condição de
plantarem e criarem pequenos animais num perímetro determinado. Era homem bom,
mas sabiam que a qualquer hora a terra seca poderia ser reivindicada sem dó nem
piedade. Eles se valiam da religiosidade do dono. Entendiam que gente que tem
religião faz o que Jesus ensinou. São oito filhos do casal José Bernardo e
Celestina. Cinco deles nasceram ali.
A
criançada cresceu no terreno de arisco, pedras e lajeiros. O caçula vivia
perguntando a mãe por que o final do mundo se mexe igual minhoca. É quentura
meu filho! O sol bota esses engano na gente. Às veis parece que as pranta tão
dançando!
A
família amargava uma espera eterna pela chuva para botar roçado. Os meninos viviam
cutucando locas com Tubarão, cachorro esperto feito o diabo. Assim traziam a
janta de preás que seriam comidos com farinha seca. Nos invernos bons plantavam
feijão, milho, macaxeira, inhame e batata-doce. A colheita ficava guardada num
puxado reservado, mais vazio que cheio. A estiagem era do cão.
A
roça significava a base de sustentação daquela região pobre de quase tudo. Um
compadre, solidário à pobreza da família, doou uma bezerra que já completava
uma década de vida. “Malhada” parecia gente da família. O úbere da pobre
inchava conforme dava capim no leito da lagoa seca há duas léguas do casebre. Era
o único lugar úmido. O cheiro de varjão tinha foros de perfume para quem ali
chegasse.
Malhada
contava com a reverência da família. Era provedora de comida. Muitas vezes se
transformou na única fonte de alimentação. Dela vinha leite, coalhada, manteiga
e até manteiga de garrafa. Muitas vezes a infeliz mastigava apenas uns fiapos de
capim e palmas que mais pareciam folhas secas. Tempo de leite com sangue.
Diferente dos dez litros na chuvarada. As incertezas do lugarejo fabricaram uma
população de cara engelhada a maracujá velho. As pernas lembravam pernas
de sibite, pássaro local, magro como agulha. Eles mesmos se comparavam assim.
José Bernardo era conhecido na região como “Zé
Bebé”, e não sabia a origem do apelido. Gente estranha que chegasse ali a sua
procura não o localizaria se não descobrisse o apelido. Todos dali só atendiam
por pseudônimos. Era Zé Preá, Tõe de Dona, Noquinha da Rodage, Cara de gato,
Juca tetéu, enfim o nome de batismo era estranhado até pelo vizinho.
O
mais velho dos meninos, Didi, já andava arrastando as asas para os lados de
Filó, cabrinha formosa, filha de João de Iazinha. Os pais não desaprovavam.
Eram pobres iguais. Mas não deixavam de chorar o futuro daquele engate. Pareciam
ter em mãos um bola de cristal. Ali todos cresciam e morriam iguais. Os outros
meninos, com idades em escadaria, ainda não tinham acordado para o amor. Talvez
a vida salobra aquietasse o coração.
Luquinha,
como já foi apresentado, cansado de ter os pés picados por formiga de roça,
jurava um dia ter outra vida. Passava as raras folgas quebrando galhinhos de
juá que lhe ajudavam a pensar vida melhor. Matutava ser tudo. Só não sabia
como. Não entendia por que o dono daquelas terras – que aparecia ali vez em
quando – tinha tanta comida, roupa boa, dispensa coalhada de rapadura, farinha,
feijão, queijo e coisa vinda da capital. Coisas gostosas que ele nem imaginava
o que era, mas queria comer. As visitas do “Coronel Suassuna” tinha ares de
vigilância, como se dissesse só vim lembrar que a terra é minha. Os pais
cobriam o velho de deferências e arreganhados de dentes. A humilhação o
incomodava.
O
velho costumava aparecer numa Chevrolet D-20 do ano. Saltava perfume de dentro
da boleia. Contrastava com a casa velha impregnada de picumã e fumaça do fogão
quase sempre de fogo morto. Os meninos menores rodeavam o carro como se visse
algo divino. Luquinha, que já apresentava um comportamento diferente, sentia
vergonha. A mãe sempre dizia após sua despedida que mais uma vez não havia
botado café para o coronel. Essa realidade torturava a mente de Luquinha.
Naquela
semana houve festa no lugarejo. O novenário de São José antecedia o dia
dezenove, dia do pai de criação de Jesus. Era tempo de se deliciar com café,
bolo de milho, tareco, solda, rapadura e comida de panela. As poncheiras vinham
cheias de suco de frutas da capital. Todos colaboravam, principalmente os ricos
de Lago Seco. As novenas pediam bom inverno. Se chovesse na data significava
março de cumulonimbos.
O
novenário daquele ano trouxe um fato novo para a família de Zé Bebé. Padre
Totonho inventou pedir Luquinha para coroinha da igreja de Manjedoura. A mãe se
balançou. É uma boca a menos pra comer. Ano passado não choveu uma gota do céu.
Besteira! Eu careço dos menino pra lida no mato. O pouco que temos vem do nosso
trabalho. Pois pra mim ele ia. Pois por mim não vai. Futuramente o menino pode ir
para a capital estudar no seminário; sai daqui recomendado por mim. Aprenderá Filosofia,
Teologia, só coisa boa. Se não for do gosto dele pode virar um professor, o que
ele quiser. O sacerdote fez a sua propaganda.
Luquinha
ouviu a conversa. Daquele instante em diante o seu pensamento não era outro que
não fosse ser coroinha. Pensava na oportunidade de comer bastante carne. Dizem
que na casa paroquial tem até postas de peixes, dessas que vem do mar. O padre
tem carro. Vou andar de automóvel de uma capela a outra. Quem sabe até dirigir.
Acordou pedindo ao pai que o deixasse ser coroinha. Ora seu cabra! Nunca
imaginou isso, bastou ouvir aquele velho caduco e já quer andar enfiado em
igreja. Não tenho filho pra andar de saia. Que desrespeito é esse, Zé? Padre
Totonho é hômi de Deus.
De
fato, depois de ouvir a conversa do padre, Luquinha mudou. Lago Seco ficou
amargo, aumentaram as formigas picando-lhe os pés, a comida, escassa, tornou-se
indigesta, a lida na roça virou tortura, desaprendeu a tirada de leite na
madrugada, esqueceu-se de como ajeitava a carroça no animal, perdeu-se indo
buscar água barrenta no açude moribundo, enfim mudou da água para o vinho. Caiu
emburrado. Coroinha. Coroinha. Coroinha. Aquele padre dos mil e seiscentos
diabo inventou uma miséria dessa com esse condenado. Maldita hora riscou aqui.
Perdi o menino. Diga isso não hômi. Tudo é providência de Deus. O ambiente
tornou-se difícil depois do convite do padre.
Na
semana seguinte, Luquinha não comeu mais. Ficou amuado e caiu a vomitar. Dona
Celestina pôs-se em desespero. Bateu na casa de sinhá Preta, benzedeira e
parteira, fazedora de mezinhas que ressuscitavam defunto. A velha benzeu o
menino. Não é quebranto. Ele viu alguma coisa estranha. Está assustado. Só
vancês sabe o que foi. Procure consertar pela conciênça. Deem muito chá e faça
ele engolir pelo menos cabeça de galo. Se quisé tenho ovo lá em casa. O pobre
ta um sibite baleado. A velha se despediu. Esse cabra ta precisado de peia.
Diga isso não, Zé, causa revolta no pobre. Tu sabe o que é. A gente pode até
perder esse inocente. É da vez que eu me jogo cacimbão abaixo. Deixe de suas
milacria, condenada!
No
outro dia o padre Totonho amanheceu na porta. Trouxe uma caixa com muita
farinha, feijão, queijo, rapadura e carne de sol. Vez ou outra ele aparecia com
esses tesouros. Zé Bebé tomou um susto. Nessa hora de seca extrema, se a gente
não se ajudar, morremos todos de fome. Foi Jesus que mandou. Não se envergonhe
não. Dona Celestina fez o sinal da cruz e agradeceu a generosidade.
Perguntando
pelo menino, teve a notícia da doença. O sacerdote foi até a cama, abriu a
janela do casebre e olhou os olhos de Luquinha. Deixa eu levar esse menino para
a cidade. É coisa de médico. O casal se entreolhou. Eu agradeço vossa bondade
padre, mas a gente já ta dando um chá aqui mesmo. Sinhá Preta teve aqui. É
pantim de menino-buchudo. Inventô essa manha agora. O sacerdote alertou sobre a
magreza de Luquinha e, com muito custo, saiu dali com ele. O diabo quando não
vem, manda secretário! Celestino, hômi de Deus, não diga uma blasfêmia dessa!
Deus vê tudo. Que coração duro!
Passados
quinze dias o padre mandou chamar o casal. Luquinha parecia outro. Engordou.
Estava viçoso, enfatiotado, olhos brilhantes, cabelo penteado. Recebeu roupa
nova e andava correndo os olhos na Bíblia, arriscando estudá-la. Em casa
conheceu um livreto velho de oração comprado no mangaio pela mãe. Nunca abriu a
primeira página. O sacerdote alegou que o menino não tinha natureza para sol e
serviço pesado. Pediu para colocá-lo na escola da cidade e torná-lo coroinha.
Luquinha
havia conversado com todas as pessoas da igreja sobre esse sonho surgido de
última hora. Deixe o garoto aqui que estará bem cuidado. Todo final de mês ele
passará o final de semana lá em Lago Seco com vocês. A mãe olhou o pai,
desconfiada. Sua fisionomia dizia mil impropérios. Para surpresa de todos o pai
concordou. Percebeu que o filho estranharia o casebre. Tá certo, ele fica, mas
qualquer coisa mande para lá que é o lugar dele. Não quero dar despesa para a
igreja. O certo é o povo dá e não tirá da igreja. Eu memo só não dô proquê num
tenho nem para mim. Despediram-se. Dona Celestina esse saco de cume é para
vocês!
Passados
nove anos de estadia na casa paroquial Luquinha caiu no Seminário de Santo
Expedito, na capital. Na realidade, Luquinha morreu, virou o seminarista José
Lucas da Silva. Foi difícil ao pai aceitar a escolha do filho, mas ele teve
esse pressentimento quando deixou o menino com o padre. José Lucas, já rapaz,
desasnou rapidamente, tornando-se muito ativo e envolvido nas coisas da
arquidiocese. As lembranças amargas de Lago Seco o empurravam para a nova vida.
Como
costume na capital, as famílias ricas adotavam os seminarista e forneciam de
tudo. Luquinha, aliás, o seminarista José Lucas foi acolhido pela senhora
Guilhermina Andrade Couto, uma das famílias mais abastadas da capital. Diferente
do que contam sobre madrastas, a senhora Guilhermina cobria José Lucas de
presentes e o tratava com muito carinho. Transferiram o padrão de vida deles
para o seminarista. Seus presentes eram quase sempre importados. Os melhores
perfumes; camisas de linho, calças, cuecas, cintos, calçados, meias compradas
em lojas de grife do shopping. E isso não era exclusividade apenas dele. Todos
os seminaristas experimentavam a mesma generosidade de suas madamas.
Padre
Totonho havia dito a José Lucas, ainda em Manjedoura, que o chamado de Deus
significa viver a igreja de Cristo e abandonar pai e mãe. A messe é grande e
precisa de operários. A vida eclesiástica torna-se a nossa família. Os fiéis se
tornam semelhantes aos nossos filhos. Cumprimos o papel de Jesus, evangelizando
sempre. Padre é pai de todos. É a nossa eterna missão. Explicou que Deus é pai
e mãe ao mesmo tempo. Essas palavras latejavam os pensamentos do seminarista.
José
Lucas levava a sério a orientação, afinal o padre Totonho era idoso e muito
respeitado. Possuía uma biblioteca que ele lutou em vão tentando contar quantos
livros existiam nela. Foi naquelas prateleiras que ele descobriu o padre
Antonio Vieira e se apaixonou pelo seu modo de escrever. Padre Totonho era muito
culto e desapegado de coisas materiais. Dizia que um padre deve se alimentar
bem e nunca desprezar o hábito. Esse é o nosso luxo. Só isso. Tinha costumes
simples e ajudava a todos. Não havia casa que ele não visitasse.
José
Lucas não entendia exatamente a razão de tantas colocações, mas sentia verdade
nelas. A saudade incondicional da mãe pulsava junto às batidas do coração. O
pai era uma lembrança vaga. Recordava-se com carinho dos irmãos. Numa ocasião o
padre Totonho disse a José Lucas que ele propusesse ao reitor do seminário
realizar projetos nas favelas e áreas periféricas. Peça ao reitor para estarem diretamente
em contato com os pobres, façam campanhas para aquisição de roupas, remédios,
livros. Levem cinema as pobres, propiciem cultura a eles. Visitem casas, curem
feridas, beijem os pés dos desvalidos, façam caçarolas de sopa e entreguem
diariamente. Viver os votos de pobreza é estar junto dos que tem fome, e não
junto aos abastados. A fé sem obras é vã. É teatro. Esteja em conformidade com
o juramento sacerdotal.
Você
não é um miserável por viver o voto de pobreza. Tenha apenas o suficiente para uma vida confortável.
Isso é viver em Cristo. Se Jesus estivesse aqui, estaria nessa lida. Fique
longe da ostentação e palavras torpes. Que a Bíblia e os bons livros sejam a
sua companhia. Um dia João Lucas contou aos seminaristas a história de
abandonar os pais e viver para a igreja, contada pelo padre Totonho. Uma
gargalhada uníssona e estrondosa quase pôs abaixo os dormitórios. Aquilo é um
dinossauro da era paleozóica. Que invenção idiota. Ele quer padre, assistência
social ou um bando de mendigos? Estamos n’outros tempos. Ninguém aqui é cópia
de padre José Maria. Ele que é santo.
As
relações diárias com os outros seminaristas permitiram a José Lucas constatar
algumas atitudes que se chocavam contra o que ele aprendeu com o padrinho
sacerdotal. Nas horas de estudo as conversas se desviavam para novelas da
Globo. A maioria não perdia um capítulo. Quero ver se hoje Tomé vai transar com
Júlia. Parece que hoje fulano vai assassinar mais um. Os assuntos saltavam de
novela para filmes, passeios em shoppings, perfumes e roupas. As resenhas
entravam a madrugada quando os seminaristas chegavam das casas de suas madames.
José
Lucas percebia deslumbramento em quase todos os seus companheiros, os quais,
iguais a ele, vinham de famílias humildes. Tudo o que tinham no seminário era
impensável quando viviam em seus lugarejos. José Lucas se perdia em reflexões.
Todas lhe levavam às palavras do padre Totonho.
Na
realidade o seminarista de Lago Seco tinha sensação parecida. Sentia uma
espécie de superioridade pelo que amealhara em roupas e assessórios pessoais
desde que chegou ao seminário. Seu sonho era retornar vez em quando à
Manjedoura e andar pela cidade mostrando relógio e roupas de rico. Imagina o
que sentiria papai. Creio que ele rosnaria. Mamãe ficaria orgulhosa. Meus irmãos,
coitadinhos, sentiriam vontade de ter minhas roupas. Mas logo o pensamento
mudava. O que ele bebeu na fonte do padre Totonho o colocava em conflito
psicológico. O sacerdote de Manjedoura sempre botou freio curto em vaidade.
José
Lucas percebia muitas risadas e brincadeiras durante as missas, protagonizadas
por alguns seminaristas. Vez ou outra ele conversava com algum postulante sobre
as suas observações e sentia que não estava só naquela análise, mas que o
número de praticantes do estranho comportamento era maior.
Aos
finais de semana os seminaristas ficavam excitados, aguardando suas madrinhas
buscá-los para passeios ou estadias luxuosas em suas mansões. Outros ficavam
nas casas das madames, pois se tornaram-se íntimos das famílias. Num desses sábados
a sua família postiça teve um imprevisto e restou-lhe as paredes do seminário.
Lembrou-se das obras do padre Antonio Vieira.
Exatamente
nesse dia cismou de ler o Sermão da Sexagésima. A coleção ficava num cômodo
reservado para obras raras. Raramente alguém entrava ali. Nesse espaço ele visualizou
o flagrante que o chocaria, protagonizado por dois seminaristas. Virou uma
pedra. Ao longo do tempo percebeu que a cena se repetia com meia dúzia de
outros. Sentiu vontade de retornar à Manjedoura, mas o choque da miséria o
freou. As raras vezes que visitara os pais imitava o coronel Suassuna. Mal
deixava alimentos e algum dinheiro nas mãos da mãe, obtidos de agrados das
madames, riscava para os pés do padre Totonho, sua referência masculina e
cristã.
Não
conseguia se demorar na casa onde nasceu. Tudo ali permanecia amargo e
indigesto. A roupa pegava a catinga de fumaça do fogão à lenha, a calça sujava
nos picumãs, a comida era seca que não descia. Sua pobre mãe sequer sabia o que
era maionese, prato que ele enaltecia sempre. Um dia talvez eu comerei isso,
meu filho, mas enquanto nem sei o que é me basta. A água salobra, o pai,
monossilábico, os irmãos barulhentos, o berro de Malhada. Tudo o incomodava.
A
cena da biblioteca o fez pensar em retornar, mas para morar na casa paroquial.
E o meu futuro? Nesse momento ele lembrou que sonhava possuir um Duster igual
ao marido de sua protetora. Sonhava vestir mantos luxuosos semelhantes a muitos
padres, imaginava roupas luxuosas de passeio, os samartphones do ano, enfim lhe
agradava a opulência. Excitava-lhe ver padres chegando ao seminário com
motoristas ou eles próprios dirigindo modelos que mais pareciam naves de outro
planeta.
O
pátio da catedral metropolitana se assemelhava a uma loja de carros de altíssimo
luxo. Uma vez ele constatou haver ali automóveis Audi, Duster, Range Rover e outros.
Para estragar o espetáculo de gala, uns modelos populares se perdiam em meio a
eles. Se o padre Totonho andasse por aqui seu Fusca caindo aos pedaços estaria arruinando
a paisagem. Ficava fora de si. Ora bolas! Eu posso ter o meu no futuro! Decidiu
naquele momento fazer vistas grossas a tudo o que visse doravante.
A
manhã do dia da ordenação sacerdotal colocou o Seminário Santo Expedito em
polvorosa. Era madame para cá, padre para lá, coroinha aqui, beatas ali. Os
ordenandos deram um jeito e mandaram buscar os seus familiares. A senhora
Guilhermina Andrade Couto fez questão de custear as despesas com roupas novas e
traslado da família do então padre José Lucas. Totalmente desambientados,
comportaram-se como alienígenas. O máximo de distância que conheciam de Lago
Seco era até o centro de Manjedoura. Sonharam a vida inteira com uma
peregrinação à Juazeiro, mas a barriga impedia. Teria sido distância maior. Eram
unânimes na reclamação do sapato incomodando os pés. José Lucas recomendou-lhes
fazerem um esforço.
Cinco
anos se passaram. Padre José Lucas conquistara o posto de representante da
maior igreja da capital, situada no bairro Vinhedo, região de condomínios de
milionários. Estava radiante. A notícia da morte do padre Totonho botou
Manjedoura em desolação. Faltava exatamente três horas para o enterro quando
uma Land Rover adentrou Manjedoura, dirigida por um motorista estranho. Muitos
julgavam ser o padre Luquinha, como permaneceram chamando o sacerdote João
Lucas. Curiosamente o veículo parou defronte ao átrio do templo. O dito
motorista desceu, dirigiu-se até a porta traseira, abriu-a. É o padre Luquinha!
Disse em voz alta a cozinheira da casa paroquial.
O
sacerdote, enpafiado de poses desceu vagarosamente e se dirigiu ao ataúde.
Dinorá, uma beata que o viu nascer o conduziu à sacristia. Demorados alguns
minutos padre Luquinha subiu ao altar com uma veste eclesiástica que roubou a
cena. Fora encomendada fora do estado, peça exclusiva, criada por uma madame
apaixonada por motivos de igreja. Havia excesso de luxo. O sacerdote destoava das
vestimentas poídas do padre Totonho.
Muito
teatrológico e falando uma língua desconhecida por quase todos os
manjedourenses, padre João Lucas encomendou o corpo do seu padrinho sacerdotal.
Findada a cerimônia, estirou-se até o cemitério, ao modo de quem foi buscar
fogo. Saiu monossilabicamente sem visitar os pais.
Padre
João Lucas se organizava para ser alçado à condição de bispo. Contava sete anos
de nova vida. Os cabelos do sol esvoaçavam anunciando dia quente. Resolver se
abalar até Manjedoura em visita aos pais. Havia acabado de chegar de uma visita
a Europa. Era a sua quinta viagem. Restava conhecer apenas a Rússia. Da América
do Sul já cominava até os vícios de linguagem. Era agosto de dois mil e
dezoito. Mês de cachorro louco, como disse o pai, brincando, acolhendo-o à porta
da casa luxuosa, no centro de Manjedoura. Três dos irmãos que ainda não se
casaram se balançavam em redes dependuradas na varanda emoldurando o casarão. A
mãe perguntou se ele queria queijo coalho. Ele adiantou que trazia um queijo
importado, presente do arcebispo. Sim, mainha, tá la no carro a imagem de Nossa
Senhora de Fátima que comprei em Portugal. Meu filho, eu trouxe de Juazeiro uma
imagem de madeira do Padre Cícero. Tô com outra encomendada já para a viagem do
mês que vem. É para o arcebispo. Diga que foi mainha que mandou. Sim, mainha,
ele disse que ta vindo pra crisma de dezembro e quer ficar aqui. O arcebispo tá
bem se lembrando dos meu licor!
Na
sala o irmão caçula alisava os cabelos de uma cabritinha chegada da capital e
já enfiada na família. Assistiam Netflix na TV analógica que consumia a parede.
Iam casar em vinte dias. A casa jazia barulhenta. Eram familiares assistindo
TV, espalhados pelos cômodos da assobradada construção. Aparelhos Iphones tocavam verdadeira discoteca
na casa inteira. Na garagem da assobradada residência a Amarok de Zé Bebé ainda
estava carregada de compras vindas da capital no dia seguinte. Um barulho de
buzina soou no imenso portão de ferro. Era Totinha, irmão mais velho, chegando
com seu Fiat do ano. O futuro bispo João Lucas visitava constantemente os pais.
Manjedoura tornou-se aprazível.
Abandona
teu pai e tua mãe e vem para a messe. A messe é grande e precisa de operários.
Tua vida será a igreja. Cuide de teus pobres. Esteja ao lado dos desvalidos e
os representem diante das injustiças. A comida é para quem tem fome. Seja
sempre humilde, pois Jesus foi humilde...
Padre
João Lucas, deitado na rede de varanda bordada, achou interessante. Sem mais
nem menos vieram-lhe à mente essas palavras do padre Totonho...
Luís Carlos Freire - 1996
Luís Carlos Freire - 1996
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