SENHORA LESLIE GRAMONT
(Conto de ficção)
A
expressão “casinha de boneca” não encontra exemplo maior que não seja na casa de
número vinte e oito da rua Tuiuti naquela cidade. Na verdade é uma assobradada
residência centenária. A comparação se dá pelo conjunto da obra. A fachada
exibe altos e baixos relevos semelhantes a renda francesa. Um par de leões de
mármore embeleza o pórtico de entrada numa pose imponente. O portão de ferro,
importado de Londres, traz no centro o brasão dos Gramont. O ladrilho
hidráulico, os azulejos, louças do banheiro e a ferragem da imponente
construção vieram da Inglaterra. Adiante, duas colunas clássicas estão enfiadas
numa escadaria de mármore, dando acesso à porta de entrada, cujas visitas se
anunciavam por via da aldrava de bronze afixada na porta.
O
muro é encimado por um belo gradeado de ferro com aplicações de flores e
guirlandas de latão. O jardim exibe toda sorte de flores e roseiras. Seu
colorido contrasta com todos os tons de verde das cercas vivas impecavelmente
podadas. A residência, emoldurada por uma mini-floresta plantada pelo avô da
senhora Leslie Gramont, ocupa um quarteirão da cidade.
Entrar
no “solar dos franceses”, como chamavam o povo, era uma viagem. A proprietária
amava louças e porcelanas. A cristaleira de jacarandá guardava incontáveis
exemplares que pertenceram ao conde Françoise Quepart Gramont, avô da Senhora
Leslie. As peças desse móvel representavam um detalhe diante de incontáveis porcelanas
distribuídas na casa inteira, vasos decorativos de limoges, jogos de jantar,
travessas e uma variedade de xícaras de todos os tamanhos e cores. Muitas, dos
séculos XVII e XVIII.
As
paredes internas eram encapadas com obras de arte originais, assinadas por pintores
europeus renomados. Sobre os móveis e prateleiras ficavam estrategicamente
expostas diversas peças decorativas de prata e bronze. Três tapetes persas forravam
o piso de mármore de Carrara, um na antesala, outro na sala de estar e o último
na sala de jantar. Os arabescos e floreios em tom sobre tom agradavam os olhos
de quem apreciasse o ambiente.
No
centro do estuque desses três espaços se dependuravam três gigantescos lustres
de cristal com detalhes em prata e ouro. Os exemplares foram presentes da
família real espanhola, doados ao conde Françoise Quepart Gramont. Uma
escultura de dom Quixote em tamanho natural se somava a outras peças
semelhantes, distribuídas harmoniosamente entre as dez janelas que emolduravam a
fachada. Dava gosto contemplar seus cortinados. O ambiente era arejado e
pleno de luz natural. No centro da sala de estar havia uma galeria de
fotografias e pinturas de gente antiga da genealogia Gramont e Valery. A
primeira, do pai da Srª Leslie; a segunda, da mãe. O solar dos franceses era um mini- Louvre. Esse
“acervo museológico”, diferente de expressar uma imagem carregada, trazia
leveza incomum, graças ao toque decorativo da proprietária.
Senhora
Leslie era uma fortaleza. Contava cento e dois anos de idade e aparentava
setenta. Sua longevidade e outras coisas mais eram objeto de comentários na cidade.
Havia muita curiosidade sobre a velha senhora e o contexto que a envolvia. O
avô Françoise Quepart, conde parisiense, chegou ao Brasil no meado do século
XIX para pesquisar a fauna e flora locais. Também colecionava borboletas e
minerais. Chegou recém casado. Sua esposa, Judith, era filha única igual ao
marido. Inicialmente ele pretendeu retornar definitivamente à França, após
concluir suas pesquisas, mas a paixão por estas plagas foi maior. Retornou
apenas para buscar sua babilônica biblioteca e muitos pertences. Seus livros jaziam
intactos num dos cômodos do solar, juntos aos cadernos de anotações, desenhos,
exemplares de minérios e a bela coleção de borboletas.
O tempo passou. Tiveram um único filho, Roger Gramont que casou-se
com Georget, curiosamente filha única. Eram proprietários de joalherias e
grandes fazendas na localidade. São os pais já falecidos da senhora Leslie. A
sina se encerrou nela. Era literalmente uma mulher sem parentes. Para arrastar
mais singularidade à sua história, não possuía herdeiro, afinal nunca se casou.
Pretendentes choveram. Ela escolheu a vida de solteira.
Como já foi dito, a senhora Leslie era tema de palestras
incontinentis nas praças e ruas. Uma delas versava sobre a sua beleza e
fidalguia. Não havia quem não a comparasse a uma princesa européia. A elegância
natural saltava de dentro. Suas atitudes gestuais, o modo de falar e até mesmo
o olhar revelavam um quê de realeza. Apesar do comportamento polido, não se
furtava a esboçar sorrisos contagiantes no trato social. Era refinada, vestia-se
com elegância, e dentre o seu arsenal de jóias, escolhia as peças mais
delicadas. A pele louçã se assemelhava às várias de suas porcelanas inglesas.
Uma pequena criadagem dividia espaço com ela. Cada qual nos
seus devidos afazeres. Há trinta anos recebia os cuidados da senhora Bárbara,
uma espécie de secretária particular de setenta anos de idade, disponível em
todos os momentos. Os pais dela serviram aos antepassados da família Gramont.
Dizem que a convivência torna a pessoa parecida. Era o caso dessa acompanhante,
a qual aprendera modos fidalgos e se revelava quase uma cópia de sua senhora.
Todos
os negócios financeiros, despachos decorrentes das propriedades da senhora
Leslie e demandas do solar, passavam pelo crivo de sua secretária, antes de ir
para as mãos dos inúmeros advogados que ajudavam a administrar o patrimônio
Gramont. Ambas eram mãos de ferro nesses tratos. A vivacidade, o tino para
negócios contidos na senhora Leslie, lhe passara por osmose, dando à senhora
Bárbara notável discernimento. A acompanhante ficara viúva há vinte anos e o
casamento lhe rendera um casal de filhos que residiam na capital.
Apesar de proativa, a idade avançada da senhora Leslie
tornou-a mais caseira. Deixou de dirigir o seu Ford T aos noventa e cinco anos,
obrigando-se a contratar um choffeur que a tratava como rainha. Aliás, havia
esquecido de dizer, o povo a tratava assim. Todos diziam que ela era uma rainha
européia. O veículo foi o segundo a chegar ao Brasil, junto com um exemplar
encomendado pelo imperador brasileiro. Quando em trânsito, roubava a cena na
cidade habituada a carruagens e cavalos.
Mas
nada a tornou ociosa. Acordava diariamente às cinco horas, percorria as aléias
de sua propriedade, apreciando a relva e o perfume do jardim, apanhava flores e
não dispensava o hábito de se deliciar logo cedo com as frutas da época,
colhidas por ela mesma. Sua paixão eram os sapotis e carambolas. Nunca deixava
de apreciar o galinheiro e admirar os cinqüenta pavões que viviam soltos no
jardim. Acostumados a ela, os bichos não se importavam, desfilando seus
penachos que quase a cobriam totalmente. Os empregados que também acordavam com
as galinhas não cansavam de admirar a amizade da senhora Leslie com os
passarinhos. Eles ficavam ouriçados quando a viam. Voejavam sobre ela e
pousavam nas galhadas numa revoada sem fim. Era uma espécie de bom dia. Alguns
diziam que ela carregava algo de misterioso. A cidade sonhava ser passarinho
para contemplá-la naqueles amanheceres mágicos, narrados pelos empregados.
Nessas
manhãs, agarrava uma ferramenta e passava bom tempo revolvendo a terra,
preparando mudas, regando plantas, colhendo flores, enfim antecedia em muito o
jardineiro que costumava chegar às oito horas. Quando isso acontecia, ela o
acolhia com poucas palavras e se retirava para apreciar o indispensável banho
seguido do café da manhã. Logo após, viajava, como costumava dizer, na colossal
biblioteca. Era apaixonada pela obra de Gustave Flaubert, Baudelaire, Vitor
Hugo, Proust, Dumas e Dostoievski. Conservava lápis e papel em locais
estratégicos, instigada pelo hábito de escrever contos que até então se
conservavam anônimos e aos calhamaços. Explicava que vez em quando vinha-lhe
insights e precisava jogar a idéia no papel. Depois, inspirada a escrever,
pegava do lápis e da caneta e dava asas à imaginação. Citava Goethe, quando se
enroscava em algum capítulo, alegando que a palavra era indomável, por isso
jamais seria famosa.
Encerrada
a viagem, estirava as pernas andando pelas salas, sentava-se em sua cadeira de
balanço e aguardava a hora do almoço. Normalmente isso se dava às onze horas e
trinta minutos, quando os carrilhões badalavam. Ao meio dia ela almoçava
acompanhada da senhora Bárbara, que até então estava em diligência com as
empregadas internas e outros empreendimentos. Após o almoço a sua sesta era
sagrada, mas não passava de quarenta minutos.
Então
ela se levantava e findava a tarde mergulhada na lida com as porcelanas e
louças. Era quase uma oração. Retirava uma a uma, lia as inscrições no fundo de
cada peça. Quando a governanta estava próxima, sobravam histórias sobre cada
exemplar manuseado. Essa pertenceu ao meu bisavô, é chinesa, ele trouxe dois
conjuntos desse em uma de suas viagens diplomáticas àquele país. Essa aqui é
porcelana casca de ovo, é inglesa, presente de casamento de mamãe. Vovô trouxe
dez vasos de limoges iguais a esse, todos de cores diferentes quando escolheu
morar no Brasil.
Cada
peça, uma história.
De
fato parecia uma religião o hábito da senhora Leslie. Apesar de todo o seu
acervo estar impecavelmente limpo, costumava lustrá-lo com uma flanela quando a
devolvia ao movel. Falando em religião, a aparente ausência de espiritualidade
instigava a curiosidade dos empregados. Mais que isso, era assunto da cidade. A
descendente de franceses, assim como seus pais, nunca freqüentou igreja. Conservou
a tradição da família. Fazia generosas doações diretamente ao arcebispo, mas
exigia anonimato e não freqüentava os convites eclesiásticos. Nenhum. Nunca se
ouviu dela palavras torpes sobre igrejas ou religião. Igrejas são monumentos históricos
e devem ter preservadas as suas características originais e os seus acervos
sacros. Era o discurso dos Gramont. Talvez cuidar de patrimônios fosse a
religião deles.
A
casa não possuía imagens sacras sequer para uma oração desesperada em hora de
temporal. O leitor cristão talvez julgue mal a senhora Leslie, mas ela e seus
familiares certamente eram santos por excelência. Todo final de mês desciam
generosas doações de alimentos para os pobres das periferias. Ao asilo de idosos,
hospício e orfanato locais não faltava nada, pois as somas vultosas doadas por
ela garantiam seu confortável funcionamento. Ela exigia anonimato, embora
muitos suspeitassem do seu gesto. Nunca pisou sequer na calçada desses lugares,
apenas se informava se funcionavam bem.
Entrar no solar dos franceses era objeto de desejo do povo da
cidade. Tudo atraia a atenção. As janelas e portas monumentais. Até mesmo o
prendedor de janelas, pequeno detalhe em formato de homenzinho fincado na
parede. As crianças enfiavam a cabeça no gradeado e passavam horas apreciando
as miniaturas, certamente supondo ser brinquedo. À noite os vitrais davam à
casa um aspecto eclesiástico, embora retratavam apenas paisagens francesas e
cenas mitológicas. Tudo fora obra de renomados artistas europeus.
Muitas
vezes, ao anoitecer, os transeuntes viam a senhora Leslie através da janela. Então
diminuíam as passadas para degustar a tela barroca, viva e intensa. Era um cenário
doce. Os vitrais acesos através das luzes internas, o gramofone tocando Debussy.
Ela amava Clair de lune. Dizia que a música era parente da leitura, pois nos
transportava aos lugares impensáveis, e muitas vezes nos jogava dentro da
filosofia.
Alguns
empregados não compreendiam certas colocações dela, mas consideravam sábias, portanto
valorizavam suas mínimas colocações. Depois iam discutir e digeri-las nas
reuniões em algum cômodo do solar. Após o jantar ela seguia para a adoração às
porcelanas. Demorava-se muito tempo contemplando os desenhos de cada peça e
contando algo sobre todas. Era a sua cantilena. Sempre com espectadores cheios
de cuidados e atenção. Suas criadas a tratavam com um carinho santificado, pois
nunca receberam dela o mínimo maltrato. Pelo contrário, corrigia as coisas com
uma delicadeza rara. Apesar de tanta fortaleza, elas sabiam que verdadeiramente
a senhora Leslie era como uma louça daquelas.
Os
objetos de porcelana tinham efeito de livros, pois a vasta cultura da senhora
Leslie e sua mente lúcida resultavam em contações de admiráveis histórias. Cada
desenho tinha explicações detalhadas. Um, retratava determinado pintor que se
parecia com outro, que estudou artes em determinado lugar, cuja característica
lembrava certo artista; outro, que foi infeliz na vida amorosa, que morreu de
tuberculose. Desse modo ela se reportava a lugares do mundo inteiro, e seu
enfronhamento nas porcelanas e louças se tornava aula interminável. Isso
encantava.
Não
tinham fim os livros, aliás, as xícaras, os pires, os pratos, as travessas da
senhora Leslie. Por extensão, não tinham fim suas histórias. Eram informações
que somente ela sabia, pois sua ilustração lhe dava esse poder. E para
aquilatar ainda mais valor, cada informação se somava a fatos ou curiosidades
familiares, de maneira que aquele momento era único. Diferente talvez de outras
velhinhas quase mortas, ela nunca externava cansaço. Parecia de ferro. Sua voz,
apesar de aveludada, era forte. Não parecia saída de uma garganta tão antiga. A
governanta tinha uma aula de artes a cada reencontro com as porcelanas da
patroa.
Quando,
por fatalidade, alguma peça se quebrava não via o lixo. O jardineiro aprendeu
com ela a fazer pó de louça. Numa espécie de pilão de ferro ele fragmentava
ainda mais os cacos até moê-los e aparecer uma espécie de talco branco.
Misturado a uma pasta de sabão comum, era o melhor polidor do mundo, dizia a
senhora Leslie. Apesar de existir produtos importados para tal finalidade, ela
priorizava a invenção vinda nas arcas dos avós. E sua tese se comprovava no
aspecto das pratarias da casa. Pareciam espelhos.
Alguns
hábitos tinham foros de sagrado na vida daquela senhora. Às vinte horas em
ponto ela se deitava para acordar religiosamente na mesma hora de sempre. Estando
na biblioteca, agachava-se para apanhar os livros na prateleira mais baixa,
subia uma pequena escada de madeira e alcançar as obras em posição mais elevadas.
Usava as escadarias do solar a todo o instante. Sua saúde surpreendia. Nunca
foi vista sequer com gripe. Isso certamente instigava o imaginário do povo da
cidade. Havia de fato algum mistério na senhora Leslie Gramont?
Era assim a sua vida. Ela sentenciava sempre que sua
vitalidade vinha de suas porcelanas, dos livros e da satisfação de poder ajudar
pessoas. Ressaltava que quando doava, mesmo que a pessoa estivesse precisando
muito e se desdobrasse em agradecimentos, ela era a mais feliz por ter doado.
Não se cansava de proclamar que o sentido da vida, e quem sabe, da longevidade,
estavam nesses detalhes. A senhora Leslie era uma fonte de inspiração, tendo
despertado o gosto pela leitura e amor às coisas da arte nos seus subordinados.
Eram pessoas pacificadoras e serenas, complementando a paz no solar Gramont. Os
empregados tiveram os seus comportamentos lapidados por excelência, no simples
convívio com aquele ser humano doce.
Mas,
como dizem algumas pessoas “ninguém nasceu para lajeiro”.
No
amanhecer do dia treze de maio de 1915 a elegante senhora não acendeu a luz do
quarto. A governanta não ouviu o tilintar da xícara de porcelana tocando o
pires inglês. Era o momento que ela bebia o seu chá de alecrim. Dizia que a
fonte da saúde residia no hábito de beber água ou chá em jejum. Naquele
instante deveria haver farfalhar de panos, ranger de cama e sons de passos. Mas
nada, nada se ouvia. Havia silêncio. Puramente silêncio. Diante da cena incomum
a empregada foi verificar o que se passava.
Longe
supor que sua senhora adoecera. Sabia que aquele corpo era blindado. Deduziu
que ela elegera o dia santo para se demorar mais na cama. Mas não era comum. A
senhora Leslie não guardava datas santas. Muito menos pensou em morte. Mas se
enganou e teve a surpresa que desde o início do parágrafo o leitor imaginou. A
senhora Leslie estava gelada. Sua posição de dormir sempre fora de morta. Costumava
se deitar olhando o teto. Cabeça sobre o travesseiro, mãos enfiadas uma na
outra, aquietadas na altura do umbigo e pés bem juntos. Os empregados não
gostavam daquela pose, mas nunca interferiram, afinal era a senhora Leslie.
A
governanta afastou as cortinas das gigantescas janelas, abriu-as e
instantaneamente surgiu uma alvorada de pássaros. Alguns adentraram no quarto,
como sentindo a perda irreparável. Naquela manhã o jardineiro quebrara o
protocolo e já estava a postos. E estranhou, pois nunca as janelas eram abertas
naquela hora, apenas as cortinas deslizavam para o canto.
Poucos minutos depois os funcionários foram acordados pela
notícia. Suas fisionomias revelavam um misto de perplexidade e inconformação.
Como pode ter morrido uma mulher como a senhora Leslie? Certamente pensavam
assim. O jardineiro tirou o chapéu, colocou sobre o peito e suas lágrimas
escorrerem em cascata. Logo o povo da cidade entrou em polvorosa. A rainha
Leslie Gramont morreu. Assim anunciavam. A notícia correu com a velocidade do
seu Ford T. Uma multidão se juntou defronte ao solar. Era uma perda irreparável.
Morreu uma luz intensa que clareava todas as curiosidades. A senhora Leslie era
um patrimônio. Havia orgulho quando se falavam dela, mesmo imaginando mil
coisas.
Senhora Bárbara, sua secretária, cuidou providenciar tudo.
Mandou cobrir os espelhos e quadros do solar. Os objetos miúdos foram colocados
em gavetas trancadas. Alguns móveis foram afastados para facilitar o velório.
Logo apareceu o arcebispo, interrogando sobre a missa de corpo presente. Os
advogados se reuniram em peso com a senhora Bárbara, a qual tinha uma
respeitabilidade tão forte que parecia a reencarnação da morta. Havia um
testamento no cofre, cujo segredo era aberto por sete chaves diferentes, cada
uma com um advogado, inclusive uma de posse da senhora Bárbara e outra, nas
mãos da senhora Leslie, cuja governanta já havia achado na gaveta do aparador.
Decidiram que o abririam após o enterro.
A cidade fez fila para ver a senhora Leslie. Na realidade era
mais que vê-la. Era contemplá-la, admirá-la e chorar o desaparecimento de um
mito. Essa impressão traduzia o sentimento de todos. Sua mortalha era de linho
branco. O modelo revelava uma simplicidade contrastante com a sua condição. Não
havia botões. Alguém se lembrou que uma vez ela disse que queria ser sepultada
em meio ao branco, portanto todo tipo de flores alvas de seu jardim vieram para
ela. Parecia dormir. Já foi dito que a senhora Leslie aparentava uns setenta
anos. Pois bem. A morte a rejuvenesceu ainda mais. Lembrava uma rainha em sono
profundo. A beleza natural lhe saltava.
Enquanto se aproximavam do ataúde, o povo da cidade esquadrinhava
cada milímetro das tantas salas, admirando o que conseguiam enxergar. Os olhos
dançavam sobre tudo, inclusive nas porcelanas órfãs, as quais também pareciam
mortas. As pessoas sabiam que talvez jamais entrariam ali novamente. A oportunidade
única saciava a velha curiosidade.
O enterro deu-se no dia seguinte, pela manhã. Foi o velório e
enterro mais populosos da história da cidade. Mas o caminho do féretro não
contemplou a igreja. Obedeceram a decisão da senhora Bárbara. Alguns advogados
não concordaram. Questionaram-na se era o pedido da morta. O silêncio foi dado
como resposta. Assim como a senhora Leslie, ela falava com os olhos, e sua
polidez dispensava inquerimentos. Os empregados subalternos ficaram perplexos.
O povo da cidade ficou perplexo. Não falavam outro assunto. Por quê tanta
bondade e amor não contemplaria juatamente a igreja? O arcebispo esconjurou,
pois desconhecia semelhante fato.
Passado o enterro a senhora Bárbara se reuniu com os advogados
no escritório do solar. O cofre foi aberto à custa das sete chaves diferentes.
Dentro havia exclusivamente o testamento, feito na capital quando a senhora
Leslie tinha oitenta anos. O texto, assinado por ela, dizia que tudo o que lhe
pertencia estaria doado a senhora Bárbara, após a sua morte. A herança era
colossal. A finada agradecia e alegava a fidelidade dos antepassados de sua
secretária, empregados da família há quase cem anos. Era a justificativa. O
fato de o mecanismo do cofre se abrir com sete peças diferentes, separadas
geograficamente, dispensava comentário, embora não sufocasse suposições.
A senhora Bárbara, dona de idoneidade ímpar, se surpreendeu
tanto quanto os advogados e demais empregados. Diante da herança herdada se
adiantou que pretendia seguir com os negócios da mesma forma. Explicou que
convidaria os dois filhos a assumir o comando com ela. Ressaltou que de sua
parte, tudo continuaria igual. Explicou que optava por permanecer com todos os
advogados, mas se alguns não quisessem, seriam indenizados na forma da lei e
com remunerações extras. Informou que permaneceria no solar e faria o
remanejamento de alguns empregados para outras empresas, já que não precisaria
de tantas pessoas no solar. Havia muita sensatez nas palavras da senhora
Bárbara. Até aquele momento tudo pareceu normal. Sanada a curiosidade sobre o
testamento, todos se despediram.
Naquele
mesmo dia o arcebispo procurou a senhora Bárbara para saber sobre o testamento.
Explicados os fatos, desceu as escadarias do solar como se houvesse visto o
corcunda de Notre Dame. Porém, passada uma semana de diligências, os advogados
foram digerindo a informação e recusando-se a dar-lhe crédito. Alguns
consideravam deslealdade a decisão da senhora Leslie, pois viam-se como funcionários
fiéis tanto quanto a senhora Bárbara. Alegavam serem profissionais extremamente
responsáveis e corretos com os negócios, portanto, merecedores de parte da
herança, já que ela não tinha sequer um parente. Os demais tinham opiniões
divergentes. Houve quem supusesse ser o testamento obra da senhora Bárbara. Mas
como? A senhora Leslie morreu carregando uma mente de vinte anos. A última vez
que abriram o cofre fora há um ano, a pedido da senhora Leslie que quis ver o
documento.
Dois
meses se passaram e foram pequenos para tantos problemas. Os ditos advogados
cogitavam anular o testamento da senhora Leslie, alegando insanidade mental da
autora. Chamavam-na de caduca. Os filhos da senhora Bárbara vieram para assumir
postos de confiança nos empreendimentos. Rodolfo era formado em economia e
Heliodora em administração. Iniciou-se uma mudança de nomes das empresas,
afinal não teriam mais relação com os Gramont. As confusões, até então
restritas aos bastidores das empresas, passaram a ocorrer na presença dos novos
proprietários e até dos empregados comuns. As relações entre eles geravam
constantes conflitos.
A senhora Bárbara achou conveniente marcar uma reunião em seu
solar. Ás vinte horas todos estavam no local. Já era meia noite e o que se ouviam
no ambiente eram gritos. As discussões tomaram um caminho inimaginável. Mesmo
abalada, a senhora Bárbara explicou sobre a necessidade de se respeitar o gosto
da senhora Leslie, que sua herança não fora gratuita, mas fruto do
reconhecimento de quase cem anos de serviços prestados por seus pais e avós aos
Gramont. A reunião assumiu um desenho cada vez mais desagradável. Os
empregados, subalternos, sem conseguir dormir, se colocaram de plantão pelos
cantos do solar. Houve unanimidade no choro. O povo da cidade que passava e parava
para ouvir. Não entendiam. O solar dos Gramont, que durante mais de um século
fora sinônimo de paz e alegria transformou-se numa extensão do inferno.
Nesse
exato momento o jardineiro da senhora Leslie, que havia passado por ali e
ouvido o escândalo, depositava um ramalhete de flores brancas em sua capelinha.
A arquitetura imponente fora inspirada na catedral de Notre Dame. Ele passou
delicadamente as duas mãos em seu retrato de porcelana, agradecendo a graça e a
dádiva de tê-la conhecido. A senhora que amara as porcelanas e fora sinônimo de
delicadeza, charme e bondade, se transformara literalmente em porcelana. E sua
casa, num inferno.
Dois
meses depois, exatamente a meia noite, o centro da cidade se tornou dia. Um
clarão intenso alcançava as nuvens. O crepitar do fogo despertava a população.
O solar que pertencera aos Gramont se transformara numa imensa fogueira. Em
alguns minutos uma multidão eufórica se colocou nas proximidades. Queriam
entrar e salvar o que pudessem. Todos do tesouro ali guardado. Minutos antes os
empregados haviam conseguido arrancar uma imensa tela com a pintura da senhora
Lislie. Foi a única coisa que se arriscaram salvar. Ficara encostada num muro
defronte ao solar. As chamas alcançaram as árvores e o quarteirão se
transformou num vulcão. Não havia como salvar mais nada. No interior do imóvel
ocorriam sucessivas explosões e estalos. Aos poucos o teto desabava, fazendo
espargir milhares de brasas minúsculas que subiam mais alto que as árvores. O
povo se afastava assustado. As línguas de fogo lambiam o céu. A nuvem de fumaça
sobrepujava as nuvens reais. Seus cumulonimbos formavam desenhos que lembravam
demônios. Os empregados, petrificados, assistiam a tudo. O fogo secou suas
lágrimas. Perguntados sobre o que ocorrera, diziam que foram acordados pelo
barulho do fogo em diversos cômodos, quando já não havia mais como contê-lo.
Todos se salvaram. A senhora Bárbara estava na capital, envolvida em negócios
da empresa.
A
cidade amanheceu órfã do solar. Restaram algumas paredes. Uma camada grossa de
cinza escondia as brasas que ardiam mais aquietadas. Era possível identificar
peças de ferro e bronze em meio aos escombros. No outro dia tudo estava morno.
O povo da cidade invadiu o local. Cada pessoa levou o souvenir que lhe foi
possível. Mesmo contorcido, Dom Quixote saiu carregado nas costas de um antigo
vizinho do solar. Todas as peças decorativas de ferro desapareceram nas mãos do
povo da cidade. Houve quem arrancasse o brasão dos Gramont que ainda não havia
sido retirado pela senhora Bárbara. Os meninos levaram todos os seguradores de
janela com caras de homenzinhos. Estava realizado o sonho de tê-los à altura
das mãos.
O
povo da cidade, ainda se recuperando do vazio deixado pela morte da senhora
Leslie, parecia não suportar a perda daquele patrimônio de valor incalculável.
Não havia quem não chorasse ou ficasse desolado. A cidade passou a vida sonhando entrar no palácio que agora era cinzas e destroços. De tudo o que existia dos
Gramont, restou apenas a herança milionária. Desapareceu a linda mansão, as
obras de arte, o piano, o mobiliário do século XVIII, as incontáveis louças, a
coleção de borboletas, a colossal biblioteca e todos os manuscritos jamais
lidos por outra pessoa, exceto a autora. Nunca alguém saberá o que a senhora
Leslie escreveu. Ela teria deixado sua biografia? Teria escrito sobre a
família? Eram contos? Novelas? Crônicas? Poemas? Histórias de terror? Qual o
estilo da senhora Leslie? Era tarde para saber. Tudo virou pó.
Um
homem que passava por ali refletiu com uma das empregadas sobre a fatalidade.
Disse que era deplorável que uma família tivesse existido mais de um século
como sinônimo de bondade, amor, caridade, união e, de repente, tudo se acabava
num sopro e com requintes de ódio. LUÍS CARLOS FREIRE - 1994
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