NATAL, 2200 - O MEMORIAL DO LIVRO
(Conto de ficção)
Um
belíssimo prédio de arquitetura ultramoderna reverencia a Natal dos anos 2200.
Rouba a cena da avenida Nísia Floresta, antiga Salgado Filho, na capital do Rio
Grande do Norte. Os antigos diziam que ali existira século antes, um shopping de
notória modernidade em seu tempo. O frontão exibe um gigantesco livro aberto
em concreto armado, decorado com um trançado de ferro. Quem passava na avenida
tinha a impressão de que uma força sobrenatural içava as pessoas que subiam pelo
elevador, feito em vidro e acrílico. Vendo-o descer parecia que as pessoas
caiam em câmera lenta.
No
lado direito do pórtico de acesso uma escultura de bronze retrata um senhor
idoso lendo para uma criança. O design foi pensado de maneira que toda a escultura
era feita de livros de vários formatos e tamanhos. Uns abertos, outros
fechados, cujas imagens se revelavam conforme os exemplares eram dispostos. A
obra, assinada por um escultor natalense, ganhou foros de ponto turístico do
município, transportada para o mundo em imagens digitais. No alto do prédio,
letras de aço inoxidável anunciam “Museu do Livro”. O prédio, como todos da
região, tem uma proposta de sustentabilidade. É permeado de árvores e
arbustos. No teto ficam dispostas placas de energia solar. A água da chuva
desce para uma mini-estação subterrânea para tratamento que, tornada potável,
serve ao prédio.
O
edifício de sete andares fora erguido em concreto, aço e vidro. O piso
impressiona. Blocos de vidro maciço, medindo quarenta centímetros de diâmetro
separam os andares, permitido a quem estiver no andar superior ver o que
está abaixo, e quem transita abaixo, vê quem está acima. O material vítreo
foi desenvolvido para não riscar nem ficar opaco com as pisadas. As paredes
internas também são de vidro, proporcionando uma sensação de comunicação
visual intensa. Ao mesmo tempo empresta foros de multidão, tendo em vista que
todos se veem ao mesmo tempo, mesmo em compartimentos diferentes. Alguns já
chamam o Museu do Livro de “Formigueiro”.
Os
visitantes assíduos degustam a novidade com ludicidade, mas quem o adentrava
pela primeira vez, experimentava uma sensação estranha. Alguns não olham para
baixo em nenhum momento. Crianças fazem festa, tentando ser notadas por quem
estava abaixo, ou acima delas. Corre em Natal uma lenda urbana florescida
nesse ambiente. Dizem que no Museu do Livro as pessoas despertam outros
sentidos. Era fato. O que mais se vê são pessoas interagindo através de
gestos ao longo dos andares, já que não se ouvem quando separadas. Visitantes
de todo o Brasil tomam conta do belo edifício, o qual é compartilhado por
arquitetos, engenheiros e artistas do mundo. O Memorial do Livro é o primeiro no Mundo.
A
mobília do museu teve como base garrafas PET, material extinto nesse tempo. Foram
recolhidas dos mares e oceanos em número de três quatrilhões de exemplares
plásticos, transformados num produto de notável qualidade decorativa. O projeto é assinado por um designer cearense. Centenas de dormentes de madeira
desenham as escadarias de acesso aos andares superiores. A matéria prima veio
das antigas estradas de ferro nordestinas, tempo que o trem é peça
museológica e nem mais sabem o que era o VLT, substituído por um veículo que
se deslocava no ar.
Maria
Augusta completara dez anos naquela semana. Visitava o Museu do Livro pela
primeira vez, acompanhada da avó. Ela havia percorrido todos os andares e
conhecido vários modelos de livros dispostos através de expositores protegidos
por vidros. Conheceu maquetes que exibiam desde o surgimento do primeiro livro
com escrita prensada em argila, pelos sumérios, há 5.200 anos, a pedra dos Dez
Mandamentos, perpassando pelo pergaminho de couro, a imprensa de Gutemberg, a
montagem dos livros na Biblioteca do Vaticano, a imprensa moderna, as
livrarias, as editoras até chegar ao e-book do século XXI e o e-book
tridimensional do século XXIII.
No
centro do museu dispuseram a réplica de uma placa de argila com trechos de um
poema em homenagem a um rei desconhecido, encontrada por um aldeão na antiga
região da Mesopotâmia, hoje Iraque. Ao lado dessas informações uma placa de
vidro com efeito touch, permite ao
visitante assistir a documentários e filmes. As visitantes escolheram “História
do livro”.
A
senhora Heliodora é uma leitora inveterada. Muito culta, detalhava para a
neta as informações mais aprofundadas. O documentário informava que o poema
dedicado ao rei desconhecido era classificado pelos especialistas como o livro
mais antigo do mundo. A preciosa peça sobreviveu para que o homem do futuro
soubesse que o homem do passado idealizou uma forma de preservar os seus
conhecimentos e transmiti-los às gerações futuras. Antes, a história era
contada oralmente, de pai para filho. Vejam o valor da educação! Vejam o valor
do livro! Mesmo de maneira precária, eles não foram egoístas e compartilharam o
conhecimento com o futuro.
Nessas observações viram
que o surgimento da escrita permitiu registrar informações importantes em
diversos materiais. Depois foram associando as peças e o livro foi tomando
forma. Tudo começou com a argila, depois veio o papiro. No princípio eram rolos,
guardados cuidadosamente nas bibliotecas. Maria Augusta ouvia com contemplação.
O
documentário contava que apenas na época dos gregos e posteriormente dos
romanos os livros se aproximaram do formato atual. Com página e tudo! Originalmente
os fabricantes fixavam algumas tábuas de madeira encapadas com cera de abelha
onde escreviam o que queriam. Tudo era artesanal. Até as pinturas. Livros
coloridos eram materiais de altíssimo luxo. Depois, inventaram o códice, uma
compilação de pergaminhos feitos de couro de animais.
Em
meio ao documentário, Maria Augusta deu um pause e disse a avó que se não
estivesse assistindo a um documentário da BBC, juraria que o produtor seria um
gênio da fantasia. Dona Heliodora, confirmando o que já havia ouvido da sua
bisavó. E com o play, souberam que o
papel mais semelhante ao atual era feito de fibras de plantas trituradas, num
surpreendente “made in China”, cerca de 100 a.C. Ou seja, quase 3.000 anos
depois da engenhoca de argila sumeriana. Como não bastasse esses milênios
todos, ainda precisaram de mais 1.600 anos para idealizarem o primeiro livro
impresso. Sabe qual? perguntou dona Heliodora. A Bíblia de Gutenberg, respondeu
a própria.
Para
aquela época, cada avanço significava uma modernidade sem precedentes. Mas, analisando
as dificuldades que o códice, essa peça “ultramoderna” proporcionava, pelo peso
e a necessidade de desenrolá-lo, reconhecemos que o touch do presente seria uma coisa extraterrestre para eles. Imagine
o susto se eles visualizassem isso através de uma bola de cristal! E assim o
livro foi avançando se se modernizando cada vez mais.
Após
assistirem ao documentário de sete minutos, avó e neta assistiram ao filme
“Alexandria”, o qual contava a história de Hipátia, professora que – pasme –
era astrônoma (parece mais moderno que hoje!). Ela era responsável pela
biblioteca da cidade egípcia.
Maria
Augusta está radiante com tanta informação. O e-book tridimensional do século
XXIII é uma invenção adiante do tempo. O mundo é disponibilizado através de
um acessório semelhante aos óculos. O leitor lê ou assiste o que quer.
Sem contar uma espécie de relógio com função de e-book e telefonia. Tinha-se o
mundo diante dos olhos, sem peso, sem prateleiras, sem papel. Imaginou quantas
florestas deixaram de ser destruídas? O Museu do Livro fascina pelos diversos
elementos interativos nele dispostos. Maria Augusta está encantada, mas as obras
do setor de enciclopédia latejavam a sua curiosidade. Está perplexa com a enciclopédia
intitulada Delta Larrouse. Mas o que a faz sentir aquilo?
Vovó,
não fique chateada, mas é muito difícil digerir tudo isso. Como os estudantes
faziam pesquisas nessas geringonças de mais de um quilo cada uma? E a internet?
A avó se socorria das lembranças da avó dela. Meu amor, você se esqueceu que
acabamos de assistir que não existia internet naquele tempo. A menina riu que
chorou. Não, vovó! A senhora tirou o dia para brincar comigo. Fala a verdade! Juro,
minha filha. Não existia internet. Prova disso é o que está nas páginas dessa
enciclopédia. Leia. E como se mexe nisso? Folheie. É parecido com livros
literários que temos em casa.
O
Memorial do Livro possuí raríssimos funcionários. Há um setor de
interatividade. Está escrito “Interaja com livros, folheie, tire
fotografias”. O visitante se inscreve através de um leitor de iris e retina, mecanismo
que capta informações sobre sua identidade. Assim as portas se abrem. Tudo é monitorado por câmeras de
vídeo. Dessa maneira permite o acesso a uma sala com mesas e cadeiras. Ali
pode-se interagir com livros previamente dispostos.
Maria
Augusta pediu que a avó a acompanhasse. A senhora Heliodora guardava
incontáveis histórias antigas, contadas por sua avó sobre o tempo que se usava
livros didáticos nas escolas, comprava-se enciclopédias nas livrarias, editoras
e sebos. Admirava-se de ouvi-la dizer sobre casinhas e geladeiras espalhadas
pelas cidades, cheias de livros mantidos por pessoas comuns. Maria Augusta às
vezes dizia que avó estava caducando contando coisas tão estranhas. Que
absurdo, vovó! Como as pessoas transitavam com esses livros tão pesados pelas
ruas? Eram feitos de quê os tais livros? A menina estava cheia de
interrogações.
Então
começaram a folhear as páginas da Delta Larrouse e se deparar com assuntos em
ordem alfabética. Telefone? O que é isso, vovó? É o tatatatataravô do seu
aparelho celular, minha filha. Mas desse tamanho? Sim, ele não era portátil
como os celulares de hoje. Era fixo. Ficava dentro das casas. Mas, vovó, e como
a gente falava com alguém quando estava na rua? Não falava. As pessoas sequer
imaginavam essa possibilidade. Depois surgiu o aparelho celular. Isso há mais
de cento e cinquenta anos. Que maluquice é essa? Que tempo precário. Mas era o
máximo para eles. Tudo o que existe um dia foi moderno.
Vovó,
e como os professores abordavam os assuntos? Ora bolas, eles passavam um
trabalho para fazer em casa. Vovó contava que ia até a Biblioteca e se sentava
igualzinho ao que fazemos agora. E como a gente sabia, por exemplo, a formação
de uma célula, se não existia internet para se ver os desenhos, as cores, os vídeos, enfim
a ilustração bem definida? Ora, existiam os desenhos muito bem feitos e
coloridos. Vamos folhear mais essa Delta Larousse que eu lhe mostro desenhos de
assuntos diversos.
E
como se localizavam os assuntos? Era assim, o aluno pegava o exemplar com o número
e a ordem alfabética mostrado no índice. Assim encontrava quase tudo. Até
porque a diferença entre a enciclopédia e a internet é que a enciclopédia tinha
conteúdo limitado. Não contemplava muita coisa. A internet lhe conduz a todos
os assuntos. Quanto à enciclopédia, vovó contava que lia, entendia e transferia
para o papel os tópicos mais importantes. Algumas vezes escrevia o trabalho à
mão...
O
quê! Ela sabia escrever à mão! Como é isso? Que loucura, vovó! Sim, meu amor,
naquela época se aprendia caligrafia... Cali o quê? Caligrafia. A arte de se
escrever com a mão. Meu Deus! Que tempo estranho. Tudo era pré-histórico. Tudo
difícil. Isso porque eu não falei sobre uma engenhoca chamada máquina de
escrever. Que é isso vovó? As pessoas escreviam com uma máquina? E a conversa
parecia não ter fim. Dona Heliodora passou a desenrolar o novelo de memórias
contadas pela a avó dela. A menina nem piscava. Ora ria, ora escancarava a
boca... todas as interjeições possíveis...
Um
gato saltou sobre a cama Maria Augusta. Ela gritou, assustando a avó Heliodora
que correu até o quarto. Vovó o que foi isso? Foi Bibi que pulou a janela. Meu
Deus! Eu estava sonhando e Bibi cortou o meu sonho! Que bom, diga como foi o
seu planeta onírico! A menina narrou tudo para a avó, a qual riu muito. Meu amor, que sonho criativo. Aliás, foi mais
um pesadelo, de certo modo. Os livros jamais desaparecerão. Pode a massa
cinzenta de muitos cérebros desaparecerem, mas o livro permanecerá eterno. Você
não sonhou. Você teve, sim, um pesadelo.
Creio
que, de fato, as enciclopédias hoje, já são peças museológicas. Servem para
colecionadores. Talvez nas regiões menos favorecidas possam ser usadas em sua
finalidade original, mas acredito que logo desaparecerão até mesmo os livros
didáticos e técnicos. Tudo o que consiste em supérfluo, em termos de papel,
desaparecerá.
Nos
dias atuais o papel só é usado para impressão de livros literários e acadêmicos,
dentre algumas prioridades muito exclusivas. Mais nada. Afinal a internet tem
conhecimentos infinitos. É só saber pesquisar as fontes fidedignas. O saudoso
poeta Bob Mota dizia que a internet é igual a Serra Pelada: tem que garimpar um
morro para conseguir uma pepitinha. A menina riu da colocação da avó. Graças a Deus foi um pesadelo. Eu não me vejo
sem livros, vovó. Adoro seu cheiro. Amo folhear as páginas, descobrir sua
textura, suas ilustrações. Mas passou, meu amor... passou... passou. Chegue
aqui com a vovó para terminarmos de ler as cinco últimas páginas de Alice nos
país das maravilhas. Creio que, semelhante a ela, você encontrou um coelho que
lhe levou muito longe... LUÍS CARLOS FREIRE, 2000.
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