DOM FUTURO (CONTO DE FICÇÃO)
Há
muitos e muitos anos – no tempo de reis, rainhas e lacaios – os reinados e
lugarejos mantinham-se isolados em regiões ermas e afastadas umas das outras. A
grande maioria do povo vivia numa simplicidade incomum a ponto de algumas serem
dotadas de certa ingenuidade. Essa inocência, embora não fosse generalizada
acometia até mesmo as pessoas adultas, pinceladas por uma pureza semelhante ao
comportamento infantil.
Muitas famílias viviam
isoladas em áreas rurais e povoados acanhados, onde todos se conheciam e sabiam
tudo uns sobre os outros. A simples passagem de um estranho denotava um
acontecimento que mobilizava a curiosidade geral.
Nessa época as pessoas
acordavam e dormiam no mesmo horário das galinhas. Deixavam a cama no primeiro
cantar do galo e se deitavam quando os bichos começavam a se empoleirar, às
cinco e meia da tarde.
A solidão e a escuridão
infinita, quebrada apenas por um pavio de lamparina, fogueira ou coivara, estimulavam
o povo a acreditar em assombração e ter medo de coisas ditas “do outro mundo”.
Nesse tempo existia um
homem chamado Terêncio. Assim como a maioria de seu povo, trabalhava como um
animal de carga. Não costumava descansar nem nos finais de semana e feriados.
Acordava antes do cantar do galo e disparava para a roça. Só voltava quando as
galinhas já estavam na segunda madorna. Levava o café da manhã num bisaco, preparando-o
ali mesmo, na roça, entre uma enxadada aqui e outra acolá.
Sua esposa, Gasparina
Leocádia levava o seu almoço diariamente às dez horas da manhã. Ela ajeitava a
comida num prato, cobria com outro, envolvia num pano, dava alguns nós bem
arrochados e pegava o destino. Ia a pé, cantando e falando com os passarinhos.
Assim que ele ouvia as
cantorias da esposa, encostava a enxada numa árvore, lavava o rosto e as mãos
com água trazida na cabaça e se sentava num tronco sob um juazeiro. Enquanto
comia, ouvia a mulher contando as novidades daquela manhã: galinhas que botaram
ovos, pintinhos que nasceram, alguma leitegada nova, cachorros que acuaram
bicho na mata, a roseira que floriu, enfim, desenrolava o novelo de
acontecimentos daquela manhã. Gasparina não parava de falar. Nem parecia viver
sozinha com o marido naquele sítio, pois os assuntos não tinham fim.
O marido a ouvia
atentamente, enquanto amassava a comida com uma das mãos e mandava os bolos para
a boca. Naquele tempo ninguém sabia o que era garfo e faca. O povo comum tinha
como hábito fazer uns bolos, misturando a farinha com feijão, arroz e a
mistura. Chamavam isso de “raposa” ou “macaco”. Dizem que era até mais gostoso
comer desse jeito. Terêncio chamava “mistura” de “conduto”.
Depois do almoço – que
naquele tempo davam o nome de repasto – apreciava um bom pedaço de rapadura de
cana e bebia a água da cabaça numa caneca de barro. Água fria e gostosa.
Encerrado o tal repasto, pegava um galho fininho de mato verde, batia as pontas
para esgarçar as fibras e escovava os dentes com baba de juá obtida com a casca
dessa planta. Não há melhor dentifrício. Alguns trabalhadores mais folgados
faziam uma caminha de folhas no chão e tiravam um breve cochilo. Não era o caso
de Terêncio. Ele mal engolia a comida e retomava o cabo da enxada, ora moldando
leiras, ora capinando, ora drenando o paul para chegar água ao pé das plantas.
Para ele não se podia perder tempo. Costumava dizer: “tempo é dinheiro!!!”
Além de muito
trabalhador, era focado nos seus objetivos e tinha metas em tudo o que fazia.
Costumava dizer aos amigos que todos deviam pensar no futuro, pois ninguém sabia
o dia de amanhã. Também apregoava que nessa vida é tudo na lei de Talião, “olho
por olho e dente por dente”, que não existia amigo de fulano, mas amigo do que
fulano era. Filosofava: “ninguém é amigo do Ricardo, mas do rei Ricardo... ninguém
considera Leovegildo, mas o ferreiro Leovegildo... as pessoas não consideram
vosmecê, elas consideram o que vosmecê é”. Ele vivia nesses filosofares saídos
dos seus dedentros.
Gasparina, a esposa,
achava lindo os palavreados do marido, embora não entendesse patavina alguma.
Ela costumava passar horas observando-o com contemplação, desmanchando-se de
amor, embevecida pelas atitudes do amado, admirando o fato de ele ter sempre
uma frase pronta para as situações do dia-a-dia. Ela achava atraente tal
comportamento. Dizem que Gasparina foi a mulher mais apaixonada que existiu
sobre a terra. Contam.
Naquela época não existiam agências bancárias. As pessoas
guardavam dinheiro em casa, debaixo dos colchões ou enterrado em botijas,
vasilhas de argila normalmente usadas para armazenar água. Terêncio armazenava
seu dinheiro sob o colchão. Na realidade eles gastavam dinheiro raramente, pois
o sítio fornecia quase toda a alimentação: gado, leite, porcos, galinhas, ovos,
perus, patos, carneiro, bodes e tudo mais. O restante vinha da roça. A única
despesa era com roupas e sapato. Mesmo assim quase não gastava, pois naquele
tempo andava-se descalço. Sapato era apenas para ocasiões especiais, como
batizar, casar e enterrar. Mesmo assim nem sempre ficavam calçados até o final
do evento, aperreados pelos calos. Era comum voltar para casa com os sapatos nas
mãos. Quando chovia, levavam os sapatos num bisaco e calçavam ao se aproximar
do local do evento.
A mulher tinha sempre um “vestido de sair”, e o homem um “terno
de rua”, normalmente uma peça de linho branco para o cavaleiro se enfatiotar. Mas
num tempo que quase ninguém saia para lugar algum, as roupas duravam muitos anos.
Muitas donzelas se casavam com o vestido da primeira comunhão, bastando um
reparo aqui e outro ali e tudo ficava tal qual vestido de noiva, Despesa só com
calda e grinalda. Outras se casavam com o vestido da avó, depois de muito bem engomado.
E assim, nessa vida
sossegada, quase sem despesa, sobrava todo o dinheiro das colheitas e do abate
de animais. O dinheiro, como já foi dito, ia para debaixo do colchão. Mas
chegava um momento que o colchão entronchava. Terêncio e Gasparina começaram a
sentir dores nas costas. Foi necessário comprar algumas botijas para estocar o
dinheiro das futuras colheitas. E haja botija!
Então o casal passou a enterrá-las no tronco de uma quixabeira
fincada no terreiro. Naquela época não se ouvia falar de roubo em casa alheia,
mas nas matas, cujos salteadores armavam emboscadas para viajantes que levavam
coisas de valor ou dinheiro em espécie. Mesmo assim quase não se ouvia falar
desses assaltos. Quando acontecia, falava-se naquilo durante o ano todo como
algo extraordinário. Dizem que o seguro morreu de velho... pelo menos Terêncio
falava sempre esse refrão.
Pois bem. Diante desse junta dinheiro aqui e esconde ali,
Gasparina nutria uma curiosidade sem tamanho sobre o destino de tanto dinheiro.
Acordava e adormecia encafifada com a atitude do marido, o qual estava sempre
anotando valores, somando, enfim, riscando papeis relacionados ao seu tesouro.
Onde quer que ele estivesse, lá estava Gasparina, olhando-o, admirando-o,
curiosa. Toda vez que ele guardava um lote ela perguntava:
- Marido, vosmecê quer
tanto dinheiro para quê?
Ele respondia:
- “Para o futuro,
mulher... para o futuro”! E arrematava “enquanto alguns andam por aí iguais às
cigarras de Esopo, ando eu cá como as formigas. Pois saiba que esse dinheiro é
para o futuro”!
Gasparina ouvia
atentamente, mas a explicação do marido a deixava cada vez mais encafifada.
Então ela insistia:
- Mas, marido, quando é
que esse futuro vem?
Ele respondia:
- A qualquer hora,
mulher... a qualquer hora!
E assim entrava ano e
saia ano. Terêncio aumentando a quantidade de botijas cheias; Gasparina
aumentando a ansiedade. Sempre meditabunda. Ela não entendia como uma pessoa
com tanto dinheiro para receber, se demorava a buscá-lo.
Todas as noites
Gasparina dormia absorta em pensamentos. Parecia que um balde cheio de
perguntas caia sobre a sua cabeça. E nesses conformes, sua mente fervilhava de
indagações: “para quê meu marido tem esse apreço tão grande ao Sr. Futuro, certamente
ele é um homem muito bom; quando será que ele vem? Por que demora tanto? Como
ele é? Seria um cavaleiro jovem? Seria um velho? Vem preparado para levar um
peso tão grande? Teria uma carroça? Seria estrangeiro? Seria de algum lugar
próximo? Onde ele mora? Será que chegará com fome? Será que gostará da gente?
Ficará satisfeito com a quantidade de dinheiro que Terêncio juntou? Levará o
dinheiro todo de uma vez? Virá com alguém? Será que esse dinheiro é todo para
ele? O que fará com tamanho montante? Virá com baús e malas suficientes para
guardar tudo? Para onde levará esse dinheiro? Achará pouco? Será que ficará
insatisfeito com Terêncio por não ter juntado mais?
E assim, mergulhada em
dezenas – às vezes até centenas de perguntas – adormecia como se cada uma delas
fosse um cordeirinho pulando a cerca. Daqueles que contávamos quando éramos
crianças atrás de chamar sono. Eram tantas indagações que muitas vezes ela
dormia na metade da centésima.
Quando os galos
cantavam, ela corria para o fogão a lenha para preparar o café. Nessa hora o
marido havia ordenhado as vacas leiteiras e estava nas imediações, aguardando
ser chamado à mesa. Ela havia deixado a massa do pão descansando, coberta com
uma fazenda pesada. Enquanto a água fervia, modelava os pães, colocava sobre
folhas de bananeira e deitava no forno. Aprendera com a mãe. Todos esses afazeres
eram regados aos pensamentos de sempre.
Muitas vezes Terêncio
flagrava Gasparina como se ela estivesse saído do próprio corpo, tanto eram as
suas divagações. De fato. Seu pensamento passeava encafifado. Não tinha fim os
seus questionamentos. Sua espera era interminável.
Certa vez, num desses
raros dias que eles gastavam dinheiro, foram arrastados à feira. Terêncio
carecia de camisas; Gasparina, de calções e anáguas. Naquele tempo as mulheres
vestiam tantas roupas debaixo da saia que até pareciam obesas.
Já no local, Terêncio
pôs-se a resolver suas demandas e Gasparina ficou apreciando tecido na banca de
um velho libanês. No ruge-ruge de pessoas passando lá e cá, ela deu fé de duas
donzelas amigas. A primeira era dona Cassildeia Ugarda, tão ingênua quanto
Gasparina. Naquele tempo até mesmo as pessoas jovens eram chamadas de “donas”.
A segunda amiga era
dona Eufrásia Gamelona, o oposto das duas, por vezes até maliciosa. Na
realidade Eufrásia Gamelona era viajada. O povo do lugarejo dizia que ela era
“uma mulher de livros”. Conhecia muitos lugares, pessoas e culturas diferentes.
Já havia visitado até mesmo reinos distantes, pois acompanhava os pais onde
quer que fossem. Por essa razão tinha hábitos diferentes das duas amigas, as
quais, além de simples e ingênuas, nunca saíram do local de nascimento. O único
passeio era a feira, a missa, batizado, enterro ou visita a alguma família do
mesmo povoado.
Nesse encontro, na
feira, elas entabularam uma conversa e se esqueceram da vida. Num dado momento,
Cassildeia Ugarda perguntou por Terêncio, então Gasparina respondeu:
- Está resolvendo
coisas aí pela feira. Deve ter encontrado algum amigo. Só fico triste porque
ele nunca encontra o futuro.
Eufrásia Gamelona nunca
ouvira aquele nome, portanto, admirada, perguntou:
- Futuro?!!! Como
assim?!
- É o homem misterioso,
para o qual o meu marido junta dinheiro.
- Junta dinheiro?!!!
Quem é esse homem?!!!
- Eu não o conheço –
explicou Gasparina – Ele ainda não riscou nessas bandas para buscar nada. Lá em
casa não há mais espaço para tanto dinheiro debaixo do colchão. Agora, meu
marido deu para guardar tudo em botijas. Todo ano ele junta o dinheiro da colheita
e diz que é para o futuro....
-
Bem, mas se ele diz que é para o Futuro, para o Futuro é! Os homens sabem de
tudo. Quem somos nós para entendê-los ou desafiá-los.
Naquele
tempo a palavra de um homem era a que valia. Portanto a conversa das mulheres
era nesses conformes.
-
Mas o problema é que vivo ansiosa pela chegada desse homem. Nunca vi alguém se
demorar tanto tendo dinheiro para receber.
Enquanto
Eufrásia Gamelona e Gasparina conversavam, Cassildeia Ugarda estava
impressionada com o assunto. Se não fosse num tempo de tanta inocência e falta
de informação, ela pensaria que ambas estavam brincando. Mas como sabia que as
amigas tinham o juízo de criança, iguais a muitas mulheres daquela época, viu
na conversa um prato cheio para se divertir. Eufrásia Gamelona tinha uma alma
venenosa e conversava com pessoas simples para dar vazão a sua peçonha. Então
interrompeu-a:
-
É verdade, caras amigas, os homens têm cada invenção. Bem fazemos nós, mulheres,
cuidando apenas do fogão e da lavanderia. Como disse o sábio Boccaccio “são
suficientes a agulha, o fuso e as rocas para as mulheres”. Pois bem... eu ouvi
atentamente a conversa e me lembrei de um livro que acabei de ler. Chama-se Dom
Quixote de La Mancha. Há um capítulo que a personagem Teresa Pança, esposa de
Sancho, exige que ele traga dinheiro para as coisas de casa, já que vive pelo
mundo como escudeiro de Dom Quixote. Ele reprova o pedido da esposa. No mesmo
instante ela fica satisfeita e diz “vosmecê que ordena, já que nós mulheres,
nascemos para obedecer os maridos, mesmo quando são iguais a alimárias”. Pelo
visto, cara amiga Gasparina, o vosso marido é um verdadeiro Sancho. O homem que
ele tanto fala é, na verdade, “Dom Futuro”, um cavaleiro muito importante,
homem vistoso, elegante e bem vestido. Tenha paciência que uma hora ele chega.
Continue juntando o dinheiro. Quando ele a visitar é só lhe entregar tudo.
-
Exatamente. É o que eu acabei de dizer a ela – complementou Cassildeia Ugarda –
nós mulheres, devemos obediência aos nossos maridos. Se é para entregar o
dinheiro para Dom Futuro, que seja entregue.
As
palavras da amiga causaram grande impacto em Gasparina, que foi logo dizendo:
-
Meu Deus! Quer dizer que o tal homem é Dom Futuro? Ele é mais importante do que
eu imaginava. Agora que não dormirei mais direito! Quer dizer que o nome dele é
Dom Futuro?!!!
-
Isso mesmo – concordou Eufrásia Gamelona – Dom Futuro! - fazendo o possível
para segurar a gargalhada.
-
Ah! Meu Deus, eu só espero que Dom Futuro chegue em casa quando o meu marido
estiver, pois ele sai no primeiro canto do galo e retorna quando as galinhas
entram na segunda madorna.
-
É verdade, minha cara, mas quem sabe Dom Futuro vem justamente na boquinha da
noite ou antes que o primeiro galo cante...
-
Acho que é difícil ele vir nesse horário – opinou Eufrásia Gamelona – um é cedo
demais, outro é muito tarde. Esse povo de negócio gosta da luz do dia.
-
É verdade, mas se ele chegar e vosmecê estiver sozinha, não tem problema, pois
sabe que o dinheiro é para ele.
-
Ah! meu Deus! Fale pela boca dos anjos! Não vejo a hora desse homem chegar.
E
assim, nessa palestra, as amigas passaram um bom tempo. Elas só não imaginavam
que um ladrão ouvia toda a conversa. Era um forasteiro recém-chegado de uma
longa viagem, e teve a sorte – se assim podemos dizer – de encostar exatamente
ali para descansar. O couro da tenda impediu que ele fosse visto. A donzela
Cassildeia Ugarda quis apenas troçar a amiga ingênua, mas acabou prestando um
grande favor ao bandido. Antes Gasparina tivesse entendido as tantas vezes que Terêncio
lhe dizia “quem conversa demais, dá bom dia a cavalo”.
Pois
bem, o ladrão ficou por ali disfarçando até que Terêncio apareceu com as
compras e Gasparina se despediu das amigas. A partir daquele momento o casal
foi seguido pelo ladrão até localizar a propriedade. Depois disso, retornou à
feira, usou umas moedas roubadas para comprar roupas boas e um bom chapéu. Isso
feito cuidou de pernoitar na única estalagem dali.
Quando
deu duas horas da madrugada ele disparou com destino à propriedade de Terêncio.
Assim que chegou, escondeu-se detrás de um arbusto e aguardou os galos
cantarem. Com mais alguns minutos as aves começaram a descer dos poleiros. Logo
em seguida Terêncio saiu com destino à roça. O ladrão esperou mais alguns
minutos, temendo a possibilidade de Terêncio ter esquecido alguma coisa e
precisasse retornar. Mas passados bons minutos, resolveu aproximar-se.
Primeiramente bateu palmas e gritou:
-
Ô de casa! Bons dias aos senhores donos dessa bela estância que ora incomodo e
que me desculpem chegar nessa tão inconveniente hora!
Quando
Gasparina ouviu esses bons modos, julgou imediatamente tratar-se de Dom Futuro.
Ela deu um suspiro profundo, colocou as mãos no coração e sentiu as pernas
amolecerem. Na realidade, quase desmaiou de emoção. Mas se segurou o quanto
pode e abriu a porta, dizendo com a voz trêmula:
-
Bo... bom... bom... di... dia.... me... me... meu senhor!!! O que o senhor de...
de... deseja?
-
Sou Dom Futuro. Gostaria de falar com o vosso marido, senhor Terêncio!
O
ladrão estava muito bem informado do nome do seu marido, graças à tagarelice na
feira. Ao ouvir tais palavras Gasparina quase se estatelou. Estava desnorteada
de emoção. Não acreditava estar diante de Dom Futuro. Mas com muito esforço,
disse:
-
Bom dia, Dom Futuro, o senhor me desculpe, mas estou emocionada com a vossa
chegada tão inesperada. Parece incrível, mas, por coincidência, ontem mesmo
falávamos sobre vossa nobre pessoa na feira. Eu e meu marido o aguardamos há
anos. Todos os dias pergunto pelo senhor e ele responde que um dia chegaria.
Que bom que esse dia chegou. Mas há um problema, ele saiu para a roça e só
volta na boca da noite. O senhor pode tomar assento aqui no alpendre. Vou
correndo chamá-lo...
Mal
ouviu essa frase o homem cheio de cortesia saltou-se com um grito aterrorizante:
-
Não!!! Não precisa chamar o senhor Terêncio!!!!
Gasparina
teve um susto tão desabalado que estatelou-se num dos tamboretes. Preocupado
com o gesto indevido o ladrão inventou uma desculpa para disfarçar:
-
Mil perdões, delicada senhora. Eu ainda não tomei café. Quando estou com fome
falo muito alto. Creio ter exagerado.
-
Ah! Si... si... sim, pois está certo. Como bem disse minha amiga Cassildeia
Ugarda, o senhor é um homem muito educado. Mas façamos o seguinte, queira
entrar. Acabei de preparar o café. Tem pão saído do forno a poucos minutos,
broa de milho, leite e café. Se preferir tem guisado de bode e carne de porco.
O senhor pode se abancar e ficar à vontade tomando café. Meu marido adorará
vê-lo. É o tempo que vou correndo à roça e...
-
Não!!!
Mais
uma vez o homem soltou uma espécie de latido. O som foi tão alto que a pobre
Gasparina descangotou-se no chão, assustada. E mais uma vez, já meio irritado,
mas fazendo das tripas o coração para disfarçar, o ladrão disse:
-
Todos os perdões do mundo, nobre senhora, mas tenho pressa. Preciso passar em
mais um lugar para semelhante missão.
Ainda
se recompondo do susto e com voz fraca, Gasparina falou:
-
Eu que peço perdão ao nobre senhor Dom Futuro! Creio que minha reação é fruto
de emoção. Ainda não acredito que estou diante de pessoa tão ilustre, tão
esperada, tão falada por meu marido. Quando digo que vou chamá-lo, é que
imagino a felicidade que ele sentirá por recebê-lo. Sei que ele ficará
profundamente feliz quando eu contar que o senhor veio buscar o dinheiro. Mas
se ele estivesse aqui teria sido melhor.
-
Não seja por isso, nobre e elegantíssima senhora. Ontem, na feira, eu falei com
ele sobre a minha vinda. Ele disse que era só me apresentar que sua senhora me
entregaria o dinheiro.
O
ladrão mostrava-se muito fidalgo e cortês, justamente para despertar ainda mais
acolhida por parte da infeliz Gasparina que sequer supunha a trapaça. Sabedor
de sua inocência, mentia que a consciência não sentia.
-
Quer dizer que o senhor esteve com o meu marido, ontem?!!! Ah! esses homens
como são esquisitos... custava ter me falado? Custava aguardar o senhor? Se
fosse uma pessoa que estivesse constantemente aqui, mas uma visita tão rara!!!
Mil perdões pela atitude deselegante do meu marido.
-
Não, delicada senhora, não diga isso. O vosso marido é um homem distinto. Vive
para o trabalho. É diferente de alguns, que se abastecem às custas do trabalho
alheio. Mas, como disse, tenho muita coisa para resolver. Vossa mesa muito me
agradou, obrigado por tudo. Agora preciso ver todo o dinheiro.
-
Claro! Claro, com prazer! Faço questão de mostrar-lhe tudo.
E assim Gasparina levou
o ladrão até o seu quarto e mostrou o volumoso colchão abarrotado de dinheiro.
Em seguida o levou ao terreiro e mostrou onde estavam enterradas as botijas. O
espertalhão ficou impressionado com a quantidade. Era impossível levar tudo nos
dois sacos de couro que ele trouxe no cavalo. Então ele disse:
- É o seguinte,
delicada senhora, eu não imaginava que o meu amigo Terêncio tinha juntado
tamanha quantidade.
Gasparina o
interrompeu:
- Mas o senhor não
esteve com ele ontem?
- Si... sim... sim... –
gaguejou o ladrão – mas ele não me informou esse detalhe.
- Esses homens falam de
nós, mulheres, e são uns animais desligados!
- Não diga a isso,
nobre senhora! O vosso marido apenas se esqueceu. Mas é o seguinte, vou pegar
uma parte desse dinheiro e vou à feira comprar uma carroça com animais. Assim
tudo estará resolvido.
- Maravilha, nobre
senhor Dom Futuro! Que ideia brilhante. Enquanto isso vou à roça avisar ao meu
mari...
Sem que Gasparina
pudesse concluir a frase o ladrão soltou praticamente um urro:
- Não!!!
- Por que não, senhor
Dom Futuro? Perguntou Gasparina, assustada com mais um arroubo do visitante.
- Porque não conheço
essa freguesia e preciso que a senhora me ensine o caminho da feira. Vamos
rápido, pois tenho muito o que fazer!
- Claro, claro, Dom
Futuro, vou só no quarto colocar um vestido de sair.
- Não! Gritou o ladrão
– o vosso vestido está ótimo. Na realidade a senhora nem descerá do cavalo.
- Certo, Dom Futuro, o
senhor é quem manda. Mil desculpas pela inconveniente vaidade feminina.
E rapidamente Gasparina
encilhou o manga-larga do marido e encetaram marcha até a feira. Assim que
chegaram, compraram uma carroça movida a uma pareia de cavalos e retornaram em
cima do rasto. O comerciante ficou impressionado, pois tudo foi pago à vista e
com dinheiro em espécie.
Assim que chegaram ao
sítio o ladrão pediu que a mulher o ajudasse, levando o dinheiro do colchão
para a carroça, enquanto ele desenterrava as botijas. Após alguns minutos doze
delas foram colocadas na carroça. Suando aos cântaros e arfando como um boi
bravo, o ladrão não se cansava de admirar o montante de dinheiro. Como estava
muito sujo de terra, Gasparina ofereceu-lhe os aposentos de banho, mas ele
negou imediatamente, pois sabia o risco que corria. Então Gasparina disse:
- Mas Dom Futuro, não
me faça uma desfeita dessa. Se o senhor quiser, oferece-lhe uma muda de roupa
de meu marido. Compramos ontem na feira. Ele não se importará quando eu disser
que foi para o senhor. Por favor, tome um banho antes de partir. Só sinto por
Terêncio que não terá o prazer de vê-lo.
- Não se trata de
desfeita, cara senhora, tenho muitos compromissos e estou muito atrasado. Mas
façamos o seguinte, a senhora me dá a muda de roupa que eu a usarei na primeira
estalagem que encontrar.
- Bom, já que é assim,
o que se há de fazer. Mas uma coisa o senhor não vai me impedir.
Imediatamente Gasparina
correu à cozinha, preparou várias comidas, ajeitou-as num farnel bem fornido e
o entregou ao ladrão. Então ele disse:
- Minha nobre
senhora...
Gasparina o interrompeu
no mesmo instante:
- Não atalhando o que o
senhor diz, mas nobre é o senhor, Dom Futuro! Eu sou sua pobre serva.
- Nada disso, és uma
senhora adorável. Fiquei muito feliz por conhecer semelhante pessoa.
- Eu é que o digo, Dom
Futuro. O prazer foi todo meu.
Então o ladrão
aproximou-se de Gasparina, pegou delicadamente as suas mãos, beijou-a e falou
com mesuras:
- Adeus, bondosa
senhora! Muito obrigado por tudo! Diga ao vosso marido que ele continue
guardando dinheiro para mim, pois um dia voltarei.
Enquanto o ladrão
falava, Gasparina suspirava alto. Seus olhos brilhavam, escorrendo lágrimas.
Então, com muito custo ela disse:
- Adeus, Dom Futuro!
Adeus! Só não vou abraçá-lo porque as normas matrimoniais não permitem, mesmo
sendo um abraço de mais profundo e intenso respeito.
- Pois está certo!
Adeus!
E, virando-se para a
carroça, montou-a e partiu. Ao passar pela cancela, fez o gesto de adeus com a
mão e sumiu na estrada que era um verdadeiro túnel de árvores. Não fosse a
chuva passageira que assolou na noite anterior, e a estrada coberta de musgo,
teria se formado infindáveis volutas de poeira tal foi a velocidade que o
ladrão encetou o veículo. Gasparina chorava e soluçava como uma criança que
perdera um gatinho de estimação. A visita de “Dom Futuro” a abalou
profundamente.
Ainda faltava muito
para o horário do almoço do marido, mas sua felicidade incontida fê-la se
adiantar, abalando-se para a roça. Dessa vez ela cantava tão alto que os
passarinhos se assustavam. A cada passo e a cada acorde fazia bandos de aves
explodirem nos céus. Assim, nessa cantilena desabalada, chegou à roça, onde o
marido já estava a postos, estranhando sua chegada adiantada.
E mal se aproximou,
disse:
- Meu marido, vosmecê
não sabe o que aconteceu. Vosmecê não irá acreditar na novidade que vou lhe
participar. Ai, meu Deus, dai-me força para conseguir falar... ainda estou
emocionada!
Terêncio, acostumado às
fantasias e exageros da esposa, perguntou, desinteressado:
- Pois diga, mulher,
que novidade é essa? Só pode ser uma coisa muito boa, vosmecê veio tão cedo e
cantando tão alto...
- É de alegria, meu
marido, de alegria... estou muito feliz!
- Então diga!
- Foi Dom Futuro, meu
marido! Foi Dom Futuro!
- Quem diabo é Dom
Futuro, mulher?!!!
- O homem que vosmecê
falava e guardava tanto segredo. Ele saiu ‘indagorinha’ de casa...
- Como assim? Eu não
conheço nenhum Dom, quem me dera Dom Futuro!
- Que história é essa,
meu marido, deu para brincar agora, foi?
- Não, mulher, vosmecê
está cansada de saber que não sou homem de brincadeiras. Só não estou
entendendo nada. Vosmecê pode me explicar que mulesta dos cachorro é essa?
- É o seguinte, Dom
Futuro é o homem que vosmecê sempre disse que um dia buscaria o dinheiro que
guarda em casa.
- Mas eu nunca lhe
disse isso!
- Marido, por acaso
estás caducando? É o que mais dizes. Todo ano guardas o dinheiro da colheita e
diz que é para o futuro. Pois ele veio...
Com o sangue fugindo da
face, Terêncio disse:
- Ma... mas... mas...
quem veio?
- O senhor futuro, ou
melhor, Dom Futuro! Eu disse que ia chamar vosmecê, mas ele alegou estar com
pressa.
- Mas o que diabo ele
queria?
- Ora, queria o
dinheiro que vosmecê guarda para ele.
A essa altura, Terêncio
estava quase fora de si, supondo mil coisas. Suas pernas fraquejavam. Os lábios
tremiam.
- E... e... e,,,
vosmecê entre... gou?!!!
- Claro! E ainda o
ajudei a colocar tudo na carroça dele. Era muito educado, um verdadeiro
cavalei...
- Não!!! gritou
Terêncio, interrompendo-a – Não me diga que vosmecê entregou a um estranho todo
o dinheiro da vida.
- Sim, e ainda tem essa
tal de Vida? Vosmecê nunca falou dela! Se eu soubesse teria separado a parte
dela.
- Cala a boca! Sua
tola! Como tens coragem de cometer tamanha demência e ainda vir me dizer com
essa felicidade!
- Meu Deus do céu !!!
Esse meu marido tem cada coisa! Isso lá é jeito de ficar feliz? Estás tão
satisfeito com a notícia que parece enraivado!
- Cala a boca, lesa dos
mil e seiscentos diabos! Como podes ser tão burra!!! Diga-me que destino ele
tomou:
- Ora! O único. Ele
pegou a estrada rumo à freguesia. Mas porque só agora queres vê-lo? Quando eu
disse que o chamaria na roça, ele falou que tinha estado com vosmecê na feira,
ontem.
- Mentira! Vosmecê caiu
na conversa de um ladrão!
- Não digas isso,
marido. Era Dom Futuro em carne e osso!
- Que presepada de Dom
Futuro é essa?
- Tu é que estás a
inventar, meu marido. Sempre me dissestes que o Futuro viria. Nunca dissestes
que era o nobre cavaleiro Dom Futuro!
- Sabe de uma coisa? Tu
não tens jeito. Fique calada que é o melhor que fazes. Vou agora mesmo atrás dele?
- Mas para quê, marido?
Eu já não entreguei todo o dinheiro para ele? Eu nunca vi vosmecê assim tão
feliz a ponto de fazer-me de brinquedo.
- Ah! Meu pai! Isso não
pode ser real. Venha, sua néscia! Vosmecê ficará em casa.
- Está bem, já que
queres ter com Dom Futuro. Quem sabe o alcançará, pois ele partiu numa carroça
puxada a dois cavalos.
- Cala a tua boca! Não
diga mais nada!
E assim o casal saiu
correndo até a casa da sede. Ao chegar, Terêncio pegou um arcabuz, encilhou o
seu manga-larga e saiu no encalço do ladrão. A pobre Gasparina, toda dolorida,
disse:
- Meu Deus! Que homem
bom esse meu marido, com certeza leva essa arma de presente a Dom Futuro.
A inocência de Gasparina
a impedia de perceber a desgraça que cometera. Para ela o ladrão não era
ladrão, e sim Dom Futuro, e a atitude do marido não era raiva, mas uma forte
emoção pelo aparecimento de Dom Futuro.
A estrada que unia sua
propriedade ao resto do mundo era tão longa que parecia sem fim. Ela cruzava o
povoado, uma para o Sul, outra dava para o Norte. Então Terêncio teve com os
mercadores do centro da freguesia e soube que Gasparina havia estado ali com o
tal Dom Futuro, e que ele havia comprado a carroça. Ao ser informado que o dito
cujo tinha tomado rumo Norte, esporou o animal e saiu num galope desembestado.
Tinha certeza que alcançaria o ladrão porque não se comparava a velocidade de
uma carroça pesada de moedas com a leveza de um cavalo bom de corrida.
Já havia completado um
quarto de hora que ele galopava como louco, deixando o rasto de poeira no
caminho. De repente viu um pontinho escuro a muitos quilômetros adiante. Era a
dita carroça. O ladrão também percebera a aproximação devido a velocidade do
galope e as volutas de poeira formando nuvens vermelhas.
Ele tinha poucas
chances de escapar. Se fugisse para a mata, tudo estaria resolvido, pois
Terêncio assumiria a carroça e retornaria ao povoado. A desvantagem do ladrão
seria perder o fruto do roubo. Se fixasse, poderia levar uma boa sova ou quem
sabe até perder a vida. Sabe-se lá o que poderia acontecer diante da fúria de
Terêncio.
Mas como alguns ladrões
são ladinos, uma ideia veio-lhe à mente num rompante. Há uns bons minutos ele
sentia os incômodos do repasto feito na casa de Gasparina. Havia comido muito.
Como não bastasse, veio roendo o que ela colocara no farnel. A movimentação da
carroça provocara-lhe certo desarranjo, aliviado apenas pelos gases que soltava
cada vez que o veículo dava um sopapo.
Então ele manobrou a
carroça, colocou-a em direção a Terêncio e revolveu a terra para apagar o rasto.
Em seguida andou mais ou menos uns cem metros em direção ao povoado para dar a
impressão que viajava para lá. Depois desceu e esvaziou o intestino na margem
da estrada. Aqui para nós, a poia de merda foi tão bizarra, que superava em
altura e diâmetro o cocô de um elefante. Feito isso despejou um frasco inteiro
de colônia de alfazema sobre os excrementos e cobriu com o chapéu. Com a mesma
calmaria, sentou-se sobre um tronco velho e ficou mascando um graveto,
aguardando-o. Sua serenidade assustava.
Enfim, após alguns
minutos Terêncio chegou, apeou e, por prudência, quis primeiramente verificar
se era aquela carroça que levava a sua fortuna. Ele estranhou a tranquilidade
do homem, o qual agachou sobre as folhas secas e ficou segurando o chapéu onde
se escondia o impensável.
Fazendo das tripas o
coração, Terêncio cumprimentou o ladrão, o qual fazia vários sinais e gestos desesperados.
Logo, colocou o dedo indicador na boca e fez o gesto de psiu. Terêncio
estranhou a atitude esquisita, mas quis permanecer cauteloso. Precisava ter
certeza antes de agir.
Assim que se aproximou,
o ladrão disse:
- Eu acabei de pegar um
pássaro de ouro!
Muito surpreso,
Terêncio perguntou:
- Como? Quem é o
senhor?
A pergunta foi a deixa
para que ele dissesse:
- Sou um mercador e
levo muita mercadoria diferente para vendê-la no próximo povoado.
- Interessante! – disse
Terêncio – eu tinha a certeza absoluta que o senhor ia para o Norte e não para
a minha freguesia.
- Deve ser a distância
e o calor. Quando estamos longe o mormaço brinca com os nossos olhos.
Meio desconfiado
Terêncio disse:
- Mas que história é
essa de pássaro de ouro?
- Ora, um homem já adulto
nunca ouviu alguém contar sobre o pássaro de ouro? Ele vale mais que mil
carroças iguais a essa e cheias de ouro.
- Quer dizer que vossa
carroça está cheia de ouro?
- Não! É só força de
expressão. Sou um pobre caixeiro viajante metido a mercador.
- E o que fazes assim,
agachado, segurando o chapéu?
- É exatamente o
pássaro. Tive essa ventura. Ele cruzou a mata agora a pouco e consegui pegá-lo.
Estava aguardando algum viajante para me ajudar. Que sorte que o senhor
apareceu tão rápido.
- Ajudar como?
- É o seguinte. Esse
pássaro é uma ave encantada. Para que ele não escape deve ser trancado numa
gaiola feita de varas de abeto. Para prendê-lo devo envolvê-lo com tal gaiola
exatamente como faço com esse chapéu. Depois fecho a portinhola e está feito o
serviço. Em outro tipo de gaiola ele escapa, pois é encantado. Os magos do reino
de Dom Manoel pagam todo o ouro lá existente
em troca dele.
- E só pode ser uma
gaiola de abeto?
- Sim, pelo menos foi
dito pelo mago Pelopolim. É um pássaro único, não sente o seu perfume?
- Sim, há uma deliciosa
fragrância no ar.
- É exatamente o cheiro
dele. Veja como é algo diferente!!!
- E o que o senhor quer
que eu faça?
- Quero que fique aqui
segurando o chapéu enquanto vou a vossa freguesia mandar fazer a gaiola de
abeto.
- Mas está tão longe.
Estou numa séria diligência nesse momento.
- E do que se trata?
- Procuro um ladrão que
segue nessa mesma estrada.
- Como assim?
- Ele roubou tudo o que
eu tenho e viaja numa carroça nessa estrada.
Ao ouvir tal
informação, e para despistá-lo, o ladrão disse:
- Ah! Deve ser Dom
Futuro.
- Exatamente! E como
sabes disso?
- Eu passei por um
cavaleiro conduzindo uma carroça. Perguntei-lhe sobre a próxima freguesia e ele
se apresentou com tal nome.
- E para onde ele foi?
- Havia um bando de
homens a cavalo descarregando umas botijas, colocando-as nuns sacos de couro
sobre o lombo de jumentos. Era uma tropa grande, e saíram em disparada pelas
trilhas na floresta.
- Meu Deus! Eles
dividiram e levaram todo o meu dinheiro.
- O quê??? Jesus
Cristo!!! Que malvadeza! Como pode existir gente assim nesse mundo.
- É verdade. Mas agora
vejo que é impossível localizá-los.
- Se eu soubesse teria
feito alguma coisa.
- Mas seria o senhor
sozinho contra um bando de ladrões.
- É verdade. E olha que
não ando armado. Mas nem tudo está perdido, meu caro! Se vosmecê ficar aqui e
fizer o que eu disse repartiremos o lucro em partes iguais, afinal sem vossa
senhoria eu não conseguiria. Já estava desesperado a espera de alguém que passasse
por aqui. Depois iremos ao reino de Dom Manoel tomar as providências. O mago
Pelopolim ficará maravilhado com o nosso prodígio. Esse pássaro é procurado
desde que o mundo surgiu. Só existem cinco deles. Três já foram pegos. São os
três reinos mais ricos do mundo.
As palavras ladinas do
ladrão foram ditas com tanta serenidade e riqueza de detalhes que Terêncio se
convenceu. Ele observou que realmente os rastos das rodas estavam direcionados para
a freguesia. Não poderia ser o ladrão, o qual, a essa altura, era impossível
alcançá-lo, pensou. Então ele aceitou o acordo e segurou o chapéu
cuidadosamente.
Era mais ou menos onze
horas da manhã quando o ladrão subiu na carroça e saiu em direção à freguesia.
Ele sabia que, se passasse na freguesia, poderia ser abordado por alguém, pois
Terêncio alardeou o roubo na feira. Por esse motivo, assim que se aproximou da
freguesia, fez um desvio e desapareceu na estrada rumo ao sul.
As horas foram
passando. Já eram três horas da tarde e o homem não chegava. Terêncio começou a
ficar agoniado naquela posição. Mas, como não tinha mais nada a perder – assim
pensava – viu-se obrigado a permanecer ali, pensando na parte que lucraria com
a venda do pássaro de ouro. Pelo menos não ficaria sem nada.
Mas como o tempo não
volta, Terêncio começou a ficar cismado, afinal teria dado tempo de o homem ir
e voltar. Logo, começou a pensar que ele poderia ter enfrentado dificuldade de
encontrar alguém que fizesse uma gaiola de abeto. Não era comum. De repente
Terêncio percebeu que a noite caia. Sua angústia aumentou. Mas ele estava firme
no seu propósito.
O leitor talvez nem
acredite, mas nesse vavavu deu meia noite. Logo a madrugada trouxe o uivar dos
lobos. O céu, pincelado de estrelas, era a única visão do infeliz. Os primeiros
raios de sol começaram a penetrar na floresta. O dia amanheceu. Já era onze
horas da manhã. Mil pensamentos passavam pela mente de Terêncio. Então,
completamente esgotado e com dores no corpo, ele disse:
- Sabe de uma coisa.
Creio que o homem da carroça deve ter sido roubado ou quem sabe até coisa pior.
Não é possível que ele volte mais. Eu fui roubado e estou aqui de castigo há
vinte e quatro horas. Dizem que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de
perdão...
E devagarinho Terêncio
foi aprumando a mão na base do chapéu. Levantou o objeto alguns milímetros, e com
um gesto veloz passou a mão por dentro, dizendo:
- Eu vou é recuperar o
que perdi! Não vou ficar aqui esperando como um bobo. Se o dono aparecer depois
me resolvo com ele.
Mal disse isso recendeu
uma catinga do outro mundo. Sua mão atravessou o chapéu e trespassou uma massa
fria e grudenta que não saia dos dedos. A fedentina era tão nauseante que
deu-lhe vontade de vomitar. Terêncio deu-se conta de que sob o chapéu havia uma
poia de fezes bem fornida e forrada de alfazema. Pobre homem. Mais uma vez fora
enganado. Seu corpo estava impregnado de uma pasta amarela escurecida. Ele
ficou desesperado.
- Santo Deus! Aquele
homem era o dito ladrão! Tive-o entre os meus dedos e preferi segurar merda!
Seu desespero foi tanto
que chutou o vento várias vezes e esmurrou uma árvore.
Aos poucos foi olhando
para si, constatando que estava pintado de fezes. O seu gesto brusco salpicou
cocô em todo o seu corpo, deixando-o podre. Sem água por perto, o infeliz
despiu-se e se espojou no chão tentando se livrar da fedentina. Estava fora de
si. Após esfregar-se na terra como um lobisomem, montou no seu cavalo e encetou
marcha para casa. Bufava igual a boi feroz.
Assim que chegou à
porteira, Gasparina havia percebido a sua aproximação e veio encontrá-lo, cheia
de entusiasmo.
“Então, marido, deu
tudo certo? Como foi o seu encontro com Dom Fu...”. O grito do marido a impediu
de continuar. Cale a boca, sua jumenta dos mil e seiscentos diabos! Toda essa
desgraça é culpa sua. Até ontem tudo estava em paz e veio vosmecê com essa
demência.
De repente Gasparina
disse:
- Estranho, parece que
cagaram no mundo. O meu marido sente essa catinga?
Terêncio já estava tão fora
de si que se segurou para não fazer o pior. Inclusive veio-lhe a frase do pai
já falecido “em mulher não se bate nem com uma flor”. Então Gasparina disse:
- Que homem engraçado
esse meu marido! Se diverte com tudo e até parece que está bravo. Deve de ser a
alegria de ter se encontrado com Dom Futuro.
Terêncio correu para o
rio e tomou um bom banho. Estava arrasado. Não tinha mais o que fazer. O
dinheiro de uma vida tinha ido embora como água despejada no deserto. Só
restava se conformar, mas precisaria tempo. Então ele retornou para casa e se
sentou, matutando alguma coisa. De repente apareceu Gasparina, oferecendo-lhe
uma lavanda:
- Pegue, meu marido, vosmecê
acabou de tomar banho, use essa lavanda, comprei ontem no centro da freguesia.
A lavanda tinha o mesmo cheiro da que foi espargida nas fezes
na estrada. Então Terêncio surtou. Pegou o frasco e o arremessou a quilômetros
dali.
- Santo Deus! É muita emoção para um homem só.
A noite caiu. O dia amanheceu. Assim que tomou café, Terêncio
se sentou numa cadeira de balanço e ficou olhando o horizonte. Estava
macambúzio. Após algum tempo disse:
- Gasparina, arrume tudo o que é vosso. Eu vou arrumar tudo o que
é meu. Coloque o que puder na carroça e vamos embora. Nesse lugar não fico
mais.
- Mas, marido, a gente vai viver de arribada? Isso aqui é
nosso. Vamos deixar para trás?
- Cale-se a faça o que eu ordenei. O que eu tinha de mais
precioso se foi. Esse lugar ficou insustentável. A gente tranca tudo. Se um dia
der certo a gente volta. Agora vá, cuide de fazer o que lhe mandei.
- Mas esse homem tem cada invencionice!
E assim dispararam sem destino. Já haviam rodado umas dezenas
de quilômetros. Já era mais ou menos três horas da tarde. Sem mais nem menos
Terêncio perguntou:
- Gasparina, vosmecê cerrou a porta da casa?
- Ora bolas, marido, e por acaso eu havia de ter cerrado a
porta? Que invenção mais destemperada é essa?
- Invenção que nada! Tu estás doida? Pois vosmecê vai andar
tudo isso de volta e vai lá cerrar a porta agora!
- Mas nessa distância toda? Como vou chegar lá?
- Com os pés! Vá agora cerrar a porta!
A infeliz, toda dolorida, saiu em disparada enquanto ele ficou
sentado na carroça, guardando-a.
Deu quatro horas. Deu cinco horas. Deu seis horas.
Anoiteceu...
- Meu Deus! Que demora é essa! Será que aconteceu alguma
coisa? Bem, mas não há nada o que fazer. O que me resta é aguardar o dia
amanhecer.
Terêncio amarrou a carroça e deitou-se nas roupas de cama que
havia trazido exatamente para isso. O veículo era forrado de lona. Então,
quando os passarinhos começaram a cantar, abrindo as quatro e meia da manhã ele
desceu e inventou de acender fogo para preparar o café. Assim que a água
começou a ferver ouviu uns sons incomuns à mata. Era um som humano. Ora arfava,
ora gemia. Ele deu um pinote e escondeu-se detrás da carroça. Quando deu fé,
notou a aproximação de Gasparina. A infeliz apareceu toda descangotada,
segurando a porta da casa. Seu corpo joeirava filetes de suor tal qual uma
cachoeira. Terêncio se aproximou e perguntou:
- O que é isso, Gasparina?
- Ora, meu marido, que pergunta! Vosmecê ordena que eu cerre a
porta de casa e quando chego com ela, depois de todo esse sofrimento, me
pergunta o que é isso? Estás louco?
- Mas que absurdo! Tu que sois louca! Confesso que não
acredito em tamanha leseira! Está explicada a razão dessa demora! Sois uma
jumenta!
- Era o que faltava! Depois da chegada de Dom Futuro o meu
marido ficou todo diferente.
E mais uma vez, fora de si, Terêncio agarrou um monte de mato
do chão e soltou um urro na tentativa de extravasar a raiva.
- Esse meu marido ainda está tão emocionado com a história de
Dom Futuro que ainda não se acostuma. Ah! marido!
Mal fechou a boca, ouviu:
- Volte em cima do rasto. Tome esse dinheiro. Compre uma porta
nova na freguesia e mande um carpinteiro instalar no lugar dessa.
- E por que eu não posso levar essa?
- Por que senão vosmecê só retorna amanhã. Vamos, faça o que
ordeno!
E lá se foi Gasparina, batendo os pés na bunda.
Enquanto isso, Terêncio foi tomar café e aguardar a esposa
atrapalhada. Alimentou-se, deu uma volta pelas imediações, retornou, ajeitou as
tralhas na carroça, preparou o almoço,
almoçou e nada. As horas se passaram. De repente observou um ponto distante.
Era mais ou menos três horas da tarde. Ficou atento. Devagarinho o ponto
aumentava. Era Gasparina. Assim que ela chegou, esquartejada de cansaço,
almoçou e deitou-se um pouco. Enquanto descansava, Terêncio disse:
- Vosmecê fica aí atrás descansando e eu vou tocando a
carroça. Não podemos perder tempo. É muito perigoso ficarmos expostos na
estrada. De vez em quando pessoas são tomadas de assalto e perdem tudo. Há
muitos salteadores que também usam esses caminhos. Lá adiante, quando anoitecer, a gente enfia a
carroça na mata e dorme. Por aqui não de deve confiar nem nos galhos das
árvores.
E lá se foram...
Era mais ou menos seis horas da tarde quando viram um
altíssimo carvalho. A árvore, centenária, permeada de galhos muito grossos, facilitava
a improvisação da dormida. Então eles enfiaram a carroça na mata, bem afastada
da árvore e apagaram os rastos. Havia um pequeno regato nas proximidades.
Tomaram um delicioso banho e afastaram mais o cansaço. Logo fizeram fogo e comeram
carne seca com fruta-pão. Prepararam café e tomaram com bolachas que Gasparina
preparara naquela semana.
Para segurança de
ambos, subiram no carvalho até o ponto mais alto que conseguiram, ajeitaram a
porta entre uma forquilha de galhos, improvisando uma cama e se deitaram bem
enrolados nos cobertores. Levaram também uma moringa com água para não ser
necessário descer durante a madrugada. A escuridão era absoluta. O silêncio era
absoluto. Logo dormiram com certo conforto.
Era madrugada quando
ambos despertaram com uma algazarra. A princípio eles se assustaram, mas haviam
escondido muito bem a carroça e amarrado os animais afastados, próximos ao rio.
Restava-lhes permanecerem quietos e atentos. Logo perceberam que eram muitos
homens, pois alguns carregavam candeeiros acesos, permitindo-lhes um campo de
visão melhor. Havia uma carroça abarrotada de sacos. No meio da galhofa eles
passaram a contar sobre os feitos daquela semana. Então Terêncio e Gasparina
perceberam estar diante de um bando de ladrões, os quais narravam o fruto do
roubo, provocando gargalhadas uns nos outros. Não apenas constataram se tratar
de salteadores, mas até o nome de alguns foi anunciado.
- O que vosmecê roubou
hoje, Esperidião?
- Tive sorte. Roubei
uma diligência. Muitas moedas de ouro.
- E vosmecê Rubião?
- Roubei o castelo de
um rei. Trouxe vários sacos de diamantes, joias e até mesmo algumas coroas de
ouro.
- Muito bem, e vosmecê,
Elesbão?
- Eu roubei uma venda.
Consegui muito dinheiro.
- E vosmecê Gamelão?
- Eu assaltei a
comitiva de um rei. Trouxe muita jóia e dinheiro em espécie.
- Pois bem, já vi que
temos aqui uma fortuna que dá para viver bem até a nossa terceira geração. Mas me diga o que vosmicê roubou, Centurião!
- A minha história é
muito engraçada. Ao invés de eu ir atrás do roubo, o roubo veio atrás de mim...
- Ora! Como assim?
- Eu estava no mercado
público de uma freguesia, de repente ouvi umas senhoras conversando. Uma delas
dizia para a outra que há muitos anos o seu marido guardava dinheiro para o
futuro.
Nesse instante,
Terêncio teve um surto, mas teve que engolir a raiva e ficar em silêncio. Seria
loucura enfrentar o bando de salteadores. Além de ser um número grande de
homens, deviam estar armados.
E o tal Centurião continuou a sua história:
- No início eu achei que fosse brincadeira, então percebi que
uma das amigas dessa mulher começou a inquiri-la, como se fizesse troça. Ela
disse “ah! é o senhor Dom Futuro! Ele vem mesmo. Todo mundo espera por ele”.
Ela percebeu que a dita mulher pensava que o futuro fosse uma pessoa, um homem,
e alimentou sua fantasia. E assim ela
contou onde o seu marido guardava o dinheiro que juntava ao longo dos anos.
Lá de cima da árvore, Terêncio se estrebuchava. Fazia força
para não estourar. Era difícil ouvir tudo aquilo em silêncio. Ele já não suportava
mais. Gasparina olhava o bando de ladrões com os olhos aboticados. Então ela
disse ao marido “Veja, Terêncio, é Dom Futuro lá embaixo. Por que vosmecê e eu
não descemos para cumprimentá-lo?!
- Deixe de ser louca! Vosmecê parece que não toma tento nunca.
Fique em silêncio!
- Realmente, a cada dia que passa, menos eu entendo o meu
marido! Ele sai à procura de Dom Futuro e quando o encontra não quer vê-lo!
- Cale-se!
E o tal Centurião continuou contando:
- Pois bem, a tal mulher contou que seu marido ia bem cedo
para a roça e voltava no finalzinho da tarde. Ela se despediu das amigas e foi
embora. Eu os segui e descobri onde moravam. No outro dia eu fui até o sítio
antes de eles acordarem, escondi-me na mata e fiquei esperando. Assim que o
marido dela saiu, aguardei alguns minutos e me aproximei, identificando-me como
Dom Futuro. Usei o nome que a amiga dela me batizou. Quando ela ouviu o meu
nome, ficou eufórica, ofereceu-me café, quis que eu a acompanhasse até a roça
onde o marido estava, mas demonstrei muita pressa, pois sabia dos riscos que
corria. Enfim, saí de lá abarrotado. Roubei todo o dinheiro que o imbecil havia
juntado a vida toda, graças à sua esposa. A danada era burra feito jumenta.
- Essa foi a história mais engraçada que ouvi até hoje! Disse
um dos salteadores.
E todos caíram na gargalhada.
Terêncio mordia os lábios e apertava as mãos. Não conseguiu conter
a raiva. Habituado a dizer certos xingamentos com a esposa, ele não admitia vê-la
hostilizada por estranhos, e muito menos debochada. Então ele teve uma ideia aparentemente
insana, mas fluiu à flor da raiva. Pediu que Gasparina saísse da porta e se
segurasse num galho, desatracou a porta da forquilha e a soltou lá de cima,
urrando igual a um bicho feroz.
O barulho da porta
despencando, batendo nos galhos, e seus urros, causaram um estouro nos pássaros
que dormiam sob as copas das árvores. Som infernal. Gasparina se assustou com o
rompante do marido e começou a uivar igual a lobo. Enquanto isso a porta foi se
esfacelando. A queda livre dava a impressão de que canglorosos trovões
explodiam na árvore. Os pedaços esfacelados da porta atingiram alguns ladrões
que entraram em desespero. Pensavam que estavam sendo alvejados por algo do
outro mundo.
O pavor dos ladrões fê-los disparar dali, gritando, dizendo
que o mundo estava acabando. Os animais quadrúpedes que dormiam sossegadamente,
se assustaram e saíram em disparada, alguns se abalroaram nos ladrões, outros
os atropelaram, outros o pisotearam, outros lhes coicearam, arremessando-os
longe. Os bichos estavam aterrorizados com o barulho principiado no velho
carvalho.
- Corram, corram, isso é castigo... é o fim do mundo, vamos
todos morrer! Diziam os salteadores.
O barulho assustador ecoou na mata. Quem ouvisse aquilo
pensava estar no inferno.
Enfim os animais foram se aquietando, os ladrões desapareceram
e o silêncio retomou o assento. Terêncio e Gasparina permaneceram quietinhos
agarrados nos grossos galhos. A escuridão tomava conta de tudo. Passados mais
algum tempo os pássaros iniciaram a alvorada e os primeiros raios de sol furaram
as copas das árvores. Mesmo tendo amanhecido eles permaneceram quase uma hora
acomodados. Precisavam ser prudentes, pois os ladrões poderiam estar nas
proximidades.
Após quase duas horas escondidos, Terêncio e Gasparina
desceram cuidadosamente e foram se dando conta de um tesouro vinte vezes maior
do que o deles. Ficaram impressionados com a quantidade de moedas de ouro,
barras de ouro, diamantes, toda sorte de pedras preciosas, obras de arte e
pratarias. A carroça dos ladrões era dez vezes maior que a deles. Logo viram as
botijas que lhes pertenciam e os sacos que guardavam sob o colchão.
- E agora, marido, o que faremos com tanta riqueza? Será que
Dom Futuro vem buscar isso?
- Cale-se, Gasparina! Vosmecê parece não tomar juízo! Vosmecê
funciona melhor calada!
Terêncio, muito cauteloso, percorreu um determinado perímetro
sondando se realmente estavam sozinhos. Admirava-se com o abandono de tanta
riqueza, lembrando das palavras dos ladrões, os quais julgaram que a confusão
da noite anterior fora um castigo do outro mundo. Certamente se arrependeram e
de fato desapareceram para sempre. Ou retornariam a qualquer momento? Eram as
reflexões de Terêncio. Depois retornou ao carvalho, matutando o que fazer. Permanecer
ali parecia perigoso. Enfim deu meio dia. Fizeram o repasto e resolveram deixar
o local. Percebeu uma vereda na mata e preferiram usá-la, pois a estrada
deixava-os expostos. Primeiramente apagaram as marcas das rodas usando galhos
secos, espalharam folhas e desse moto encetaram marcha, cada um conduzindo uma
carroça. Viajaram até o anoitecer, quando se deram num pequeno povoado.
Havia uma pequena estalagem na qual se acomodaram. Na mesma
noite souberam dos roubos que coincidiram com as histórias ouvidas dos ladrões.
Vários viajantes contaram episódios de grandes roubos ocorridos em vários
reinos. Ao amanhecer ficaram sabendo que estavam no reino que havia sido alvo
dos salteadores, portanto foram imediatamente marcar uma audiência com o rei,
contando a história. O monarca ficou perplexo quando eles lhes mostraram o
tesouro na carroça.
Era o famoso Rei dom
Luís, homem muito honesto e bondoso, o qual se propôs a ajudá-los a descobrir
os verdadeiros donos de todo aquele roubo. E assim foi feito. Ao longo de dois
meses percorreram vários reinados, devolvendo toda a riqueza que um dia foi
levada pelas mãos dos atrapalhados salteadores. Riram muito com a história da
confusão ocorrida no velho carvalho. Terêncio e Gasparina se tornaram pessoas
muito conhecidas e respeitadas pelo gesto nobre. Todos se encantaram com a
honestidade e bondade deles. Cada pessoa que teve a sua riqueza recuperada doou
a metade a eles, os quais recusaram, mas em vão, pois foram obrigados a
aceitar. Desse modo ficaram mais ricos que muitos dos que receberam sua riqueza
de volta.
Terêncio e Gasparina
ganharam grandes amigos para o resto da vida, retornaram para o local onde
moravam, tiveram dez filhos e viveram felizes e ricos para sempre. LUÍS CARLOS
FREIRE – 1979-2019
OBSERVAÇÃO: O leitor observou que essa história tem
algumas nuanças machistas, no que se refere ao tratamento dado pelo homem à sua
esposa, mas o autor preferiu fazer várias observações pertinentes, dirimindo
essa concepção. Vale salientar que essa história faz parte do fabulário ibérico, e foi ouvida pelo autor quando
ele tinha 12 anos. A mesma reflete o pensamento de uma época, portanto, se
fosse modificá-la, perderia a sua essência.
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