ACTA
NOTURNA – SOCORRO TRINDADE, A ESCRITORA QUE "NÃO TEVE NADA A DIZER" – 25.8.2019
Um velho adágio anuncia desde os primórdios dos folclores que “santo de
casa não faz milagres”. É verdade. A escritora ficcionista,
poetisa e jornalista Maria do Socorro Trindade de Oliveira personifica-o bem. Filha do empresário Olavo Oliveira, o “Olavo do Camarão”,
como era popularmente conhecido, e da professora Conceição Bezerra da Trindade,
ambos falecidos, nasceu aos 18 de outubro de 1950, dois anos após o município
de Papari ter o seu nome mudado para Nísia Floresta.
Socorro Trindade, como é mais conhecida, nunca foi reverenciada
em sua terra natal, Nísia Floresta/RN, mesmo reconhecida nacionalmente. Depois da intelectual Nísia Floresta, nenhum nativo desse pequeno torrão potiguar se projetou mais que ela em nível nacional e pelo impacto da obra. Mas em Nísia Floresta, conta-se nos dedos quem leu suas obras ou conhece a sua história. É como se ela não
existisse na cidade que a ignora. Suponho que depois deste texto, como ocorre sempre, choverão homenagens e darão conta da inobservância. Mas, antes, que aluno bateu à sua porta para pesquisar suas obras? Que universitário ali esteve para citá-la numa tese acadêmica
de Literatura? Qual Feira de Ciências a reverenciou? Qual evento literário potiguar a colocou no centro das falas? Quem a
convidou para um evento cultural? Quase todos ignoram o grande mito. E ela age
com a mesma indiferença. Ou melhor, nem pensa nisso.
Há uma aparente indiferença – ou
alheamento – em torno de sua obra. Confesso ter observado até mesmo certa
hostilidade por parte de alguns. Lembro-me, em 1992, quando cheguei à Nísia
Floresta, soube da existência dessa intelectual nisiaflorestense e me encantei
com a notícia. Perguntei sobre ela a um professor nativo. Nessa época ela
morava no Rio de Janeiro. Espantei-me quando o indagado criticou ferrenhamente o trecho de
um de seus livros no qual ela retratava poeticamente a significação de sua mãe.
Naquela época eu não conhecia nem
Socorro, nem sua obra. O nativo interpretou literalmente um trecho, sem
refletir a graça literária nele contida. Ele considerou a composição
despudorada. Desse dia em diante, instigado pelo detalhe, passei a analisar o
trecho, mas o interpretei de maneira diferente. Vi uma carga poética incrível
quando ela trabalha determinada metáfora.
Sabemos que um poema ou uma prosa, assim
como pintura artística, não clamam necessariamente por interpretações. Tudo têm
a sua graça verbal ou criticidade respectivamente. Muitos buscam entender o que
o autor quis dizer com a tela pintada, a frase estranha, enfim, mas não é
praxe. O sentido real está na sensação, nas deduções, suposições etc. Particularmente
vi poesia pura em sua prosa, cujos detalhes prefiro omitir para que o leitor
tire suas conclusões.
Em 1995 tive o prazer de conhecê-la e
conversar sobre sua obra e Literatura Brasileira. Daí passei a lê-la e entre
suas idas e vindas para o Rio de janeiro, eventualmente conversávamos. Tenho
essa lembrança dos meus primórdios em Nísia Floresta e achei interessante
aventá-lo, já que escrevo sobre ela.
Sua família sempre foi católica
praticante. A menina Socorro foi educada dentro da Igreja Matriz de Nossa
Senhora do Ó. “Eu ia com vovó, vovô e minhas tias. Eles não perdiam missas,
procissões e tudo que a igreja realizava. Uma vez eu fui anjo e participei da
coroação de Nossa Senhora. Nunca me esqueci daquele momento tão emocionante”.
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CONVIDADA A ASSISTIR AO DESFILE CÍVICO DE 1999, SOCORRO SE FEZ PRESENTE |
Socorro Trindade fez o ensino primário
na Escola estadual Nísia Floresta no próprio município. Equivalia do primeiro
ao quarto ano inicial. Em seguida cursou o “ginásio” no Colégio Nossa Senhora
das Neves. Equivalia do quinto ao oitavo ano. Depois cursou o “Científico” no Colégio
“Atheneu Norte-Rio-Grandense”. Equivalia ao segundo grau, depois denominado
ensino médio. Esses dois últimos cursos deram-se em Natal, capital do Rio
Grande do Norte.
Socorro Trindade sempre se afeiçoou aos
livros, e desse modo foi despertada a escrever desde pequena. “Eu passava a
noite e entrava a madrugada escrevendo. O motor que gerava energia elétrica
parava e eu acendia os candeeiros. Era um lápis-grafite e um caderno sempre
perto de mim, atendendo a minha inspiração. Tudo em Nísia Floresta me inspirava:
a natureza, a arquitetura antiga, a própria igreja, o baobá, as praias, enfim
tudo... mas depois eu fui me afastando dos poemas ligados a natureza,
preocupada com outras temáticas. A cidade de Nísia foi o meu exercício de
escritora. Nunca quis guardar os escritos de infância e mocidade... não tenho
nada”.
Quando moça, Socorro Trindade trazia
beleza singular, despertando olhares. Tendo ido estudar em Natal, chamava a
atenção. Todos queriam saber quem era a jovem Socorro de Nísia Floresta. Os
rapazes faziam todo tipo de corte, mas ela não se simpatizava.
Em 1967, aos 17 anos, incentivada por
admiradores concorreu ao concurso “Rainha da Cana-de-Açucar”, evento
tradicional, ocorrido anualmente em Ceará-Mirim, e trouxe a faixa de campeã
para Nísia Floresta.
Mal saiu da adolescência, ainda
estudante, conheceu Luís da Câmara Cascudo, seu professor de História no
Colégio Atheneu. Em 1972, aos 22 anos, publicou em Fortaleza/CE, a obra “Os
olhos do lixo”, Editora Jurídica Ltda. Trata-se
de uma novela de ficção, cujo prefácio foi assinado pelo notável
folclorista.
Concluído o ensino médio iniciou o curso
superior de Comunicação na Universidade Federal do Ceará e o terminou na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo se transferido para aquele estado
em 1976. Lá apresentou a tese intitulada “Laboratório de Criatividade”. Na
terra da “garota de Ipanema” exerceu funções no Museu de Arte Moderna e jornais
locais. Editou nessa cidade o suplemento
literário da Tribuna da Imprensa e coordenou o setor de literatura do Museu de
Arte Moderna, onde criou o Laboratório de Criatividade.
“Eu
tinha o sonho de conhecer o Rio de Janeiro, lugar que reunia o melhor que se
tinha de cultura, educação, enfim não se podia comparar com Papari ou o próprio
estado do Rio Grande do Norte, muito provincianos naquele momento. No Rio de
Janeiro freqüentei os melhores ambientes culturais e educacionais, li de tudo,
conheci muitos escritores a artistas famosos. O Rio foi o meu auge, mas nunca
esqueci minhas raízes, visitava muito Nísia Floresta e todos pediam que eu
retornasse”.
Seu segundo livro, de contos, “Cada
cabeça uma sentença”, Ática Editora, saiu em 1978, publicado no Rio de Janeiro, pois suas relações com aquele estado nunca se
encerraram devido às amizades ali construídas. “Era um livro de contos, tendo a
Justiça como personagem principal”, explicou Socorro.
No fim de 1979 o Rio Grande do Norte
promoveu concurso para seu quadro docente e Socorro Trindade foi aprovada como
professora do curso de Comunicação. Foi uma das mulheres pioneiras a exercer o
magistério nessa instituição. Naquela época precisou atender as necessidades da
universidade com dedicação exclusiva. “Eu praticamente morava na UFRN, pois
lecionava nos três turnos”.
No início de 1980,
regressou a Natal, tendo sido professora do Departamento de Comunicação Social
da UFRN, onde exerceu também cargos administrativos. Na UFRN, implementou
diversas iniciativas visando estimular a criação literária, entre elas, o Laboratório
de Criatividade, que reuniu diversos intelectuais natalenses e jovens
aprendizes da arte poética. A produção do Laboratório era divulgada no
jornal-poster Dito e feito e na revista Grande Ponto.
Em 1981 publicou Grande
Ponto: Laboratório de Criatividade, pela Editora Universitária. Ainda em 1981 lançou
Feminino feminino – Ensaio, também pela Editora Universitária.
Em 1982 publicou uma
obra de poesia no Rio de Janeiro “Uma Arma Para Maria, Editora Codecri.
Em 1985 publicou “Eu Não Tenho Palavras - o diário da
democratização pessoal”, Editora Codecri, Rio de Janeiro, sua segunda obra. Certamente
a mais lembrada até hoje, aclamada como o melhor livro do ano pela Academia
Brasileira de Letras, Academia Jornalística e UFRJ. Tinha como subtítulo “O
diário da democratização”. Com esse livro ela foi precursora da ideia de
iniciar a democratização a partir de nós. O livro era totalmente em branco. Com
exceção ao título e normas da ABNT, não trazia uma palavra sequer.
Loucura da escritora?
Não. Espírito crítico e criatividade
associados.
“Escrevi esse livro para que as pessoas
escrevessem nele. Era um tempo de medo. Na realidade o livro falava sem
precisar palavras. Quem escreveria nele? O que escreveriam?”. Muitas pessoas
não me compreenderam por isso. Também fui criticada por alguns. Perguntavam
como alguém tem tanto trabalho para publicar um livro e se dava ao desplante de
não ter escrito nada? Mas se tem algo que nunca me incomodei foi com opiniões
alheias. Se escrevesse pensando em opiniões, não promoveria a arte, não seria
literatura”.
“Eu Não Tenho Palavras” é um dos livros
mais famosos e interessantes de Socorro Trindade, exatamente pela audácia. Em
plena ditadura militar, idealizar uma performance que não deixava de ser
provocativa, contrariando os generais que não aceitavam opiniões, era atitude
muito corajosa. Depois de Nísia Floresta, Socorro Trindade foi a mulher mais corajosa
no sentido de dizer “alto lá!”.
Ao escrever um livro sem palavras,
passando por louca, ela criticava – sem palavras – aqueles que queimavam livros
e arquivos, demonstrando que o seu livro não podia ser censurado porque não
continha nada. O livro continha silêncio. Mas um silêncio que incomodava mais
que milhões de gritos das ruas. E o livro aceitava palavras. Mas quem
escreveria? E escreveria o quê? O livro
era realmente sem palavras? Creio que tenha sido o livro sem palavras mais
gritante que se tenha publicado.
Sua quarta obra foi “Feminino Feminino”,
uma biografia de Nísia Floresta, publicado em 1981 pela Editora Universitária
de Natal. A ideia é contemplar o nome de Nísia Floresta no panteão das mulheres
pioneiras na história do feminismo brasileiro.
Em 1985, ano do centenário de morte de
Nísia Floresta, a Fundação José Augusto organizou um círculo de palestras em
Natal. A imprensa publicou artigos assinados por diversos intelectuais. Nesse
tempo Socorro Trindade se envolveu numa polêmica, publicando o texto intitulado
“Nísia Floresta é mito ou persona non
grata?” Escreveu “Nísia Floresta tornou-se mito por ser maldita” e “para
desvendar o mito é necessário desvendar a maldição”. Quando ela diz ter sido
sua conterrânea uma “puta erudita” comprou briga com uma porção de escritores e
admiradores de Nísia Floresta. Muitos a rebateram nos jornais.
Até hoje soa incompreensível o real
objetivo de Socorro Trindade nesse feito, principalmente porque os seus
escritos anteriores enaltecem Nísia Floresta. Interessante essa passagem, pois
Socorro endossa o que Isabel Gondim escreveu em 1884. A propósito, essa
conterrânea é mais conhecida por ter denegrido Nísia Floresta que por sua
própria obra. Todos os que falam sobre ela, ressaltam essa página criada pela
conterrânea que nunca a conheceu.
Enquanto professora universitária, em
Natal, Socorro Trindade assinou vários textos nos jornais Diário de Natal e
Tribuna do Norte, inclusive em 1979 escreveu uma página inteira sobre a Igreja
Matriz de Nossa Senhora do Ó e nessa ocasião ressaltou a urgência de um
reforma, pois o templo já oferecia riscos de desabamento. A dita reforma viria
quase vinte anos depois, na administração do padre João Batista Chaves da
Rocha.
Em 1990 publicou O Dia Público e os
Outros Dias, Editora Ponto Oito. Desse tempo em diante, eventualmente ela é
convidada para participar de antologias poéticas. Tem textos publicados em jornais e revistas do Rio de Janeiro, Ceará, São
Paulo, Minas Gerais, Paraíba e do Rio Grande do Norte. Em 1994 publicou a novela Natal, pela Edições Ponto Oito.
Socorro
Trindade, hoje, parece ter imitado o gesto solitário de Nísia Floresta, a qual
se recolheu na pacata e medieval Rouen, na França, protegendo-se da vida
tumultuada de Paris. Cansada do Rio de Janeiro ela aquietou-se na antiga casinha
fincada logo na entrada do município, bem acompanhada pela tia sobrevivente
numa família de dez irmãos, senhora Terezinha Bezerra da Trindade. Parece
bastante adequado para quem entendeu ter chegado a hora de parar. Socorro
Trindade aquietou-se enquanto escritora e pessoa pública. Escolheu a sua paz
pessoal. Hoje é avessa a entrevistas.
Um detalhe alça o incompreensível nessa
história: Socorro Trindade não possui sequer um exemplar original ou cópia de
seus próprios livros. É inacreditável. Perguntei sobre isso e curiosamente não
senti que ela lastimasse o fato. Creio que alguns escritores têm essa
irreverência acerca do seu legado. O genial Franz Kafka, ao perceber que estava
morrendo, implorou a seu amigo Max Brodi que queimasse todas as suas obras,
inclusive os manuscritos que iriam a prelo. Ainda bem que o amigo não cumpriu o
pedido do morto. Não sei! Seja como for, essa é Socorro Trindade, admirável
intelectual que se sente bem dentro de seu silêncio. Hoje, sua profecia se
cumpriu ao contrário. Ela parece nos dizer literalmente “Eu Não Tenho
Palavras”.
Olá boa noite
ResponderExcluirHaveria alguma possibilidade de entrar em contato com Socorro Trindade?
Ela é amiga em comum de uma amiga, chamada, Maria Lucia Batista, e infelizmente desde quando ela retornou a Nisia Floresta perdemos o contato
Gostaria que a Socorro entrasse em contato se possível
21-99207-9985 / 21-983055028 Maria Lucia
21-97305-3503 (Lenita) esse tem whatsApp
Desde já agradeço.
Desde já agradeço
Olá, boa tarde! Desculpe, mas só vi agora. Acabei de copiar os seus dados e vou repassar para uma aluna minha, vizinha de Socorro, a qual terá prazer em repassar a ela.
ResponderExcluirEu gostaria de entrar em contato com Socorro Trindade. Fomos colegas quando estudávamos Comunicação Social na Univ. Federal do Ceará. Perdemos contato no ano de 1972. Caso seja possível esse contato, informo meu e-mail: otacilio@elointernet.com.br . Agradeço por sua atenção.
ResponderExcluirSaudades dela
ResponderExcluirSinto informar que Socorro Trindade faleceu no dia 11 de maio de 2024.
ExcluirGostaria de saber notícia dela
ResponderExcluirGostaria de saber notícia dela
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