A menina do vestido roxo...
Você sabia que em Nísia Floresta ainda é viva a menina que vestiu um vestido feito com o tecido que enrolou o caixão de Nísia Floresta?
Parafraseando
Clarice Lispector: “há muitas histórias nos detrás dos detrases das histórias”...
Essa pérola é um exemplo... um achado. Escutei-a pela primeira vez em fevereiro 1993, na voz doce da própria protagonista, Lúcia
Elisa do Nascimento, 73 anos de idade, moradora no bairro Porto, em Nísia Floresta, estado do Rio Grande do Norte. Mas vamos entrar na "máquina do tempo" para entender como foi que Lúcia tinha um vestido que veio da França, no caixão de Nísia Floresta... Era assim que diziam as pessoas da época... isso há 66 anos...
Aos
11 de setembro de 1954, às 15 horas, a imensa caixa com os restos mortais de Nísia
Floresta, foi desembarcada do navio “Pirapiá”, ou "Pirá-Pirá", um caça da Marinha de Guerra do
Brasil, aportado nas docas da Ribeira, em Natal. Uma multidão se espraiava até
a Praça André de Albuquerque Maranhão. Houve homenagens na Base Naval e seguiu-se
uma verdadeira peregrinação para as devidas homenagens, inclusive no Instituto
de Educação. Já escrevi aqui mesmo neste blog sobre o episódio com Chicuta Nolasco etc.
No
dia seguinte o cortejo se deslocou para a terra natal de Nísia Floresta, cujo
município já havia recebido o nome dela por força de um projeto
idealizado pelo deputado estadual Arnaldo Barbalho Simonetti, seis anos antes. Mas
haveria uma história de bastidores preciosíssima que se daria oito meses após a
espetaculosa chegada. Registrei-a em 1993, e agora presenteio os leitores em
primeira mão. O fato é um misto de curiosidade, comicidade e inocência... não deixa de ser um precioso achado que fica aqui registrado para a posteridade.
Como
todos sabem, assim que a "grande caixa" chegou ao município de Nísia Floresta,
aos 12 de setembro, houve um impasse, pois todos aguardavam uma pequena caixa com os ossos da intelectual Nísia Floresta, jamais um caixão tradicional. E pior, o caixão tradicional veio dentro de uma caixa ainda maior, toda em madeira de pinus. A falta de comunicação fez com que
construíssem uma base quadrangular de alvenaria para sepultar os restos mortais, ao invés de construírem o túmulo para acomodar
o caixão normal. Na realidade, é comum que restos mortais vêm de fato sejam guardados numa pequena caixa, portanto não havia necessidade de se fazer um mausoléu tradicional. E ninguém avisou. Comunicação naquele tempo era complicada. O que fazer? Onde colocar aquela imensa caixa?
Logo
na missa de corpo presente presidida pelo esdrúxulo cônego Rui Miranda, perceberam
que não seria possível o “enterro”, portanto resolveram guardar o caixão sobre uma mesa nos corredores
da igreja, na entrada da sacristia. E ficou ali no período de quase uma gestação humana. A grande caixa passou
o natal e ano novo sob a sentinela da Senhora do Ó, que coincidentemente é a versão católica de Nossa Senhora Grávida. Assim aguardaram a construção
do túmulo, mediante um acordo feito entre o prefeito José Ramires e autoridades natalenses. Nesse interim "chovia" de gente para ver e apalpar o objeto, conforme me contou a senhora Natália Gomes do Nascimento, 90 anos: "Papai dizia que ela tinha sido mulher muito importante, então eu fui lá só ver, mas era uma caixa sem pintar, bem grande, ficava quase na porta da sacristia".
Após o jogo de
empurra, imbróglios, descumprimentos de acordos para a execução da obra, a
Academia Norte-Rio-Grandense de Letras jogou a toalha, fez vaquinha envolvendo
centenas de instituições e pessoas influentes. O parto do túmulo se deu a exatos
oito meses após a chegada dos restos mortais. É nessa data que entrará na história a pequena Lúcia Elisa, que depois seria a menina do vestido roxo.
Monumento em homenagem a Nísia Floresta, construído em 1909. |
“Ainda me lembro de meus tios prá lá e prá cá...
um pedia uma coisa, outro pedia outra... era um monte de gente naquele dia,
parecia que Natal veio toda ‘pralí’... tava até o ‘véi’ Zé Ramires, mas para
mim aquilo era uma festa... eu não entendia aquelas coisas... não sabia que ali
tinha uma morta, ficava só brincando e olhando o povo... coisa de criança...”.
Foi
exatamente nesse evento que surgiu a deliciosa história. Ao abrirem a grande caixa
(essa da foto) encontraram literalmente um caixão de pinus envolto em cetim de
seda roxa. “Era um ‘panão’ grande... brilhoso... a coisa mais linda do mundo...
fiquei olhando aquilo muito admirada, doida pra pegar... era brilhoso, bonito que só...”, contou Lúcia.
Hoje,
a juventude não associa muito a cor roxa à morte devido aos modismos, mas a
tradição católica sempre a relacionou a tecidos mortuários, acessórios de féretro,
caixão etc. Talvez seja uma derivação da ritualística católica que associa o
roxo à penitência, cujos tecidos com tal cor prevalecem nas roupas clericais,
nos templos e procissões na “Sexta-Feira da Paixão”, quando o “Senhor-Morto” é
envolto em tecido roxo.
Pois
bem. Ocorreu que um dos presentes na abertura da caixa era o senhor Antonio
Amador do Nascimento, conhecido como “Tetéu”, tio da menina Lúcia, irmão de seu
pai. Ela contava oito anos de idade. Estava por ali em
visita aos tios. O tecido era novo e ainda cheirava. Então ele pegou a bela fazenda e jogou
sobre a menina, dizendo “pega prá tu!... eu nem acreditei, fiquei assim, olhando, abestalhada com o pano... Saí doida, correndo pra mostrar pra mãe". É preciso esclarecer que esse tecido não tocou nos restos mortais. Veio sobre o caixão e era uma peça nova, muito grande.
“Nunca vi um tecido tão lindo... emboloei no
corpo e fui correndo pro quarto... era grande... bastante pano... mamãe logo escondeu de mim. Quando fomos no Porto, no outro dia, mamãe lavou o tecido, e vovó Geminiana fez
um vestido e uma camisolinha pra mim... eu adorava vestir o vestido e ficar sentada
no alpendre... queria que as outras meninas me vissem com o vestido... achava bonito, era o vestido mais bonito de Nísia Floresta... eu parecia uma menina rica... corria até a cancela, subia nas árvores,
pulava... o vento voava o vestido, às vezes enganchava nas árvores, mamãe dava
brava ‘menina, tu vai rasgar o vestido’... para mim o vestido dava alegria, não
tinha nada de morte... achava linda a cor... quando eu usava a camisolinha nem
sabia que dormia com os paninhos de Nísia Floresta... eu lá sabia quem era
Nísia Floresta... o povo só dizia que era uma mulher muito sabida...”.
Lúcia
Elisa do Nascimento nasceu no dia 27 de novembro de 1946, filha de João Amador
do Nascimento e Naura Elisa do Nascimento, neta de Geminiana
Elisa do Nascimento gente antiqüíssima de Papari. Francisco Amador do Nascimento
era pai de “Maria de Zuza”, era irmão do pai de Lucia Elisa. “Tio Tetéu mangava
muito d’eu por causa desse vestido roxo... dizia que eu tinha usado o vestido
de Nísia Floresta... depois dizia que o meu vestido tinha vindo no caixão de
Nísia Floresta... depois dizia que eu tinha usado o vestido de uma morta...
ficava me caningando”, comentou Lúcia, explicando que durante muitos anos o tio
“mangava” dela devido ao singular episódio.
“Só
depois de muito tempo eu dei conta daquela marmota, mas como era criança, nem
percebi, achei foi bom. Até brincava, dizendo que o tecido de meu vestido tinha
vindo da França. Quando eu ia pra rua com a minha mãe, vestia logo o vestido, ia bem
importante.. exibida que só! Na minha cabeça todos estavam achando lindo”.
Aproveitando a narração deste fato, esclareço que o terreno onde se encontra o túmulo e monumento não foi
doado pela família Gondim, pois a propriedade não pertencia a ela à ocasião da
construção, datada de 1909. Luiz Bezerra Augusto da Trindade o havia comprado - por procuração - à Srª Antonia Freire, mãe de Nísia Floresta, em 1857, pela importância de 400$. Luiz Bezerra faleceu em 1881 e o sítio foi repartido entre os herdeiros. A maior parte ficou para Francisco Teófilo Bezerra da Trindade, falecido em 3 de outubro de 1838. Ele foi o doador do referido terreno. Algum tempo depois a propriedade foi vendida para Pedro Paulo de Carvalho. Até hoje o terreno pertence aos Carvalho. O dono atual é José Paulino de Carvalho.
Como já escrevi outras vezes, conservo guardados muitos registros orais de pessoas antigas, as quais as encontrei ainda muito lúcidas quando cheguei a Nísia Floresta, em janeiro de 1992. Algumas presenciaram a chegada dos despojos de Nísia Floresta, inclusive, em 2002, quando fiz a reconstituição, convidei a educadora dona Noilde Ramalho. Nesse dia ela me contou que viu duas vezes a chegada dos despojos de Nísia Floresta. A primeira, quando era aluna, e todas se deslocaram para o evento, e a segunda, na dramatização. O professor Jorge Januário de Carvalho era criança nesse tempo e se recordou de detalhes valiosos, inclusive ornamentou o cajado com flores para o documentário. Conservei guardada, assim como
incontáveis anotações sobre essa fato. Quando me
dá vontade, pego dos velhos papéis amarelecidos e digito o texto conforme os
depoimentos colhidos, muitos deles há 27 anos.
Externo
a minha eterna gratidão à senhora Lúcia, por me presentear com sua história tão linda. Para mim a sua história é um o seu poema
de vida... a propósito peguei dos pincéis e das tintas e pintei com
exclusividade sua experiência, retratando “a menina do vestido roxo” na ilustração aqui publicada... (março de 2012).
Parabéns pelo resgate desta história, é muito importante para o resgate e a preservação da história do nosso povo
ResponderExcluirParabéns pelo lindo trabalho.
ResponderExcluirQue lindo!Posso transformar num cordel? Daria um lindo livro infantil.
ResponderExcluirAdorei o resgate, essa história dá um livro. Parabéns.
ResponderExcluirExcelente artigo!
ResponderExcluirBoa noite .professor luiz Carlos parabéns por divulgar essa linda estória eu achei muito interessante gostei muito
ResponderExcluirBelo trabalho de resgatar memórias daqueles envolvidos nos fatos da época. Saudações!
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