Esta fotografia é atual. Foi retirada da internet para ilustrar o texto. Ela é um bom exemplo, embora no meu caso a multidão era maior e juntava homens, mulheres e crianças. |
O HOMEM DA COBRA
Quando criança e adolescente, privilegiei-me de experiências típicas dos que nascem
nos recônditos emoldurados de abundante fauna e flora, às margens dos gigantescos
rios Pardo e Paraná, região berço dos Guaranis-Kaiowás e Ofaiés-Xavantes no
estado de Mato Grosso do Sul. O mais simples acontecimento roubava a cena até
mesmo de adultos. A cidade, apesar de planejada, guardava todas as pinceladas
de cenário interiorano, diferente da potência que se tornou atualmente.
Certa
vez a cidade acordou com a notícia de um curandeiro que fazia cirurgias sem
cortes, e se instalava provisoriamente no centro. Entregavam um papelzinho nas
residências com uma espécie de resumo dos prodígios do forasteiro. Sobre ele, contavam
estranhas histórias. Uma grande fila se formou defronte à casa do homem que
“recebia o espírito de um médico”. Comentavam que ele mexia as mãos sobre o
corpo das pessoas e retirava doenças. Extirpava pedaços de coisas com sangue. Outras
vezes saiam pequenos objetos, bolas de cabelos, pedacinhos de coisas enferrujadas e outras indecifráveis. A
maioria dos casos era alegado como “coisa feita”, ou seja, magia negra de algum macumbeiro.
Os
dias amanheciam e anoiteciam com feixes de novas histórias do curandeiro. Povo perplexo e entusiasmado daquele estranho homem.
Minha mente pré-adolescente, desentendida desses assuntos fora da caixa, legava-me um misto
de medo e curiosidade, mas agradava-me a novidade. E com certeza toda a
meninada local. Minha mãe, adepta do mesmo proceder de São Tomé, ignorou o homem
estranho, colocando freio na minha vontade de se plantar ali para contemplar a
atração.
Quando
um circo se arranchava, tínhamos a sensação de que a felicidade fizera morada
na cidade. Saber que uma das maravilhas da infância se avizinhava com nossas
casas, tornava-nos radiantes como o sol. A montagem era parte das atrações. Lona
subindo, homens marretando os eixos de caminhões terra adentro para suster as
bases da tenda colossal, elefante degustando cana-de-açúcar, bichos selvagens
esturrando nas jaulas, macacos guinchando... tudo promovia um estado avançado
de felicidade. A estreia transcendia esse bem-estar. Quando o circo partia, acendia o terrível sentimento de quando morre alguém da família. As pessoas daquela casa de pano soavam nossas parentes. Todos queríamos sê-las porque eram de outro planeta. Um vácuo de banzo acometia-nos.
O
que ocorresse na pequena cidade parecia ter saído de um imenso alto falante.
Todos sabiam a tempo e hora, buzinado pelo boca-a-boca de um e outro. O show de Teixeirinha e
Mary Terezinha, a chegada de Milionário e José Rico na estreia do espetáculo, a aterrissagem do bimotor trazendo
o governador no poeirento “campo de avião”, o acidente de carros na rodovia que
cortava a cidade, o pneu que estourou na borracharia e fez as ruas tremerem, a
serraria que pegou fogo, as moças que foram jogadas da ponte, o mendigo estranho que apareceu, a imensa ponte de
madeira que quebrou com um caminhão de soja, as máquinas Caterpillar
terraplenando as ruas de barro vermelho, alheias ao asfalto... enfim tudo que
diferisse do dia anterior consistia em atração, principalmente para meninos movidos ao exercício da curiosidade. Não bastava saber, urgia ver...
Mas
o que me impressionava talqualmente fato sobrenatural era o “Homem da Cobra”.
De escrever sobre isso toma-me um arrepio de lembranças. Lembranças lindas.
Lembranças emocionantes. Nenhuma novidade sobrepujava aquela presença
excitante, transbordando a cidade de magia. Normalmente o homem misterioso
aparecia numa Rural ou Combe, veículos grandes, cujos estrados do teto vinham
abarrotados de mercadorias e segredos tocando as nuvens, amarrados por uma lona.
O
adagiário popular traz uma máxima que classifica as pessoas que falam demais
como quem “fala igual ao homem da cobra”, ou seja, conversa igual papagaio. Era
assim o dito cujo. Sua chegada se percebia pelos auto-falantes do veículo,
anunciando a solução para muitas doenças, e que se instalaria na esquina da
praça, local de boa movimentação. Enquanto o carro gastava pneus – e as bocas de
ferro matracavam – a meninada corria atrás, comendo poeira, ansiosa para
conhecer o mundo maravilhoso que se revelariam daquele carro, igual coelhos saltando de
cartolas.
O
homem misterioso parava no local anunciado, abria as portas laterais, nas quais
se dependuravam feixes de raízes e cascas, pacotes com folhas, sementes, flores
secas, pós, emplastros, latas com ungüentos, resinas, garrafadas, enfim uma ampla medicina
natural. Nesse interim o povo se aglomerava. O veículo exalava um cheiro
diferente. Eram os matos misturados.
Logo o condutor desenrolava o fio e pegava
do microfone, destrinçando suas mercadorias. Antes, anunciava o “peixe-elétrico” guardado a sete chaves, “perigosíssimo”. Ressaltava mil vezes
que acenderia lâmpadas no animal para todos verem e comprovarem. Falava de cobras
venenosas desconhecidas, vindas de lugares intransponíveis do Pantanal, em que um
pingo de veneno matava dez homens. Avisava que exibiria uma sucuri de doze
metros, trazida numa caixa. Segundo ele, “ela já ouvia toda aquela conversa”.
Se
verdade, creio que a pobre cobra não se sentia numa lata de sardinha. Doze metros? Impressionava
a teatralidade do “Homem da Cobra”. Impressionava sua impostação de voz.
Impressionava a maneira gilgomesca na qual ele exaltava a farmácia e os
segredos guardados no veículo. As
palavras ora eram suavizadas por tons de mistério. O escandir das vogais espichadas dentro de algumas palavras... Tudo impactava até mesmo aos
adultos. Nós, crianças, congelávamos nossas caras, ou melhor, caretas. Ficávamos
abismados, ansiosos para ver a conversa tão demorada se transmutar em realidade diante de nós.
Era comum alguma dona de casa reclamar “ai meu Deus! Que demora, tenho que ir
pra casa fazer as coisas”...
Espertíssimo,
em meio a esse suspense e anunciação de produtos milagrosos, ele despertava a curiosidade em todos. As mercadorias saiam como banana em feira. Os bichos consistiam
em estratégia para segurar a atenção da multidão curiosa. Quem chegasse se prendia nos grilhões da
palavra falada com profusão de feiticeiro. O homem agarrava as pessoas nos anzóis de seus dizeres. Todo mundo ficava ali, preso... e cada veza chegando mais...
Ciente
das doenças e sintomas comuns ao Brasil, alardeava a pomada milagrosa de
gordura de sucuri “excelente para reumatismo”, garrafadas “para animar os
velhos e velhas que não estavam mais querendo fazer aquele negócio”, ungüentos para
“desaparecer qualquer dor de pancada”, tônicos para fortalecer “menino guenzo”,
outro para os “lombriguentos”, “remédios para solteironas nervosas”, óleo para “matar empingis”... tudo anunciado como rádio que não se desligava. Homens, mulheres,
velhos e crianças eram laçados pelas conversas persuasivas, potentes quanto
visgo de pegar passarinho.
Todo
“homem da cobra” era simpático e extrovertido. Em curto tempo adquiria foros de
pessoa de nossa família. Suas falações por vezes pareciam saltadas de almanaque
decorado. Sempre tinha exemplos acontecidos com pessoa de alguma cidade, e sua
cura milagrosa. Alguém que estava morrendo e praticamente ressuscitou com a
garrafada erguida ali de suas mãos como troféu, menino que “pôs um ninho de lombrigas” por
conta do óleo contido num vidrinho escuro. Eu detestava essa parte, pois nossa
mãe nos obrigava a tomar um tal “Sulfato Ferroso” e um demoníaco “Óleo de
Rícino” – insuportáveis. Ela dizia que era para não adoecermos e termos que ir para o hospital. Aquilo era uma morte, pois o hospital ficava do outro lado da ponte sobre o gigantesco rio Paraná. A sorte era que nossa mãe não se atraía dessas novidades.
Seu
repertório de palavreados, ditos populares, frases de efeito e brincadeiras
fazia o povo chorar de rir. De quando em vez ele quebrava o gelo com a história de velho
que não “dava mais no couro", ou que "o ponteiro só marcava seis horas", mas ficou tinindo depois da
garrafada”, e batia na garrafa para traduzir o efeito, levando os adultos às gargalhadas.
Os homens adultos e velhos se
comportavam de maneira mais avacalhada. As mulheres adultas e velhas guardavam
as risadas nos bolsos de seus pudores, embora uma ou outra escondia o sorriso nas mãos.
Nós, crianças – inocentes naqueles tempos – desapercebíamos daquelas malícias.
Achávamos engraçado o contexto, as brincadeiras, as risadas... acabávamos
gostando do “homem da cobra”, pois ele enchia a cidade de felicidade. Trazia
alegria para todos.
O
“homem da cobra” era um “show-man”. O volume de sua fala se alternava de acordo
com a ênfase que ele dava ao produto ou a alguma história que sempre tinha
testemunhado. Tudo convergia para o favorecimento de seus milagrosos produtos.
Impossível alguém se desconcentrar, pois suas palavras encantavam, agarrando o
povo.
Logo ele pegava de uma caixa e chamava algum menino para ajudá-lo. De
repente saltava uma cobra espevitada. O povo desaparecia. Então percebiam que a
peçonhenta era de borracha. Quem era doido de checar antes? Outrora ele pegava de uma
caixa maior e arrastava para meio das pessoas. Era cobra de verdade. Uma grande
cascavel manipulada com maestria com ferro próprio. Dizia que sua picada fazia
a vítima vazar sangue por todo o corpo. O povo ficava petrificado, sem muita
aproximação. De repente guardava os segredos e partia para as propagandas dos produtos. Repetia uns, anunciava outros, novos.
Tinha
remédio para gastrite, azia, má digestão, corrimento, frieira,
queda de cabelo, coceira, fraqueza, lombriga, dor desviada (o povo entendia "dor de viado"), febre, micoses, tônicos para homens... ele viera para curar a cidade inteira. E o povo comprando sem
parar. Não havia intervalos para suas conversas sem fim.
Dado momento ele pedia que alguns homens o ajudasse a retirar a grande e pesada
caixa de madeira sobre o assoalho do veículo. Era a sucuri. O tamanho da cobra
assustava. Primeiramente ele apresentava uma latinha contendo uma pomada para dor nos ossos. As propriedades medicinais eram tão extraordinárias nos seus falares que ninguém duvidaria se ele alegasse terem vindo do céu. Logo vendia umas vinte latinhas. Objetivo alcançado, ele começava a desenrolar um novelo de histórias sobre o
animal.
Naquele tempo não existia internet, portanto suas narrações se
apresentavam como filmes que imaginávamos conforme suas contações. Assim ele
falava ter presenciado uma sucuri que acabara de engolir um boi inteiro no rio
Paraguai. Outra engoliu um homem que pescava sozinho no rio Paraná. Contou sobre
uma sucuri que foi morta por mais de dez homens após engolir um menino, cujo
pai a perseguiu até encontrá-la. Eram histórias arrepiantes, observadas pela
gigantesca sucuri que parecia nos encarar, movimentando sua lingüinha para
dentro e fora da bocarra. Ele transformava aquela serpente num monstro.
Depois
de um congestionamento infinito de palavras, caras e bocas –,e consequentemente a venda de
sortidas mercadorias – ele anunciava a grande atração: o “peixe
elétrico”. Então, convocava mais homens e pegava de uma tina redonda, toda em madeira,
e o colocava no centro da roda. A tampa era aberta lentamente, sob um discurso
que mais lembrava um filme de terror.
A enguia, enfim, aparecia, ou melhor, era
vista num balé lento e sinuoso sob a lâmina d'água. Então, sabe-se lá de que jeito, o
“homem da cobra” pegava uma espécie de abajour com lâmpada, esticava um fio
semelhante aqueles que se agarram às baterias de carro, tocava o peixe e a lâmpada se acendia. O abajour funcionava como estratégia para que a claridade do sol
não ofuscasse a lâmpada acendendo.
A
multidão ia ao delírio. Inacreditável! Em fração de segundos daquela exibição, parecia que mais
de cem rádios se ligaram. Todos viraram o “homem da cobra”. Todos falavam ao
mesmo tempo. Todos tinham um parecer... uns alegavam ser um truque, havia
até quem dissesse ser “coisa do diabo”, cada um que dizia uma coisa... a galhofança lembrava uma feira
movimentada. A maioria acreditava no fenômeno da lâmpada acendida no peixe, e
parecia gostar muito. Eu era dos tais.
O
“homem da cobra” aproveitava esse encantamento e debulhava um rosário de fatos
que alegava ter testemunhado. Dizia que aquela espécie era capaz de dar um
choque igual ao das tomadas das residências. De repente, como que um dispositivo tivesse sido ligado dentro dele como fazem aos aparelhos eletrônicos, ele era todo emoção. Passava a falar de maneira mansa, demonstrando tristeza.
Contava que viu uma mulher que lavava roupa na beira de um rio com uma criança de seis anos, cujo peixe elétrico se agarrou numa roupa e sem querer ela o puxou para si, sendo eletrocutada instantaneamente junto ao filho... que chegou a ver pescadores morrendo e se debatendo nas águas escuras do Amazonas, após ter pisado ou tocado no peixe elétrico... que presenciou um jacaré morrer
ao abocanhar aquela espécie... Para cada morte era um bordado diferente e triste, despertando comoção.
Algumas velhinhas choravam aos cântaros, emocionadas com as mortes que talvez
nunca aconteceram, mas cumpriam o papel importantíssimo de dar credibilidade ao
“homem da cobra”. Eu olhava de longe. Temia que aquele demônio saltasse dali e me atingisse.
Enfim,
chegava a hora do almoço e havia o intervalo para o seu repasto. Na
cidade não existe a sesta, portanto a movimentação de transeuntes é
ininterrupta. O “homem da cobra” retomava ao ofício e voltava a arremessar
palavras ao vento. Logo, inchava a multidão vespertina. Muitos eram da turma da
manhã, os quais retornavam instigados pela curiosidade inquietante. Ver duas
vezes era privilégio.
O homem vendia, brincava, contava histórias, vendia, instigava
a curiosidade sobre seus bichos, fazia caras e bocas, vendia, mostrava a cobra,
exibia o peixe-elétrico, vendia, enfim repetia com pequenas diferenças a mesma novela
matinal. Ele
se demorava até o sol avisar da sua partida. Então se despedia... Então o “homem da
cobra” fechava o veículo e desaparecia na rodovia...
Até
hoje não entendo por que o “homem da cobra” não era chamado de “homem do
peixe-elétrico”. E hoje, pensando sobre as artimanhas e perspicácias daquele
homem que na minha infância foi misterioso, reconheço que ele apenas usava os
instrumentos possíveis para vender o seu peixe... era um João Grilo da vida...
esperto... só isso... esperto à sua maneira, esperto segundo o que estava guardado dentro dele...
Fantástico! memória viva de um tempo inocente e bom!
ResponderExcluirgrande texto!!!