LENDA DO FOGO BATATÃO (registrada em 1992).
Contam os mais velhos que, antigamente, quem andava de noite pelas estradas rurais de Nísia Floresta via um malassombro chamado “Fogo Batatão”. O fato de o município ser muito bem servido de sítios e granjas, permite ao povo um constante trânsito por todos os lados, em carroças, jumentos, bicicletas ou a pé. Boa parte dos nativos são agricultores, ou plantam “de meia”, dividindo com o dono da propriedade o fruto do seu trabalho. Assim eles passam o dia zelando de suas belas roças de macaxeira, inhame, batata doce e outros frutos deliciosos da terra, ofertados pelo trabalho desses anjos, chamados “homens do campo”.
Nísia Floresta é um município de moldura verde. Assim que você atravessa a linha da velha Great Western, sente um ar frio, emanado de um túnel de árvores que liga esse município a São José de Mipibu. Na estrada se encontra uma única casa, aliás, um casarão do engenho São Roque, construção centenária dos tempos áureos do açúcar. É mato de um lado a outro. Toda a área é marcada por uma vegetação viva, viçosa e aprazível. A região é um vale de terras férteis, permeada de lagoas de água doce, incluindo a segunda maior do Brasil, por nome de Bonfim, pequenos rios e incontáveis olhos d’água. Esse habitat permite um frescor incomparável, cuja brisa lhe chega diferente, marcada pelo farfalhar das árvores, sinfonias de pássaros de toda espécie, atraídos pelo clima agradável.
Assim como a fauna e flora exuberante se acomodam à paisagem nisiaflorestense de Norte a Sul, complementando o cenário paradisíaco, os malassombros encontraram em suas matas abundantes, refúgio ideal para fazer morada. Contam os escribas das coisas fantásticas que os seres inumanos se apetecem dos lugares ermos, das tocas, dos túneis de capim e matas fechadas.
A presente lenda me foi contada em maio de 1992, pela senhora Maria Lidônea. Segundo ela, o malassombro lhes apareceu numa época em que a energia elétrica do centro da cidade era encerrada às nove horas da noite. Daí por diante os candeeiros e lampiões assumiam a função de esparramar luz, mesmo que amarela e acanhada, sobre as casas. Algumas vezes, ela e marido se demoravam até a noitinha no roçado próximo das instalações da mata que atualmente é o IBAMA, área conhecida como “Moita”. Era tradição dos agricultores daquele tempo. Muitas vezes alguns se estendiam até às 18h00, quando definitivamente, o sol de fato desaparecia. Até hoje um túnel de árvores praticamente engole a estrada, cujo local permanece ermo e sem moradores nas imediações.
Naquela época a violência era de 'se ouvir falar'. Parecia restrita às grandes metrópoles. Ninguém sabia o que era droga e suas mazelas. Os trabalhadores andavam por todos os lados, à noite, a pé, sem qualquer preocupação. Ninguém mexia no roçado alheio, não havia assaltos, assassinatos, etc. Pelo menos por aqui. Raramente acontecia algo que chocasse a cidade.
Ela e o marido madrugavam no roçado. Mal os primeiros raios de luz furavam o telhado, às 04h00, eles calçavam o chão de terra batida e se afunilavam ao túnel de árvores velhas, mimetizando-se à paisagem como se tudo fosse suas roupas e suas carnes. Costumavam levar um cantil com água e um bornal com rapadura, farinha, sobras da janta e outras comidas para preparar no roçado. Normalmente complementavam com os frutos do próprio cercado: macaxeira, inhame, fruta pão, coco, jaca, manga, araçá etc. Nos períodos de colheita eles improvisavam fogões a lenha sobre pedras, preparando as iguarias à sombra de uma árvore, ou num barraco de palha improvisado. Era essa a vida que encontraram desde que chegaram ao mundo.
Durante a safra, a família inteira escorria para a Moita, transformando as roças num palco de vida. De longe se ouviam as vozes de outras famílias conversando, envolvidas no mesmo mister. Lá passavam o dia com a enxada nas mãos, 'encamando' os leirões, capinando, queimando coivaras, limpando e tudo mais. N'outra feita adubavam, deitavam as mudas, molhavam, enfim eram tantos afazeres que quando 'davam fé' o dia se retirara sorrateiro e sem despedidas.
A maioria deles voltava para casa depois das cinco horas da tarde, quando a velha estrada mais parecia um cortejo carnavalesco, pincelada de papangus carregando sacos nas costas, foices e enxadas. Momento que contavam causos do arco da velha, cujas risadas rasgavam as matas. As crianças corriam lá e cá, montadas em palhas de coqueiros feito cavalos, brincando de tica, saltando, gritando, os pais dando carão de vez em quando... Outros agricultores se demoravam mais, entretidos, conversando com a roça, alinhavando começos para o dia seguinte. Retornavam sob o manto da escuridão. Naquele tempo toda a área que perpassa a Moita até o Monte Hermínio era um breu, retinto como panelas queimadas a lenha. “A gente caminhava meio cega, e chegava em casa pelo instinto”, nas palavras da senhora Lidônea.
Certa vez, ela e o marido voltavam para casa. Estava escuro como sempre e eles caminhavam naturalmente. De repente viram um clarão na mata. "Era uma espécie de explosão de luz… um facho enorme, mas não fazia nenhuma zuada", explicou a narradora. O casal pensou que era alguém queimando coivara e não deu importância. Sem maiores preocupações eles seguiram a passos lentos. De repente, numa fração de segundo notaram um clarão menor logo atrás deles. Não ouviram vozes e não viram pessoas. Era somente uma luz forte seguindo-os atrás.
De repente a bola de fogo passou por eles numa velocidade de flecha e 'ziguezagueou' na mata. A partir daí eles sentiram medo, pois conheciam a história do “Fogo Batatão”, contada por seus antepassados. “É o Fogo Batatão”, gritaram, disparando para casa. Mas quanto mais alargavam os passos, mais a bola de fogo se aproximava. Algumas vezes ela fazia movimentos desconcertantes: subia, descia, retrocedia, se aproximava. De repente se apresentava muito à frente deles. “Então, ao invés da gente fazer carreira pra a cidade, a gente corria ainda mais pra trás, pra onde tinha saído… se a gente fosse pra frente, ia dá no malassombro...”, explicou dona Lidônea.
O “Fogo Batatão” causou desespero. Para eles era um monstro de fogo tentando queimar a pessoa. “Teve uma hora que ele passou por mim que eu senti como se uma fogueira quisesse me abraçar”. Era impossível se desvencilhar do fenômeno. A única alternativa era correr em direção à cidade, “mesmo que o danado do bicho se apresentasse lá na frente”. Num dado momento o fogo se despedaçou, deixando a estrada como um rio de fogo. O casal saltou para a mata. O fogo apareceu atrás deles. “Foi mais ou menos meia hora de lida com aquele malassombro triste… o coração saltava pela boca, a gente já tava ficando louco”. De repente notaram que se aproximavam de alguns pontos de luz. Eram os candeeiros e lampiões das casas, pois já estavam na altura do Monte Hermínio.
Depois de uma longa carreira chegaram em casa, 'esbaforidos' e com o coração disparado. Os familiares ficaram surpresos com a fisionomia pálida do casal, que contou sobre o ocorrido, supondo ser o “Fogo Batatão”. Uma senhora de 95 anos, vizinha da casa, ouviu a história e saltou-se com essa: "sim, é o Fogo Batatão, não faz maldade a ninguém!". Todos rodearam a velha, a qual contou que aquilo era uma 'visagem' que aparecia para qualquer pessoa sempre naquele horário, sem ferir ninguém.
Preocupado, o casal passou a ouvir minuciosamente os fatos narrados pela velha senhora, que inclusive tivera experiência igual por algumas vezes. Ela os acalmou e disse-lhes que o avô dela havia contado que se eles não quisessem presenciar o fenômeno não voltassem mais naquele horário. Deveriam retornar antes de o sol se pôr. Mas se por acaso o “Fogo Batatão” aparecesse em outro lugar, era só andar ligeiro, mas sem olhar para ele, então o malassombro perderia força e desaparecia naturalmente. A própria velha havia feito isso no passado, quando criança, acompanhada pelo avô dela.
Mas como os encantos de um roçado são incomparavelmente superiores a qualquer outra coisa, logo esqueceram a recomendação da velha. Certo dia, retornando já com a noite debruçada sobre eles, reviveram o fenômeno do então "Fogo Batatão". Tudo que eles fizeram foi andar mais rápido, sem olhar para o malassombro, pois palavra de pessoa idosa – naquela época – era mais valiosa que pepitas de ouro. Então eles seguiram à risca o conselho e chegaram em casa em paz, pois o “Fogo Batatão” só quer brincar, sem saber que assusta, e quem não quer corresponder com a brincadeira, é só não se assustar e seguir como se nada visse, explicou dona Lidônea, que ouvira a explicação da dita velha.
O "Fogo Batatão" apareceu mais duas vezes, mas o casal o ignorava. Então nunca mais ele reapareceu. A velha explicou que “se a pessoa fizer bastante pouco caso dele, ele vai embora para sempre, e procura outro lugar”. E assim continuaram naquela vidinha pacata do roçado, embalada por inúmeras colheitas até a velhice. Dizem que até hoje o "Fogo Batatão" aparece muito em lugares com estradas ermas e envoltas de mata, como por exemplo, a estrada para o Pium, mas poucas pessoas relatam a aparição. Certamente o fenômeno da luz elétrica ofuscou o brilho do tão assustador "Fogo Batatão". L.C.Freire, maio/1992).
Isso é verdade, eu conheci o casal e eles me contaram todo o relato! Assutado!
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