Vivi duas pandemias
Nasci durante a gripe espanhola, em 1920, quando essa peste ainda comia o povo dois anos após desembarcar em nosso país. Cresci ouvindo mamãe contar sobre essa doença fatal que se desabotoou no mundo em 1918. Muita gente se encantou em Mipibu e região, mas fui uma das vidas cuja peste não se engraçou. Sobrei. Era menina franzina, branquela, sem graça, creio que assustei o vírus. Escapei.
Particularmente não pude saber por mim como foi esse tempo, pois minha vida se inaugurava. O que soube se deu através de histórias escutadas a partir dos meus oito a dez anos de idade. Sempre alguém se lembrava da gripe espanhola. Cada história mais triste que a outra. Famílias inteiras morreram. Crianças perderam os pais. Pais perderam os filhos. A peste fez da Terra a morada do medo e da morte.
Mamãe contava que o povo vivia escondido igual fazem hoje. Os doentes eram levados para locais retirados, onde as autoridades mandaram fazer barracos de palha para abrigá-los longe dos sãos. Ali se desencantavam e eram enterrados nas proximidades. E toda roupa de cama virava cinza ali mesmo. Há muitos cemitérios espalhados nas matas, sobras desse tempo horroroso.
Nunca imaginei que cem anos depois seria testemunha ocular de outra peste. Por mais que eu saiba que a gripe espanhola foi uma inquisição, para mim essa Pandemia é pior. Não me contaminei, mas estou acometida de solidão solitária. Velhice, por si é sinônimo de solidão, mas no contexto atual é torturante. Não sei por qual razão viver tanto. Muitos dos meus filhos já se encantaram. É indescritível depositar na terra quem saiu de dentro de você, quem você nanou e depositou num berço quentinho de vida e amor. Não me preparei para enterrar filhos. A lei natural ensina que eles nos enterrariam, mas precisei ir ao cemitério algumas vezes. É como puxar um gato para dentro da água. O mundo escurece. A boca amarga. Seu andar fica ataxico. O odor florivela empregna as narinas durante meses.
A Pandemia está sendo meio morrer de solidão. Os cientistas orientam uma espécie de resguardo. Eu já vivia toda abotoada na minha velhice, mas podia sentir o calor diário dos filhos que me sobraram, podia ver os netos, noras, genros esparramados casa adentro, como gatos. Mesa farta, conversas, casa cheia de vida. A peste os expulsou, pois tornei-me suscetível. Se não fosse os livros, as revistas, estaria vegetando. Mas até isso tem me enjoado. Até o alimento tem um desgosto, ao invés de ser um dos prazeres da velhice.
Quando mais jovem, eu gostava de solidão para pensar, ouvir as coisas que quase ninguém dá valor. Assim eu percorria o Sítio Araçá, recebendo presentes de Deus, escorridos como água pelo caminho. Eu catava poesia no mato. Mas a solidão, hoje, velha, pandêmica, soa como abandono, mesmo que não o seja, mas que precisa ser. Solidão com Pandemia é um apressamento da morte.
Peço a Deus que Ele dê fim à Pandemia, pois se é ruim para um jovem, não queiram saber o que é para um resto de vida, para aqueles que sobraram... Mas uma vez, sobrei. Sobrei diferente. Maria de Lourdes Freire.
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