ACTA NOTURNA –
19.7.2019
AS IRMÃS TEREZINHA
E LENIRA TRINDADE (Escrito entre 1995 a 2018)
Adentrando Papari,
logo após a curva da “Estrada dos Índios”, no ponto onde ela se funde à Avenida
João Batista Gondim, vê-se uma casa que passaria imperceptível não fosse o
aspecto de “casinha de boneca”, como chamamos popularmente, pois é o tipo de
residência na qual a mobiliária se acomoda primorosamente, repleta de
souveniers e assessórios decorativos. Tudo muito bem cuidado e limpo. A
construção baixa, de duas águas, coberta de telhas brancas, moldadas na coxa,
guarda aspecto bucólico.
Há duas janelas em
seu frontispício, emoldurando duas portas de madeira. O pequeno jardim bem
cuidado e colorido, portão metálico entre muro, mal passando a altura do
joelho, convida o visitante a descortinar poemas porventura guardados neste
exemplar arquitetônico em extinção. Há simplicidade singular na casinhola
antiga.
A espontaneidade do
convite se avoluma quando duas elegantes senhoras se apresentam eventualmente,
janelando, contemplando o movimento da rua, recebendo cumprimentos de
transeuntes. Uma é Lenira, outra, Terezinha. São irmãs. São Trindade. Nasceram
ali e nunca se casaram. Trajam-se com cores sóbrias. Normalmente usam vestidos
e óculos de grau tradicionalmente grandes com lentes fotocromáticas que lhe
emprestam características de óculos para sol.
Originalmente a
velha casa pertenceu à Celina Carvalho, irmã de Guilhermina Emília de Carvalho
mãe de Terezinha e Lenira. Dona Celina é mãe de Nitinha Palhano, que por sua
vez é mãe de Lurdinha Palhano (que durante anos dirigiu o Instituto Pio XII) e
Canindé Palhano, hoje bispo na arquidiocese na Diocese de Senhor do Bonfim, na
Bahia. São primos das duas irmãs solteiras, as quais são sobrinhas da senhora
Celina Carvalho.
Terezinha Bezerra
da Trindade e Lenira Bezerra da Trindade são filhas da senhora Guilhermina de Carvalho
Trindade, cujo nome de solteira era Guilhermina Emília de Carvalho. O sobrenome
Trindade veio do pai, o qual entrará na história mais abaixo.
Lenira e Terezinha,
irmãs inseparáveis, marcaram gerações através da beleza que chamou a atenção de
muitos rapazes de sua época, todos preteridos pela opção de escolherem-se
eternas solteiras. “Nós passamos boa parte da nossa vida cuidando de mamãe e o
tempo passou, mas na verdade nunca nos preocupamos com casamento... acho que é
o nosso destino... não faltaram pretendentes, às vezes até incomodavam com
insistência, e acabamos assim, uma cuidando da outra... nunca nos sentimos
solitárias ou infelizes, pois as coisas do dia-a-dia nos preenchiam”.
Dizer que durante a
mocidade Lenira foi “Rainha da Festa do Padroeiro de Timbó”, parece banal, mas
pelo contexto de época, não. Hoje em dia não existe mais o romantismo que
comandou os concursos de rainha de sua época e outras atividades típicas. Havia
uma aura de concurso de miss. As moças mais bonitas da cidade eram convidadas
por uma equipe da igreja, e quando aceitavam, concorriam com toda aquela carga
de disputa acirrada.
Havia talões
impressos em gráfica da Ribeira. semelhantes a um talão de cheque pequeno. Elas
recebiam vários exemplares. Quem literalmente corresse atrás de compradores de
votos, teria maiores chances. A venda dependia muito da articulação das
famílias. Lenira, embora muito recatada, saiu na perseguição de votos, mas a
depender dela, não obteria êxito. A sorte veio dos familiares. Família grande,
muito articulada.
O concurso era
levado a sério por alguns fatores: ajudar a igreja (obviamente), a vaidade de
se proclamar a beleza e a adrenalina da busca por votos. No caudal desses
fatores se desenrolavam variados fatos. Até confusões, fofocas, mexericos. Era
assunto de praças e janelas.
Lenira era dona de
beleza singular. Chamava a atenção de todos, portanto algumas concorrentes
temiam que no dia do resultado, os participantes da festa a preferisse,
colocando as demais de lado. Na realidade as pessoas de fato compravam os votos
movidos pela beleza. Muitos rapazes jogavam o dinheiro ganho durante a semana,
só pelo prazer de dizer depois “eu comprei tantos votos para você”, “você é a
mais bela”, “você é a mais encantadora”... Isso funcionava como paquera pré-histórica,
pois não podia passar disso, afinal eram os costumes e estavam no seio de uma
festa religiosa.
As famílias enchiam
o átrio da Matriz do Ó. Vinham fiéis de todos os lugares. Famílias que tinham
ido morar em Natal saltavam até Papari nesse tempo. Até os evangélicos
inventavam compromissos nas proximidades para passar dentro da festa no momento
da anunciação da “Rainha da Festa”. O evento roubava a cena. Significava uma
das raras e maiores festividades de Papari. Era aguardado, concorrido e comentado
durante meses.
As barracas feitas
de estacas de madeira, revestidas e cobertas de palha de coqueiro emolduravam o
templo. Choviam doações de carneiros, bezerros, porcos, perus e galinhas. Os
animais, vivos, eram trazidos à tardinha. Ficavam num cercado aguardando o
leilão. Também se faziam leilões de acepipes assados.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtNNaPzSbNHOo_zKBeZsqSRAAj9sS6m45TAJAOzSC5Qcz41wjkpsEhUPiYOcCXE-vFWHmV4_mSiRRgp5P1vbyIWOr2SWgUp1ztU5avfGPqdFeua6IlbMBIMtW2-dcqzBrJBshuQ4uDbB5R/s640-rw/thumbnail+%25282%2529.jpg)
Encerrado o
Novenário era dado início ao momento social. As imediações da igreja cheiravam
a comida. De instante em instante passava alguém gritando o leilão. Era frango
e peru assado, bolo lotes de cocada, cachos inteiros de banana e coco. Muita
comida. “Às vezes passava até galinha viva leiloada... era uma festa, muita
risada, muita alegria... tudo muito respeitoso... muito divertido... eu nunca
me esqueço... eu nunca mais quis ser candidata... Terezinha negou convite,
apenas ajudava”, explicou-me Lenira em 1995.
Dona Terezinha
contou-me que sua família foi educada na religião católica. “Nossos avós eram
católicos praticantes, envolvidos em múltiplas demandas da igreja, ajudavam
muito os padres... todos os sacerdotes que passaram por aqui frequentavam a
nossa casa... o padre Antonio chamava mamãe de “mamãe”.
Na década de 1950 o
padre Rui Miranda fez foi uma grande reforma na Matriz de Nossa Senhora do Ó,
ocasião que foi encontrada uma santa de madeira escondida entre as frinchas das
pedras centenárias. O padre disse a menina Lenira “essa santinha se parece com
você”. Todos que presenciaram a cena riram muito da excentricidade do pastor.
Foi ele que
celebrou a missa de corpo presente de Nísia Floresta à ocasião do traslado de
Rouen/França, para o Brasil em 1954. “Eu e Lenira já éramos moças formadas,
tínhamos quase vinte anos na época... eu me lembro desse dia... não tinha lugar
para botar tanto carro... a cidade parou... um avião fazia um barulhão no
céu... até um dia desses tinha um monte de papeizinhos jogados do avião, as os
chuviscos mofaram eles, estragou muitas fotos”.
Terezinha e Lenira são filhas de
Paulo Bezerra da Trindade, primo do senhor Pedro Trindade uma personalidade
muito respeitada nos círculos sociais e políticos em sua época no município. O
senhor Paulo trabalhou durante muitos anos no Cine Polyteama, na Ribeira.
Ficava onde atualmente se vê o Datanorte. O prédio original foi demolido.
Funcionou durante a década de 20. A empresa pertencia a uma rede que tinha em
várias cidades brasileiras. A paulista Jundiaí, por exemplo, transformou seu
Polytheama em um teatro. O cinema exibia filmes vindos do Rio de Janeiro que
eram importados pelas Companhias norte-americanas que montaram sucursal na
então capital do Brasil. O local foi inaugurado pelos idos de 1915, na Rua
Chile. Porém, os filmes demoravam a chegar pela falta de produção suficiente.
Em 1919, portanto,
há um século, vindo passear em Papari, como sempre fazia nos finais de semana,
Paulo Trindade deu de cara com uma linda moça chamada Guilhermina. A paixão foi
fulminante. Houve recíproca, mas ela era comprometida. Eles se conversaram
sutilmente algumas vezes, afinal era inadmissível a uma moça comprometida
conversar com um rapaz que não fosse seu namorado. “Muito respeitador, papai
aguardou mamãe terminar o relacionamento”. A propósito as relações de namoro
daquele tempo eram completamente diferentes dos relacionamentos atuais. Desse
modo eles se casaram em 1924 na Igreja Matriz de Nossa senhora do Ó. O
celebrante foi o sacerdote .Misael Justiniano de Carvalho.
Tiveram dez filhos.
“Naquela época as famílias eram grandes, tudo era diferente de hoje... quem vai
querer dez filhos hoje? e naquele tempo todo mundo se criava direitinho, tinha
comida para todos, as mães faziam o controle de tudo em casa”, explicou
Terezinha. Dentre as irmãs se destaca Conceição Bezerra da Trindade, nascida no
ano do casamento de seus pais. Foi uma das professoras mais respeitáveis de sua
época. Era a primogênita. Depois nasceram Antonio, José, Lizete, Celina, Lenira
Ivaneide, Pedro, Luiz e por fim Terezinha, a narradora dessa história e única
sobrevivente da imensa família.
Conceição Trindade
foi casada com “Olavo do Camarão”. São pais da escritora e professora
universitária Socorro Trindade. Terezinha e Lenira fizeram a Primeira Comunhão
e 1933? Numa celebração presidida pelo padre Pedro Paulino. “A gente estudava
no prédio da antiga prefeitura... eu estudei até o quinto ano no “Grupo Escolar
Nísia Floresta... foi construído pelo prefeito Sandoval Alicate”, contou
Terezinha.
Eu não tenho nada
de ruim para dizer da vida. Sou muito feliz. A hora de Lenira chegou e eu estou
aqui esperando a minha hora sem pressa nem medo. Somos muito católicos e
entendemos que todos têm a sua hora. Só peço uma boa morte, como minha irmã.
Sinto saudades dela, mas é normal. Fico aqui me ocupando, e num instante as
coisas passam”, finalizou Terezinha Trindade.
Em
outubro de 2018, última vez que as visitei até então, percebi que a casa
passara por reforma. A fachada mudou muito, conservando apenas duas janelas e
uma porta. Ela explicou-me que o vizinho fez uma troca com ela. Pareceu
satisfeita. Como disse, foi a última vez que estive com a senhora Terezinha
Trindade. Mulher delicada, que sempre me acolheu de maneira receptiva e
educada.
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