UMA NOITE SINGULAR
(Fato
real)
No dia 11 de julho de
2019, como sempre escrevia, organizando meus papeis velhos, quando gritos na
rua me instigaram a ir até a janela. Numa Saveiro mal estacionada e portas
abertas uma pessoa pedia socorro, implorando que seu agressor parasse. O carro
saiu como que embriagado e em alta velocidade. Do banco do carona as pernas de
alguém eram arrastadas nos papalelepípedos. O veículo escorreu violentamente pelo
declive no final da Felipe Camarão e freou num trecho mal iluminado. Aproveitando
a oportunidade a pessoa se desvencilhou do agressor e entrou por um beco
lateral, correndo enlouquecidamente, sendo quase atropelada pelo agressor que
deu marcha numa velocidade sem precedentes e retomou a Felipe Camarão como quem
participa de um racha.
Supus ser uma tentativa
de feminicídio. Saí em disparada, na expectativa de ajudar a vítima. Passando
por uma casa, ouvi alguém chorando muito e deduzi ser a vítima. Os moradores me
conheciam, então expliquei o que acabara de presenciar, e pedi que eles
levassem a pessoa para os fundos da casa, pois o agressor poderia aparecer por
ali, procurando-a. Foi quando constatei ser um menino de treze anos.
Os vizinhos próximos se
dirigiram à casa e começaram a fazer perguntas ao menino. Pedi que o aguardassem
descansar. Ele tremia, soluçava e respirava descontrolado, sem condições de
falar e menos de tomar água a água oferecida. Com muito custo conseguiu contar
que sua guarda estava em questão. Que era paulista e o pai quebrara o seu
celular para que ele não tivesse contato com a mãe.
Alguém telefonou para a
Polícia Militar, que apareceu após uns vinte e cinco minutos. Informaram que
vinham buscar o menino para entregá-lo ao pai. Na mesma hora me identifiquei,
expliquei sobre o meu profundo respeito aos bons policiais, contei o que vi e disse,
educadamente, que a criança só sairia dali após contatarmos o Conselho Tutelar
local. Inclusive expliquei que fazia questão de ser testemunha do fato. O
policial, calma e educadamente concordou. Percebi que ele captou bem o filme
que se passara naquelas ruas velhas e escuras dali.
Passados
aproximadamente uns dez minutos da chegada do policial, o pai surgiu defronte à
casa com mais dois policiais militares. Na casa, todos disseram que o referido
senhor não entraria. O policial que atendera a ocorrência orientou-os a
aguardar na esquina do beco.
Passados alguns
minutos, depois que uma pessoa do Conselho Tutelar de Natal (PASMEM!) disse,
por telefone, que a instituição não trabalhava naquele horário, fomos todos
para a Delegacia de Flagrantes Zona Sul. Um carro com a vizinhança se deslocou
também, solidarizados com o contexto.
Na Delegacia fomos
muito bem atendidos e o que me instiga a escrever esse texto não é nem tanto o
fato acima narrado, pois defender e proteger uma criança é necessário, fundamental
e inadiável. Mas refiro-me justamente ao atendimento da equipe da delegacia. É
importante ressaltar que eles trabalham num ambiente tenso, onde chegam
ocorrências sucessivas.
Prestada a Declaração, digitada
pelo escrivão Barros, começamos a conversar, inclusive logo chegou o delegado
Aldo Lopes. Eu não tinha ideia de estar diante de um monumento vivo da
literatura nordestina, mas confesso que a maneira respeitosa, serena e
inteligente como ele conduzia aquele contexto – inclusive tentando quebrar o
gelo, brincando com o menino de maneira paternal, sem quebrar o seu profissionalismo
– chamou a minha atenção.
Comecei a conversar com o garoto para tentar desvencilhá-lo daquilo tudo. Falamos sobre expressões nordestinas, pois quando perguntei se ele queria uma "bala", respondeu que nunca mais tinha ouvido essa palavra, pois aqui falam "confeito". expliquei-lhe que gramaticalmente o correto é a expressão nordestina, embora vale o regionalismo. Informei a ele que tenho um trabalho intitulado A Linguagem No Rio Grande do Norte, que eu também não era daqui, pois nascera no Mato Grosso do Sul.
Logo comecei a falar sobre o meu filho que pretende ser diplomata e estuda dia e noite nos
seus meros 18 anos. Então o escrivão Barros citou alguma coisa de Rui Barbosa. Dessa
colocação iniciou-se uma conversa que permitiu passear naquela pequenina sala nada
menos que o poeta Manoel de Barros, a intelectual Nísia Floresta, o genial
escritor Graciliano Ramos e o singular Guimarães Rosa. Observei que o escrivão
era muito culto e junto ao delegado a conversa deu um salto
Eu sempre acreditei nas
Polícias e as defendo muito. Para mim eles são Heróis. Não posso ser infantil, ignorando
que há ovelhas descomprometidas, MAS SÃO MINORIA. E falando exatamente sobre
isso, nas palavras do escrivão, constatei que na sala havia outros policiais da
mesma linhagem.
Foi-se o tempo que
policiais eram “Capitães do Mato”. Hoje há até PMs mestres e doutores. Que
importante! A civilidade das polícias faz com que trabalhem mais com
inteligência que com a força e a coerção que, em alguns casos, é necessária.
Mas, inegavelmente, a educação, em sua plenitude, é o que move tudo, transformando
para melhor.
Constatei, in loco, que
aqueles homens que tomam café dia e noite, que andam com armas enfiadas no cós,
que aparentemente parecem achar que o submundo da mente humana é até normal – de
tanto que lidam com seus efeitos – são pais, mães, são educadores, escritores, geógrafos,
filósofos, poetas, artistas... são gente
igual a gente.
A mãe do garoto chegou,
desdobrou-se em agradecimentos. Havia outras pessoas ali. Vieram como
testemunha e nem foi preciso. Mas não deixaram de exercer esse ato de respeito
ao ser humano. Respeito à vida.
Saí impressionado e
feliz por ter ajudado a salvar uma criança, linda por dentro e por fora. Como
educador e pai, imaginei o seu sofrimento. A minha preocupação era sobre os
traumas... Era para aquele menino estar feliz, estudando, se divertindo, mas
viveu momento de terror.
Que bom que ele voltou
para o colo mais delicioso do mundo.
Senti a sua felicidade.
Eu nunca havia entrado
numa delegacia, nem sido testemunha de nada, mas saí dali cheio de testemunhos
bons.
Fiquei me perguntando
uma coisa. Eu estava em casa, estudando, digitando uma de minhas Actas
Noturnas. De repente veio tudo isso... será que foi por acaso?
Parabéns a polícia!
Muito obrigado em nome
de muitos e muitos brasileiros!
Por onde eu andar, falarei
sobre vocês! LUÍS C. FREIRE
Senhor Luis Carlos Freire, em nome da 2a. Equipe Dpzs, agradeço pelos bons adjetivos com que se referiu a nós policiais civis, e também aos nossos irmãos policiais militares. Como bem disse em seu texto, acabou o tempo dos "Capitães do Mato", pois as nossas instituições, apesar de serem intituladas de repressoras, são compostas por homens e mulheres que vislumbram uma sociedade melhor e mais humana, sempre buscando primar pela ordem, legalidade e bem-estar da nossa tão sofrida e mal acolhida sociedade. Somos pais e mães, maridos e esposas que, mesmo assoberbados de problemas, abrimos mão das nossas agonias para resolver as muitas que nos chegam. Fico feliz pela sua concepção, sobretudo em virtude de sermos uma categoria execrada pela mesma sociedade por quem damos a vida.O que venho a pleitear perante a sua significativa observância é que divulgue o que por vossos olhos e pensamentos foram contemplados no transcurso desta ocorrência, pois somente assim seremos capazes de eliminar o estigma que paira sobre as cabeças de nós policiais. Seja feliz e nunca perca a oportunidade de ajudar a quem necessita, principalmente quando o necessitado for uma criança ou um idoso. Encerro por aqui ciente de mais uma missão cumprida, visto que muitas ainda virão. Severino dos Ramos.
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