Dona Oride (2003)
As
senhoras do Apostolado da Oração, amigas de infância, entraram esquadrinhando
cada centímetro do casarão centenário. Vieram trazer as malas de Rogaciana, filha da dona da casa que chegara de São Paulo. A casa emanava um miasma. Misto
de mofo e notas indecifráveis de velharias. Algo esdrúxulo. Nunca experimentaram cheiro
semelhante. As paredes carregavam a cor da primeira demão pincelada há mais de
sete décadas, embora descascada. O pó, a fuligem, os vapores e picumãs
matizaram de forma incomum tudo o que se abrigava naquela assobradada casa.
A
junção dessa alquimia metamorfoseada durante muitos anos impregnou móveis, cortinas,
caminhos de mesa... Era uma cor harmonicamente mesclada. Tudo se desenhara com
a mesma estampa. Predominava o acinzentado. Não era exatamente a cor da tinta,
mas as matizes do tempo, efeitos que a química de vento e gordura de cozinha se
encarregou de tingir cada pedacinho do que a casa guardava. A estampa do tempo
vestiu os próprios móveis. Teias de aranha lembravam redes de dormir
dependuradas nos cantos, principalmente atrás dos móveis, antigas como tudo
mais que existia em cada cômodo.
Uma
das senhoras se imaginou arqueóloga, adentrando pela primeira vez numa câmara
de pirâmide egípcia, descortinando tesouros antigos. Algumas janelas se
fundiram como peça única, efeito de décadas trancadas. A própria geladeira revelava
essa homocromia, camuflada no cenário onde dona Oride foi parte do mimetismo.
O
chão da casa tinha uma espécie de película acetinada, efeito da ausência de vassoura.
Dona Oride nunca deixou entrar uma versão de piaçava em sua morada. Usava
vassoura de mato. Varria a casa uma vez por mês. O quintal desconhecia ciscador. Dizia que folha seca era o melhor adubo do mundo. O terreiro, ancho, tinha foros de uma mini-floresta.
Espécies abundantes floresceram ali, entrelaçadas a jaqueiras, mamoeiros,
limoeiros, abacateiros, araçás, bananeiras, sapotis, fruta-pão e outras árvores frutíferas. Uma sucessão
de folhas secas aterrissadas ao longo dos anos bordou um tapete no chão. Era o
quintal que mais via passarinho na cidade. Camaleões e tijuaçus gozavam eterna paz naquele pedacinho do paraíso silvestre. Ela conservava uns tambores com água
sob um puxadinho. Ali a passarada tinha o seu lago exclusivo. A ausência de
trânsito de pessoas deu àquela florestinha um bioma especial. Não havia árvore sem
ninho. O pé de quixabeira tornou-se um condomínio de pássaros. Para ampliar a
avifauna, galinhas, perus, pavões, patos se esparramavam no quintal que ocupava
a metade da quadra. Os bichos comiam nas mãos da anfitriã. Ela estando ali era
como se integrasse a família de cada hóspede, seja de penas ou de pelos. Era uma mãe para eles.
A
cozinha de dona Oride mimetizava a mesma tonalidade da sala e dos outros
cômodos, envernizada pelos vapores e oleosidade do fogão a lenha. Havia um fogão à gás
da marca Cosmopolita, usado nas raras noites que ela preparava algum chá. Tinha
preferência pelo calor das brasas e o crepitar da lenha ardendo a partir das
quatro e meia da manhã, quando o sol rompia as frestas das janelas. Dizia que
comida de verdade é deve ser preparada na lenha. O entregador de gás aparecia ali uma vez por ano,
entrava pela porta dos fundos, mal pisava os tijolões brancos da cozinha, pois o
Cosmopolita ficava estrategicamente ao lado da porta. Certamente foi a maneira
encontrada para delimitar a entrada de estranhos.
Eurídice
Cordolina da Conceição Alcântara, era o nome de batismo da proprietária, mas todos a chamavam Dona Oride". O casarão
ficava ao lado da Igreja Matriz. O marido, Ernesto Trajano de Alcântara morreu
jovem. O casamento contava dezoito primaveras quando um acidente no escritório
da Rede Ferroviária os separou. Viúva aos trinta e três anos, nunca mais se
casou. Dizia: “casamento é um só”.
Após
deixarem as bolsas e sacolas sobre o sofá da sala, as visitantes inaugurais deixaram o
casarão, impressionadas. Não diziam uma palavra...
A
cidade que viu Dona Oride nascer, testemunhara agora o seu velório no centro
pastoral. Contava noventa e oito anos. A filha única, Rogaciana, de meia idade,
chegara à cidade há vinte dias. Ainda muito jovem passara num doutorado em São
Paulo e ali se estabelecera. Era médica. Raramente visitava a mãe. A última
visita se dera há uma década. Surgia como beija-flor. O povo criticava a sua
atitude. “Dona Oride é abandonada pela filha”, diziam... A velha nunca fez
comentário sobre isso. Talvez achasse bom o isolamento. Talvez
compensasse tudo na ebulição de seu quintal. Gostava de seu cadinho.
Comentavam
que dona Oride, como era conhecida, fora abandonada por tudo e todos, que era
mulher triste. Talvez estivessem enganados. Certamente seu quintal era maior
que o mundo. Dona Oride tinha uma vida eletrizante. Cavava, ciscava, podava
plantas, fazia regos d’água, moía milho, tratava das aves, molhava as plantas,
torrava café, pilava grãos, assava pãos em seu forno a lenha... não parava um segundo. O quintal era um centro
nervoso de afazeres religiosamente cumpridos no dia-a-dia. Estava sempre descobrindo
ninho de pássaros, nascimento de pintinhos e sagüis que abundavam por ali.
Outrora colhia frutas ou se debruçava no seu jirau de coentro e cebolinha. Sua
morada fervilhava acontecimentos. Vida agitada. Ela fez do seu habitat um
planeta formidável. Sua solidão fervilhante talvez traduzisse sua forma de ser
feliz.
Dona
Oride foi dessas senhoras muito reservadas. Talvez sua discrição representasse
uma forma de frear pessoas indiscretas, como dizia ela mesma à sua filha. “Não
gosto de gente embiocando casa adentro. Mamãe não me criou enfiada em casa
alheia”. Era muito polida. Raramente alguém a via na rua ou no comércio. Quando
passava uma criança ela gritava “meu filho, corra ali e compre um pacote de
açúcar pra mim”. Alguns disparavam dali, com medo, mas a criançada vizinha,
sabedora que sua nocividade era a mesma de um cordeiro, vinha no risco, pois ganhava parte do troco. Muitos deles remanchavam
por ali, aguardando demandas da velha.
A
casa da velha Oride só via a luz do sol através da porta da frente e dos fundos.
Todos diziam que nunca viram as janelas laterais abertas. Os raros visitantes não passavam do portão. Gente íntima tinha acesso apenas à
varanda, mas muito rápido, pois ela se encarregava de tornar as visitas breves.
Alegava um feijão no fogo, um banheiro para limpar, uma casa para varrer. Eram desculpas
para despachá-las.
Como
o leitor percebeu, a casa de dona Oride era desabituada à vassoura. Alguns juravam
que ela era bruxa. Talvez pelas vassouras de mato descabeladas, sempre escoradas ao muro. Proclamavam
também que ela era macumbeira. Nunca havia desaparecido menino algum na cidade,
mas “o quintal de dona Oride era cheio de meninos enterrados”, diziam. "Eram
crianças que se arriscavam a roubar goiaba, pitomba e sapoti". A história corria
nas conversas escolares. Havia quem sentisse pavor de ir ao banheiro escolar,
pois ali “dona Oride se escondia, plantava um porrete na cabeça da criança e a
levava para sua casa. Comia os olhos”. Dois garotos alegaram tê-la visto
pulando o muro de sua casa com um menino nas costas.
Curiosa,
ou contraditoriamente, os adultos daquela cidade gostavam muito dela, inclusive
os católicos. Outros eram indiferentes. Ao longo de sua vida dona Oride pisou
na igreja três vezes. Quando se casou, batizou a filha e enterrou o marido.
Nunca mais sentiu cheiro de insenso. Em compensação ajudava quase
todos os eventos organizados pela igreja. Fazia ofertas consideráveis à época
dos festejos da festa do padroeiro São Paulo, bancava as despesas com flores,
doava garrotes, carneiros, bolos e outras prendas para os leilões que ocorriam
após as novenas. Eram famosos os seus bolos, doces e frangos assados que ela
doava em quantidade. Tudo preparado no insubstituível fogão a lenha. A fama de
seus pratos saborosos corria a cidade há décadas.
Ela
não freqüentava a festa. Sequer apreciava do alpendre e tampouco da janela. As
más línguas espalhavam que ela cavara buraquinhos em pontos estratégicos das
paredes para brechar episódios ocorridos quando a festa se
encerrava. Diziam ser coisas horríveis. Diziam.
Dona
Oride tinha saúde admirável. Sua destreza e desenvoltura surpreendiam. Acordava
com os passarinhos e dormia com as galinhas. De quando em vez inventava podar
suas árvores e passava o dia nesse mister. Ela mesma arrastava os galhos para a
rua. Era uma das únicas vezes que ultrapassava o portão dos fundos do quintal.
Esse evento atraia a atenção de algumas pessoas, as quais inventavam trânsito
por ali só para vê-la. Queriam constatar coisas ouvidas nas conversas do povo.
Alguns não acreditavam que uma pessoa tão idosa fosse capaz de tais prodígios.
Outros queriam conferir se o seu rosto era realmente de bruxa, ou se no lugar
do rosto havia uma caveira, conforme comentários. Mas como dona Oride usava
sempre um chapelão sobre o lenço de cabeça, as lendas perduravam. Raras pessoas
viam o seu rosto.
Muitos
não sabiam se era coincidência ou hábito, mas quando dona Oride arriscava
aparecer no jardim de sua casa, ou irrompia nos portões dos fundos, arrastando
galhos velhos ou latões de lixo, trajava o mesmo vestido e avental. Assim como
sua casa, ambas as peças tinham a mesma cor. Comentários antigos davam conta de
que dona Oride só usava um vestido. As poucas vezes que ela se abalava ao comércio,
era com o dito vestido e avental, confirmando os comentários.
Umas
das senhoras que esteve na casa de dona Oride, constatou que ela era
literalmente um pedaço da casa. Como um tecido que se corta, cujo retalho
extirpado leva a mesma estampa. A velha era esse retalho. As raras vezes que
saia de casa, soava como se o retalho passeasse. Dona Oride era impregnada da
casa e a casa impregnada dela. Dentro de sua morada ela desaparecia, mimetizada
nas cores dos sujos. pelas cores velhas do tempo. Eram como se a casa fosse viva e tivesse olhos. Só se via seus olhos piscando, perscrutando tudo.
O
hábito de enxugar e limpar as mãos nas roupas, e por vezes nas cortinas ou
paredes, tornou dona Oride camuflada em seu habitat. Se um ladrão entrasse ali
jamais a veria. Ela era parte da estampa e se confundia com as cores velhas do
tempo.
Quase
toda tarde dona Oride aparecia na varanda para regar as plantas. Só era
possível vê-la se ela se movimentasse. Se parada, confundia-se com lodos e
tintas descascadas nas paredes. Não era fácil dar de cara com ela. Normalmente
aparecia após o banho. Costumava banhar o rosto numa velha bacia de alumínio no
quintal. O resto era responsabilidade de uma chuva de talco. Outrora despejava
no corpo uma lavanda inglesa, sua essência preferida. Um homem da “malária”
disse tê-la visto coberta de talco na altura do seio.
Os próprios meninos da vizinhança diziam que uma de suas encomendas correntes
era justamente talco. Sabiam até a marca: “Alma de Flores”.
Dona
Oride era generosa nas doações feitas à festa do padroeiro. Doava diversos acepipes
preparados com satisfação. Tempero famoso. Seus frangos, bolos e pães eram
aguardados com ansiedade. Muitos chegavam mais cedo para comprá-los, garantindo
um jantar diferente. No meio da festa não existia mais nada de suas doações. Todos
queriam seus quitutes, justificando serem inigualáveis. Era afamada por isso.
Certa vez as freiras locais pediram que ela repassasse seus conhecimentos
culinários às noviças. Ela negou enfaticamente, alegando não ter o mínimo jeito
para ensinar, nem gostava de fazer nada com pessoas olhando. Disse que comida
feita por muitas mãos nunca fica boa. Sua franqueza impediu que as religiosas
insistissem. Outros moradores e até o dono de um restaurante a procuravam para que ela ensinasse os seus pratos
deliciosos, mas sequer eram atendidos do portão.
Quando
dona Oride era jovem, protagonizou um fato curioso numa dessas festas. Ela doou
uma bacia cheia de frango assado que rendeu resenhas durante anos. Não deu para
quem quis. Quando restava apenas um frango, um festeiro percebeu que o frango
trazia uma florzinha esturricada abaixo do uropígio. Depois descobriu que, de
fato, não era o sobrecu. Dona Oride retirou o sobre e deixou o resto.
Curiosamente os glutões apreciaram a iguaria com tanto gosto que mal sobraram
ossos. Diziam que nunca comeram frango mais delicioso. Certamente depois alguém
encontrou uma forma de contar o ocorrido à dona Oride, pois nas festas
seguintes os frangos chegavam apenas com o sobre. O resto ela jogou para os seus bichos.
A
história do frango foi praticamente sepultada, pois as delícias geradas em sua
cozinha consistiam num patrimônio tão cobiçado, que não valia a pena se lembrar
de um deslize. E o fato se passara há décadas. Só gente de idade encostada à
idade de dona Oride conhecia o episódio que rodou a cidade à época.
Durante
o velório, cada um dizia alguma história sobre dona Oride. Verdade ou lenda,
não importava mais. Seja como for, ela se encontrava num caixão, agora camuflada por
flores. O velório arrastou muita gente, principalmente pessoas da igreja e
gente antiga. Tinham gratidão pela senhora que não pisou nas missas, mas seu
espírito caridoso tocava todos. A filha não se aproximou um segundo do
ataúde. Dizia querer guardar a fisionomia da mãe viva. Com certeza ela guardava
a imagem de uma Oride bem mais jovem, pois a última visita tinha sido há 10
anos.
No
rol das conversas típicas de velório, houve quem dissesse – sabe-se lá como souberam
– que, certa vez, preparando um bolo, dona Oride deu com duas imensas baratas
mortas no pote de manteiga da terra. Com bastante jeito ela fincou o dedo na
vasilha e sacudiu-as rumo à porta do quintal. A mira mal calculada
resultou nos insetos estatelados na parede, ficando ali mesmo grudados. Todos
diziam que dona Oride guardava segredos culinários de antepassados e não
transmitia a ninguém. Na realidade, o que muitos desconheciam, de fato, eram os
bastidores da cozinha de dona Oride, onde ocorria a alquimia de seus acepipes
deliciosos, doados para a festa do padroeiro. Seu grande segredo era a sua
cozinha, onde ela não tinha besteira com nada.
Sua
tábua de carne era literalmente uma tábua de madeira cheia de ranhuras. Nunca
viu sabão. Para ela as mãos eram um precioso instrumento de limpeza. Bastava pegar os utensílios sujos, alisá-los com as mãos na água, e estavam limpos novamente. Não apreciava muito o sabão, embora ela mesma o fabricasse. Uma vez perdida usava melão São Caetano para lavar roupa e louça. Só usava bucha vegetal para lavar suas caçarolas de ferro. O produto
existia aos montes, enramados no muro e nas árvores do quintal. Ela mantinha
uma técnica especial na pia da cozinha. Costumava raspar com as unhas o fundo
das panelas, assim retirava os restos de alimentos grudados ao fundo. O restante ficava debaixo de suas unhas. As vasilhas
eram limpas só por dentro, pois a fuligem do fogo tisnava toda a orla das
panelas, sendo desnecessário lavá-las. Assim ela sentenciava.
Outra
particularidade de dona Oride residia na preparação de pães. Sobre uma mesa de madeira que
nunca viu água ela sovava a massa com uma mão de pilão. A peça ficava no fundo
do alpendre, sobre um balcão exposto, no qual caminhavam sagüis, passarinhos e
todo tipo de traça. Antes de usá-la, ela alisava com as mãos e a poeira desaparecia. Estava
limpa. Dona Oride dizia “o que não mata, engorda”. Quando ela usava novamente a
mão de pilão, a bicharada já havia saboreado o resto de massa que ali se grudara. Bastava alisar a mão de pilão e ficava limpa novamente. Suas mãos
funcionavam como esponja de limpeza para tudo, bastava alisar.
Seus
pães tinham tempero diferente. O suor do rosto se associava às pitadas de sal
da receita, descendo aos cântaros devido ao calor do fogão sempre aceso, enquanto
ela sovava a massa. Técnica semelhante ela usava no preparo de bolos. O avental
substituía água. Toda vez que sujava as mãos com massa de bolo, pão ou ovos,
recorria ao avental e até mesmo ao lenço da cabeça. Tudo secava no próprio
corpo e findava se esfarelando conforme ela fazia outras demandas da casa ou do
quintal. Se sujasse muito as mãos com manteiga, esfregava pelas paredes da cozinha. Talvez tudo isso explicasse o mimetismo de dona Oride, seja no
quintal, na cozinha, na sala, no banheiro, pois ninguém a via, mas contavam que
ela via todos.
O
cortejo escorreu pelas ruas da cidade logo ao entardecer. A filha não queria que o
padre encomendasse o corpo da mãe, justificando que ela nunca freqüentou igreja
e não lhe ensinou fé alguma. As senhoras antigas, amigas de infância de sua mãe,
horrorizadas, imploraram que ela permitisse ao padre encomendar o corpo. Ela cedeu a contragosto. A igreja
lotou. Dona Oride foi sepultada às cinco e meia da tarde, sob por do sol. No
campanário ouviu-se o canglor choroso do sino até a última pessoa deixar o
cemitério. Na boca da noite, Rogaciana mandou uma senhora deixar um pacote com
considerável quantia para a igreja.
Rogaciana
havia se hospedado na casa de amigos antigos. Alegava ser alérgica a pó, mas na
realidade o motivo era outro. As pessoas talvez não conheciam a casa, mas a
filha, sim. No dia seguinte ao sepultamento ela amanheceu na casa da mãe.
Trouxe umas senhoras locais, amigas de dona Oride. Passaram uma semana organizando
o ambiente. Foi uma experiência singular. Perceberam que dona Oride não limpava
a casa há muitos anos, talvez décadas. Todas as janelas foram abertas, pois a
casa trazia um aspecto insalubre. As cortinas se desmanchavam ao toque. As
toalhas de mesa estavam puídas, riscadas de sol. Um pó semelhante a talco se
espargia ao simples contato. Era possível ver as partículas como nuvens
atravessando as réstias de sol.
Havia
um grande guarda-roupa no quarto. Uma pilha de presentes se amontoava, não
permitia caber nem mais um lenço. Tudo fora enviado de São Paulo pela filha ao
longo dos anos. Ela sequer os abriu. Sobre o móvel, se sobrepunham uma
infinidade de pacotes plásticos e caixas, tocando o forro. As mulheres desceram
um por um. Eram lençóis, colchas, peças de crochê, labirinto, renda e panos de
prato que não tinham fim. Tudo exibia etiquetas com o preço em moeda
ultrapassada, assinalando que de fato tudo aquilo estava ali há quase cinquenta
anos, intacto. Muitas peças estavam puídas pelo desuso, exibindo um amarelecido
nos vincos. Nunca foram desdobradas. Algumas estavam roídas por traças. Outras,
se rasgavam quando desdobradas. No interior do armário havia um amontoado de
roupas que jamais tocou o corpo da mãe. Dona Oride comprava tecidos e ela mesma
costurava seus vestidos com agulha de mão, embora tivesse uma antiquíssima Vigoreli em perfeito estado. Herança de sua mãe. Todos os presentes que ela ganhou ao longo do
tempo foi sepultado em seu roupeiro.
As
gavetas da cômoda estavam cheias de sabonetes lacrados, com preços em cruzeiro,
cruzeiro novo, cruzado e novo cruzado. Em igual estado se misturavam centenas
de perfumes, desodorantes, shampoos, cremes. De tão velhos, perderam o cheiro. No
criado-mudo uma bela caixinha de madeira se destacava. As mulheres ficaram
surpresas, pois quando abriram saltou uma bailarina que se pôs a dançar uma melodia metálica.. A caixinha de música
guardava anéis, correntes, pulseiras e brincos de ouro maciço. Tudo pertencera à mãe e
avó de dona Oride. Seu corpo nunca exibiu nenhuma delas. As únicas jóias que
usava eram as alianças dela e do marido juntas no dedo da mão esquerda.
Na outra gaveta jaziam alguns álbuns antigos de
fotografia. As primeiras mostravam o casamento de dona Oride. Nada lembrava a
princesa estampada nos inúmeros retratos. O rosto de noventa e oito anos,
permeado de rugas, sepultou uma beleza singular. Igualmente ao marido,
verdadeiro príncipe, conforme comentou uma das senhoras. Um pacote recheado de
velhas correspondências também estava nessa gaveta, guardando inúmeros
episódios da família.
Enquanto
as mulheres organizavam a casa, três homens contratados por Rogaciana, limpavam
o quintal, sem imaginar que destruiam um verdadeiro bioma. Nunca se viu um
espaço urbano com tantos bichos que de repente viram
extinto o seu paraíso.
A
cozinha, muito espaçosa, diferenciava um pouco da tonalidade dos outros
cômodos, pois o fogão a lenha tingiu de preto o teto e as paredes próximas. Era
um preto envernizado. O forno à lenha
ficava sobre um grande balcão de alvenaria. Dois armários guardavam frascos e
materiais diversos. As mulheres abriram as gavetas e encontraram muitos
alimentos misturados a diversos produtos. Havia muita lingüiça ressequida em
meio a pedras de sabão, pacotes de farinha, café, sabão em pó, frascos de
tempero, especiarias, açúcar, panos de prato usados, cujo branco deu lugar a um
verde lodo. As prateleiras traziam todo tipo de grãos misturados: arroz,
feijão, milho, farinha, enfim não havia como entender a dinâmica que dona Oride
usava para preparar pratos tão deliciosos em meio aquele ambiente incompreensível.
Foram retirados muitos frascos de margarina e manteiga em uso; todos abertos e
cheios de barata, aliás era o que mais se via no armário, ao lado de fezes
desse inseto e até mesmo de ratos. De vez em quando um gabiru saltitava,
assustando alguém. Foi preciso chamar os homens que limpavam o quintal, pois as
mulheres se assustavam a cada vez que mexiam em algo e espantavam os bichos.
Sobre
a bancada haviam latas grandes, cheias de banha de porco, onde ela mantinha a carne
pré-cozida. Todas traziam a orla mofada. Outras traziam baratinhas mortas. Numa
das gavetas havia pedaços antigos de carne de sol. Pareciam esquecidos.
Lembravam pedras secas. Tinha muitos queijos inteiros e pedaços espalhados pela
cozinha, duros feito cepos. Todos roídos por traças. Sobre o fogão jazia a
última refeição que dona Oride preparou. Uma panela trazia um guisado de carne.
Outra, feijão e a última, jerimum cozido. O cheiro de azedo se apresentava, misturado
a outros cheiros indescritíveis. Rogaciana ameaçou vomitar diversas vezes. Num
dado momento pediu que as mulheres deixassem tudo aquilo intacto, pois ela
mandaria atear fogo no quintal ou enterrá-lo. As mulheres discordaram, pois os
móveis eram belos e de madeira de lei. Valia a pena limpá-los. Os cantos da
cozinha estavam repletos de cascas de ovos, legumes, limão, laranja e restos
secos de alimento. Havia muitos alimentos intactos em seus pacotes e
recipientes. Alguns vencidos há muitos anos.
Quando
a geladeira foi aberta exalou um cheiro de lodo e algo podre. Era um
eletrodoméstico muito antigo, embora funcionasse com perfeição. Assim que
puxaram a alavanca da porta, se assustaram. As paredes internas estavam
revestidas de lodo escuro, permeado por camadas verdes. Havia muitas verduras,
legumes e frutas em perfeito estado, misturados com outros produtos estragados.
O congelador guardava muita carne. Era a única parte que não trazia lodo devido
ao gelo, mas havia muito sangue congelado, cujos filetes escorriam pelas
paredes do refrigerador. A gaveta estava cheia de verduras se desmanchando junto às vasilhas
cheias de produtos indecifráveis. Tudo estragado e mofado.
Ao
longo da limpeza Rogaciana assustou-se com a dimensão do esdrúxulo lixo, e mandou
os homens cavar um buraco no quintal para sepultar para sempre o pesadelo. Só
deixou os móveis e utensílios intactos. Assim evitou expor ainda mais a vida da mãe.
Não havia remédio algum na casa, sequer um comprimido.
Dona Oride nunca sentiu uma dor na unha. Morreu de velhice. Coincidentemente
nessa última visita da filha, ela modificou um pouco os hábitos. Numa de suas
raras idas ao comércio, teve um infarto fulminante em plena praça. Não
experimentou o desprazer de ter a vida consumida por doença. A filha tomou
todas as providências, agilizando o centro pastoral da cidade para acolher ao
velório. Foi a primeira vez que a cidade assistiu a um velório fora da casa da
morta. A curiosidade de conhecer a casa de dona Oride pelo menos em seu velório, morreu ali.
Rogaciana autorizou que as senhoras, que eram amigas da
família há décadas, levassem alguns móveis e objetos da mãe. A cristaleira foi
esvaziada. Nunca se viu tanta peças lindas e delicadas. O jogo de jantar, em porcelana fina, pintado a mão, foi presente que dona Oride ganhou em seu casamento. Nunca usou. Estava completo. Havia muitos copos e taças de cristal,
vasos de louça e imagens sacras portuguesas. Tudo herança dos avós, peças valiosas, enfim a
casa era abundante em ornamentos Tudo estava revestido com a estampa da casa.
Estampa velha e silenciosa. As mulheres limparam a mobília de dona Oride com
esmero. Cada peça metálica foi polida, porcelanas e louças, lavadas. Os móveis
receberam um banho de cera de carnaúba e nada diferiam de mobiliário novo.
Todos eram de madeira de lei e estavam ali desde o casamento. Ela nunca os
mudou de lugar.
A casa estava impecável. Cheirava. No
mesmo dia saíram alguns carros com móveis e objetos doados por Rogaciana. A
casa ficou quase vazia, exceto alguns móveis e o velho carrilhão que ela reservou não se sabia para
quê. Naquela semana o padre a procurou. Veio para saber o que Rogaciana faria
com a casa, já que ela era filha única e não havia parente deles na cidade. Ele pediu o imóvel, alegando que dona Oride sempre fora muito generosa com a igreja.
Expôs que era uma propriedade muito valiosa, e o fato de o imóvel ficar ao lado
da matriz o tornava essencial para as demandas da igreja. Com sua frieza
peculiar, Rogaciana disse que estava estudando o que fazer, e que ele
tomaria conhecimento no momento certo.
Rogaciana
passou quase um mês resolvendo demandas daquela morte. Mandou pintar a casa e
fazer pequenas reformas. A cidade estava perplexa com a novidade amanhecida. A
casa foi doada oficialmente para uma velha senhora amiga de infância de sua
mãe. Rogaciana mandou instalá-la no imóvel junto a duas filhas solteironas. A
viúva era muito pobre e morava numa casa de palha. Um táxi encostou logo cedo
para levá-la ao aeroporto. Ela deixou a cidade pela manhã.
Nunca
mais Rogaciana pisou naquela cidade.
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