O VARAL DE DEUS…
Desde que Fídias começou a balbuciar as primeiras palavras, escrevi-as num caderninho para tê-las guardadas, cumprindo garantir-lhe futuramente o seu glossário infantil. Além de suas primeiras palavras, protocolei suas primeiras frases. Aliás, antes de ele nascer eu já colecionava pérolas saídas da boca de crianças abaixo de 6 anos. Crianças que encontrava nos eventuais da vida. Sou muito apetecido a palestras infantis, onde brotam perfeitas pétalas poéticas, instigadoras da escrita. É a melhor liga para poesia.
Quando Fídias experimentava os seus 4 anos de idade, brincávamos na calçada, matizados pelo âmbar do ocaso que divisava o horizonte. O céu traduzia uma ilusão azul recordando um manto sem estampas de nuvens. Fídias olhou esse firmamento e exclamou “olha, pai, o varal de Deus!”. Ele se referia àquele rastro branco que se forma atrás dos aviões a jato, nos mais longínquos céus, como se a aeronave puxasse uma imensa corda branca, que se destaca na imensidão azul.
Como sabemos, esse “varal” é feito das“plumas” de vapor de água que, sob determinadas condições atmosféricas, formam uma espécie de rastro branco por onde a aeronave voa em altíssima velocidade. Quem não matou as aulas de Física – para sermos mais “científicos” – sabe que esse risco branco é um simples fenômeno físico, proporcionado pelo calor das turbinas condensando o vapor de água, transformando-o em cristais de gelo, esticando o “varal de Deus” por onde o avião voe. Haja roupa para Deus estender!
Toda essa cientificidade jamais atingiria Fídias naquela primavera de bodas de frutas (casado ele com sua infância). Era pano para o seu ginasial. Então foi mais fácil pensar: “como Fídias sabe o que é um varal”? Mas logo percebi que para as crianças é muito fácil saber o que é um varal. Elas adoram sentar no chão para brincar, de maneira que um varal fica entre ela e o céu. Toda criança vê o varal antes do passarinho.Varal faz parte da visão delas, e pode se transformar num parquinho de diversão particular.
Fídias desprezou todos os brinquedos industrializados que ganhou. Apetecia-lhe os brinquedos invisíveis e desprezados a quintal, a propósito, os mais fascinantes exercícios para a criatividade infantil. Desse modo, ele não trocava barro, pedaços de pau, tijolos e qualquer coisa de canto de muro por um robô que emitia barulho e piscava luzinhas coloridas. Carrinhos? Não chegava nem perto! Dar brinquedo de loja para Fídias era intermediá-lo para outra criança.
Recordo-me de uns três ou quatro pequenos bonecos plásticos que o encantava, com destaque para o Homem Aranha (seus únicos brinquedos de fábrica). Esses envelheceram em suas mãos. Ele os enganchava em barbantes e os pendurava no varal de roupas do quintal ou do terraço. Passava o dia embalando brincadeiras com aqueles bonecos, criando histórias faladas ao modo ‘dialeto’. Só ele entendia o monólogo. Aliás, ele e “Crispin”, uma criança invisível que lhe fez companhia durante um naco de sua infância. Quem o visse nessas palestras, impressionava-se, pois Fídias respondia perguntas do amigo. Nesses colóquios o seu quintal era maior do que o mundo. Estando em casa o seu brinquedo tinha parte com os varais. Bastava esticar os olhos para o céu e lá estava um varal no meio do caminho…
Alysgardênia sempre aproximou Fídias das coisas celestiais, de modo que ele tinha latifúndios sobre o céu. Eu, anêmico e desnutrido desses mistérios - sem prejuízo para a minha retidão humana -, não atingia essa beatitude. Mas inventar um varal para Deus era ser muito infinito!
Fídias conhecia muito bem o que era um varal. Varal da casa. Varal de estender roupas para secar. Varal-brinquedo. Varal-Parque de diversão... Então, nessa tarde crepuscular, ele olhou ainda mais alto e teve a visão do “varal de Deus”.
Até hoje, quando olho o céu e dou conta desse fenômeno aeronáutico, tenho a visão do "varal de Deus". Creio que, dentre toda a humanidade, eu seja a única pessoa que conhece o “varal de Deus”. L.C.F. 2019
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