LEMBRANÇA DO ENCANTAMENTO DE ANA
CASCUDO - 2015...
NÃO MORREM ÀQUELES QUE VIVEM EM NOSSOS CORAÇÕES
Ontem, 15.1.15, eu estava jantando quando a InterTV Cabugi anunciou a morte de Ana Maria Cascudo Barreto (filha de Câmara Cascudo), ocorrida à tarde. A surpresa foi tanta que não consegui conter a emoção. Alysgardênia tentou me consolar, dizendo que nesses últimos dias ela estava sofrendo muito, e então havia descansado.
Minhas lágrimas lastimavam a perda, o
grau de prejuízo que consiste o desaparecimento de uma intelectual do quilate
de Ana Cascudo. Era um sol que radiava beleza, cultura, conhecimento, intelectualidade,
calor humano, alegria, humildade e delicadeza. Creio que se desprendeu do Rio
Grande do Norte uma energia jamais muito especial, rara e difícil de se rever
em outros. Até ontem, ela era a filha viva mais ilustre. Única.
Ana Cascudo foi um dos seres mais
especiais que conheci. Tinha brilho próprio. Não viveu à sombra do pai. Mas
como não poderia ser diferente, encantava a todos falando do seu convívio com o
grande gênio. Conseguia trazer Câmara Cascudo para perto de todos quando o
reverenciava com admiração e encantamento.
Sei que foi apenas coincidência, mas
na última comemoração do dia do folclore que estivemos juntos, fiz uma
fotografia que mexeu muito comigo ao vê-la estampada no computador. A
fotografia fala por si. Redigi um pequeno texto sobre essa imagem – também
muito carregado de coincidências – coloquei moldura e ofertei a ela – em nome
da Comissão Norte-Riograndense de Folclore - em homenagem ao seu aniversário,
ocorrido no dia 13 de outubro. Ela se emocionou. Essa fotografia eu a entreguei
junto com Fídias e Gardênia, no dia do lançamento do livro de Gutemberg Costa,
quando nos fotografamos juntos.
Ana Cascudo era membro da Academia
Norte-riograndense de Letras, uma das fundadoras da Academia Feminina de
Letras, primeira mulher a presidir um júri no estado, escritora, historiadora,
folclorista, pesquisadora, procuradora da justiça, conferencista, e presidente
de honra da Comissão Norte-rio-grandense de Folclore, da qual faço parte.
A impressão que tenho sobre ela não
me é passada pelo seu currículo ou pelas condecorações, mas por sua essência
humana. Era inteligente, acolhedora, extrovertida, falante, risonha... roubava
as cenas naturalmente, fazendo abordagens e observações com propriedade e graça
inatas. Os assuntos mais corriqueiros, tratados ao redor de uma mesa de café
com bolo, biscoitos, guisados (como era comum no café da manhã das nossas
reuniões da CNRF) tinham uma aura mestra em suas falas. Sempre de forma
simpática e agradável. Era um dom. O que ela falava soava como deliciosa aula.
Ana Cascudo percorria o Brasil, ora
em consequência de seu próprio legado, ora representando o legado do pai, Luís
da Câmara Cascudo, inclusive no exterior, quase sempre recebendo condecorações
e méritos, além de proferir palestras e conferências.
Há dois meses, numa das nossas
reuniões da CNRF, construíamos o gérmen de um projeto que acontecerá no meado
de 2015. Eu digitava e todos os demais membros davam palpites sobre os
parágrafos. Ela fazia observações muito doutas, na tentativa de dar cada vez
mais substancialidade ao texto. Todos paravam e olhavam por alguns segundos,
admirando... como se em nossa frente estivesse a própria sabedoria
personificada.
Conheci Ana Cascudo em 1992. Depois, quando tomei posse na Comissão Norte-Riograndense de Folclore, nossa amizade se fortaleceu. Em Nísia Floresta realizei uma infinidade de eventos alusivos à intelectual Nísia Floresta (para quem não sabe, ela também era parente dessa intelectual). Em algumas ocasiões convidei-a, a qual se fazia presente com a filha Daliana. Lembro-me de um evento, no qual lhe foi entregue um Diploma de Honra ao Mérito (in memorian) a Luís da Câmara Cascudo, proposto por mim. Sugeri e foi acatado também, um projeto que condecorou-a com o título de cidadã nisiaflorestense, o qual ela recebeu pouco tempo depois.
Confesso que senti fortemente essa
perda, pois Ana Cascudo era um patrimônio de valor incalculável. A orfandade do
RN é grande. Ninguém quer que desapareça quem tem como lema edificar,
construir, inovar.... Principalmente tão rápido. Como não poderia ser
diferente, ela amava inconsequentemente o folclore. Uma de suas características
era tratar como reis e rainhas os brincantes de alguma manifestação folclórica.
Isso era formidável e inspirador, pois sabe-se que muitos os discriminam pela
rusticidade e - por incrível que pareça - pela brasilidade.
Era católica fervorosa e nutria forte
respeito por todas as crenças. Falava da da Virgem Maria com emoção e brilho
nos olhos. Dizia que o Inferno deveria ser muito triste e amedrontador, e que
Deus, em sua infinita bondade, jamais permitiria que um de seus filhos o
experimentassem. Quantos homens e mulheres, protagonistas de alguma
manifestação folclórica, exibiram seus dotes em outros estados do país,
patrocinados por ela, silenciosamente.
Sua última conferência, que tive o
prazer de assistir, foi sobre os ‘Orixás e seus encantamentos’. Ela trouxe
informações inéditas, fruto de velhas anotações obtidas in loco com a Mãe
Menininha do Gantois. Um presente!
Sua morte trouxe-me à luz uma entrevista que o ‘Fantástico’ fez com Chico
Anísio. Perguntado se ele tinha medo de morrer, respondeu “eu não tenho medo de
morrer, tenho pena”. É como se essa ‘pena’ se devesse ao fato de se sepultar os
personagens que ele criou ao longo da vida artística. É como se sepultassem uma
multidão. Consequentemente um baú de sabedoria seria enterrado. Isso se parece
muito com Ana Cascudo, a qual teve um legado próprio.
Em todos os nossos encontros ela
trazia um novo assunto, seja do passado, do presente, algo espiritual,
folclórico, sociológico, antropológico, jurídico etc. Ela levou coisas que
jamais saberemos. Tenho certeza absoluta que as palavras de Chico Anísio também
seriam ditas por ela, acaso lhe perguntassem.
A morte às vezes me é complexa.
Esquisito admitir que um ser tão especial, farto em sabedoria, se transformará
em cinzas... Por mais que ela tenha deixado um legado intelectual admirável, a
sabedoria que o nutriu foi junto. Ninguém a herdou. Isso me entristece muito.
Mas esses devaneios são coisas de momento. Sou obrigado a reconhecer o quanto
somos insignificantes diante da morte.
Ana Cascudo era visionária e pensava
grande. Ela quis deixar para o Brasil um patrimônio ainda não descoberto por
todos: O Museu Casa de Câmara Cascudo, intacto, com o mobiliário, objetos,
documentos, condecorações, fotografias etc.
Ela comprou da família a parte que
lhe cabia em herança, adquiriu um terreno paralelo à essa casa e ali surgiu o
Instituto Ludovicus. Tudo com dinheiro adquirido honestamente, aliás a honestidade
lhe foi outra herança louvável do pai. A nobreza desse gesto, justamente por se
pensar no contexto educacional, cultural e histórico e de memória, é digna de
aplausos. O Brasil conhece raros exemplos desse tipo. Nem o Governo faz isso! A
responsabilidade dos herdeiros de Ana Cascudo é infinita.
Fico pensando como será a nossa
primeira reunião no Instituto Ludovicus, onde todos os membros da Comissão
Norte-Riograndense de Folclore se encontram. Será difícil subir aquelas
escadarias cheias de história, impregnadas pela sua presença. Mais difícil será
a experiência de entrar no auditório e não ver mais o brilho excelso daquela
mulher que antes de entrar já era pressentida. Teremos que nos reinventar para
tocar o barco.
Como disse Françoise de Saint-Exupéry "Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, mas não vai só, nem nos deixa sós; leva um pouco de nós mesmos, deixa um pouco de si mesmo."
Ana, em suas diversificadas lutas,
também me lembra Horácio, quando eles disse que “Não pode um homem ter melhor
morte que lutando contra o desconhecido pelas cinzas de seus pais e pelos
templos de seus deuses!”
Meus sentimentos aos seus familiares,
aos amigos e aos membros da Comissão Norte-rio-grandense de Folclore. Descanse
em paz, Ana, obrigado pela experiência singular da tua amizade!
LUIS CARLOS FREIRE
Membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore - 16 de janeiro de 2015.
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