No campo da leitura, poucas mulheres tinham acesso a obras de maior densidade intelectual. As leitoras, em sua maioria pertencentes às elites urbanas, restringiam-se a missais, a traduções de romances sentimentais franceses ou a compilações moralistas. A representação feminina no espaço literário, seja como leitora ou como personagem, ainda era de forte dependência em relação ao universo masculino.
Na Europa, algumas vozes já começavam a tensionar essa tradição. Escritoras como George Sand e personagens icônicas, como Madame Bovary, de Flaubert, revelavam as contradições da mulher burguesa diante da ordem patriarcal. Contudo, a imagem dominante permanecia a da esposa dócil e da filha obediente. Esse cenário começa a ser transformado, no Brasil, pela intervenção ousada de Monteiro Lobato, que, ao inserir personagens femininas de destaque em sua literatura infantil, projeta uma representação social inédita para o seu tempo.
As personagens femininas do Sítio do Picapau Amarelo não podem ser analisadas apenas como figuras literárias. Elas constituem discursos sociais encarnados em corpos narrativos, que desafiam normas de gênero vigentes. Dona Benta, a matriarca culta e leitora voraz; Tia Anastácia, guardiã do folclore e da memória popular; Narizinho, menina curiosa e autônoma; e Emília, a boneca de pano dotada de alma e espírito crítico, rompem com os estereótipos da passividade e inauguram uma nova pedagogia literária para a infância brasileira.
Sob a perspectiva da crítica literária feminista, pode-se argumentar que Lobato introduziu uma epistemologia alternativa do feminino. Suas protagonistas não se restringem ao espaço doméstico; pelo contrário, ocupam o lugar do saber, da fala e da crítica. Dona Benta assume funções tradicionalmente masculinas - a do erudito, do educador e do gestor - sendo uma mediadora entre o saber científico e a experiência cotidiana. Emília, por sua vez, encarna o espírito questionador e subversivo, antecipando debates sobre a autonomia e a subjetividade feminina.
A ligação entre Monteiro Lobato e Nísia Floresta não se dá apenas pelo reconhecimento explícito de sua obra. Ambos partilham de uma consciência crítica sobre a desigualdade de gênero. Nísia Floresta, considerada a primeira feminista da América Latina, publicara, ainda em 1832, Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, obra de forte caráter iluminista e emancipatório. Em seus romances e ensaios, Nísia reivindicava a educação feminina, a autonomia da mulher e a igualdade de direitos - pautas revolucionárias para a época.
Ao incorporar referências à autora potiguar em seus ensaios e ao desenhar protagonistas femininas dotadas de autonomia, Lobato revela-se não apenas leitor de Nísia, mas continuador de sua visão. Pode-se dizer que Lobato “traduziu” para o universo infantil aquilo que Nísia defendera no campo político e filosófico: a necessidade de naturalizar a presença da mulher no espaço do conhecimento, da crítica e da liderança. Vale ressaltar que em uma de suas obras, Monteiro Lobato cita Nísia Floresta de forma elogiosa, provando que ele a conhecia bem.
Do ponto de vista sociológico, é relevante destacar que Lobato direcionou essa transformação ao público infantil. A pedagogia subjacente a sua obra atua como um mecanismo de socialização: crianças que crescem lendo sobre mulheres fortes e independentes constroem uma visão de mundo distinta daquelas expostas apenas a narrativas patriarcais. Nesse sentido, o Sítio do Picapau Amarelo não é apenas um espaço de fantasia, mas um laboratório social em que novos papéis de gênero são experimentados e legitimados.
Essa pedagogia feminista antecipada pode ser lida à luz das teorias de Pierre Bourdieu, especialmente no que se refere ao conceito de habitus. A literatura infantil, ao modelar práticas simbólicas e valores, ajuda a formar disposições cognitivas e comportamentais que se prolongam na vida adulta. Portanto, as personagens femininas de Lobato, ao destoarem da tradição, desempenham um papel ativo na modificação do imaginário social brasileiro.
É impossível, contudo, analisar Lobato sem reconhecer as ambiguidades de sua obra. O tratamento dado a personagens negras, como Tia Anastácia, reflete tanto o avanço de inseri-las em posição de relevância — guardiã da tradição oral, da sabedoria popular e do folclore brasileiro — quanto as limitações do discurso racial de sua época, permeado por estereótipos hoje considerados racistas.
A crítica contemporânea insiste, com razão, na necessidade de problematizar esse aspecto. Entretanto, do ponto de vista histórico, é igualmente válido reconhecer que, ao colocar uma mulher negra como depositária da memória cultural nacional, Lobato rompeu barreiras simbólicas e deu voz a segmentos sociais até então silenciados na literatura infantil.
Monteiro Lobato pode ser considerado um dos pioneiros na introdução de narrativas feministas na literatura infantil latino-americana. Ao criar personagens femininas autônomas, críticas e protagonistas, aproximou-se do projeto emancipatório inaugurado por Nísia Floresta no século XIX. Sua obra não apenas diverte, mas também educa - e educa para a igualdade, para a ciência e para o respeito às diferenças.
Seus textos, apesar das contradições, revelam um compromisso com a transformação social e com a construção de um Brasil mais justo. Ao delegar a mulheres fictícias - Dona Benta, Emília, Narizinho, Tia Anastácia - a tarefa de conduzir debates filosóficos, científicos e políticos, Lobato subverteu a ordem patriarcal e ensinou às novas gerações que a inteligência humana, como ele mesmo sublinhou, não tem sexo.
Assim, pode-se afirmar que a literatura infantil lobatiana, ao mesmo tempo em que dialoga com o passado, projeta um futuro. Um futuro em que as mulheres, como já reivindicava Nísia Floresta, não seriam coadjuvantes, mas protagonistas de sua própria história. 21.8.2025
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