ESTE MÊS DE AGOSTO (HÉLIO SEREJO).
O mês que não é bom para muita coisa, na observação sadia dos folclórogos: fazer viagem de negócios, plantar planta de semente escura, cruzar, encruzilhada depois das seis horas da tarde, fazer jogo de baralho tendo mulher como parceira, contar conta de rosário com os olhos abertos, discutir com negro macho, noivar na primeira quinzena, brincar de roda, matar porco de chiqueiro e pedir dinheiro emprestado para pagar contas.
Isso
tudo é do folclore e das crendices, que se explica assim: viagem
para negócio é deliberação condenável, isto porque derno não quer estar
em seu caminho, pois esse mês é todo seu; plantando-se semente de cor
escura nunca dá plantação compensadora, é paiol que fica vazio para
tristeza da família; não se deve “cruzar encruzilhada” na hora do “anoitecendo”,
perigo topar satanás que nesse momento, gosta de pregar peça” nos
descuidados e abelhudos; jogo de baralho, no mês de agosto, tendo mulher
como parceira, o “azarão” vem para cima do macho, porque é o mês mais perigoso
das mulheres; pra se contar contas do rosário – é prática sagrada milenar – os olhos
devem permanecer cerrados, porque, assim, o pensamento vai até os “guardiões
do espaço”, morada sublime dos que nos protegem dia e noite; negro
homem, no mês, têm sangue “apurado”, isto é, sangue que “esquenta à toa”, não
sendo nada discussão com o mesmo, porque o “coisa ruim” atua o mesmo, gerando
briga de morte; noivado em agosto, de “um a quinze”, não prenuncia
felicidade, pois, na contagem a era antiga desse mês de tradição
universal comprovam – são: três, sete, onze, treze;
demônio, ou o “irmão mais velho”, o tinhoso Mefistófeles, ficam
apavorados com o vermelho, tanto seja o vestidor homem, mulher ou criança. É
que a cor berrante – sangue em pano – destroça os sentidos das feras,
fazendo brotar, a qualquer hora do dia ou da noite, o dia é fúrias que estão
acumuladas no corpo satânico; não se deve batizar neguinho, seja macho ou
fêmea, porque, com o tempo, o negrume do corpo fica muito mais negro do
que o negrume da noite; o brinquedo “brincar de roda”, que vem dos tempos
imemoriais, não traz saúde, nem alimenta o corpo, porque o rodar constante roda
a cabeça, amolecendo os miolos, transformando o “rodante” num “gira mundo”,
inconstante e desatinado; matar “porco de chiqueiro”, em agosto, é um ato que “pode
chamar desgraça”, e “desgraça” das brabas. E qual a causa, no ótica folclórica?
É que porco de chiqueiro engorda bem e com “sustança” com a força do vento do
mês que “aumenta a fome e faz a gordura crescer”.
Quanto à “desgraça”, é que o “mal da fome” pode arruinar a família, com ato da matança na ocasião condenada; não pense nunca em “pedir dinheiro emprestado” neste mês, para pagar suas contas, pois, se o fizer, o “ganho futuro” enchafurdará, no lodo, a paz familiar
Agosto – não há quem tenha conhecimento disto – é mês de cachorro louco, mês que atassalha os nervos, ante o vento irritador, mês de chirriar agourento da coruja, do cantar rouquenho da siriema na chaca, da ronda desesperada do corvo faminto e do passar do caminhante sem destino.
Quando, em agosto, o vento, cabuloso e enervante vem do Nascente, já se sabe que a caníncula vai cozinhar as folhas da lixeira ereta, rachar o chão, e secar a orla dos brejos. É quando os pássaros procuram outro “viveiro”, porque o solão brabo matou, ali, o que servia para encher, fartamente, o papo.
O banhadão, com isso se enche de tristeza, porque a desolação encampou a paisagem que era arrebatadora e festiva.
Mês
de agosto está nas páginas de valiosos livros do passado remoto. Foi superstição
marcante na época caraveleiros. Chegou a mudar hábitos de raças. Desnorteou
exércitos em movimentação de guerra. Dividiu reinos. Nunca teve dono. Pertence
à humanidade. SEREJO, Hélio. Balaio de bugre: edição especial. Tupã, SP:
Gráfica e Editorial Singral, 1992.
Quando criança ouvia muito minha mãe, Maria José, dizer que "agosto é mês de cachorro louco". Por incrível que pareça surgiam cachorros "loucos" em Bataguassu. Obviamente que estavam acometidos de 'raiva'. Mas o curioso da história é ter-se a certeza de que tal mês traz cachorro louco. É mês de ventania constante, mês do diabo a quatro, e ninguém melhor para nos contar sobre as folcloridades do Mato-Grosso-do-Sul do que o nosso conterrâneo Hélio Serejo. Essa crônica acima é uma dentre o seu vasto balaio de bugre.
Como nos lembra o calendário cultural brasileiro, o mês de agosto é tradicionalmente associado ao folclore, e não por acaso. Desde os tempos coloniais, esse mês carrega consigo um imaginário negativo — reforçado por eventos históricos, climáticos e por narrativas orais. Hélio Serejo, com seu olhar arguto e profundo conhecimento das tradições regionais, compõe um verdadeiro tratado poético das crendices do interior, muitas das quais ecoam em diversas partes do país.
O texto é um desfile de superstições e prescrições folclóricas: não cruzar encruzilhadas, evitar o jogo de baralho com mulheres, não plantar sementes escuras, não noivar na primeira quinzena... Todas essas interdições revelam um universo simbólico rico e estruturado, no qual a vida cotidiana está entrelaçada com o sagrado, o profano e o misterioso. Há um código cultural implícito que visa preservar o equilíbrio com as forças invisíveis que regem a natureza e o destino humano.
Além disso, a linguagem — ora popular, ora elaborada — confere força literária ao texto. Palavras como “derno”, “tinhoso”, “sustança”, “enchafurdar”, “gira-mundo”, “anoitecendo”, “siriema”, “banhadão” — revelam um compromisso de Serejo com a oralidade e com a manutenção do vocabulário regional, ao mesmo tempo em que constroem imagens poéticas que dialogam com o real e o fantástico.
O uso da linguagem popular — com suas inflexões, neologismos, metáforas e imagens — é um dos grandes méritos do texto. Hélio Serejo não escreve sobre o povo; ele escreve como o povo, resgatando o seu modo de falar, de crer, de narrar o mundo. Essa opção estilística não é mera reprodução folclórica: é um gesto de valorização da cultura oral como forma legítima de conhecimento e de expressão estética.
O que poderia parecer, à primeira vista, apenas uma coleção de crendices, revela-se, na verdade, uma estrutura simbólica complexa. Cada interdição, cada “não fazer” tem uma razão de ser, e, mais ainda, está ancorado em percepções sensíveis da realidade: o vento, o calor, o comportamento dos animais, a colheita, a doença, o azar. Assim, o texto opera entre o mítico e o empírico, entre o religioso e o ecológico, evidenciando como o povo interpreta e responde ao ambiente que o cerca.
Hélio Serejo (1908–1993) é um dos maiores expoentes da cultura e da memória popular do Centro-Oeste brasileiro, sobretudo do atual estado do Mato Grosso do Sul. Seu legado literário, etnográfico e folclórico é de inestimável valor para a preservação das identidades regionais, frequentemente esquecidas nos discursos hegemônicos da cultura nacional. Escritor, pesquisador, cronista e memorialista, ele dedicou a vida à coleta, interpretação e divulgação das manifestações populares, especialmente aquelas ligadas ao sertão, ao Pantanal e aos povos ribeirinhos.
Obras
como “Balaio de Bugre”, de onde
foi extraído o texto citado, são exemplos notáveis de como a literatura pode
ser ao mesmo tempo documento histórico,
testemunho cultural e arte literária. Serejo nos convida a olhar para o
Brasil profundo, para o “país real” que sobrevive nas falas, nos gestos, nas
lendas e nas práticas do povo.
Em tempos de homogeneização cultural e apagamento das expressões locais, textos como este nos lembram da importância de valorizar o folclore não como algo ultrapassado ou supersticioso, mas como forma viva de conhecimento, de resistência e de identidade. As crendices aqui narradas não precisam ser interpretadas literalmente, mas simbólica e culturalmente, como respostas coletivas a medos ancestrais, como tentativas de dar sentido ao que é incerto — o clima, a sorte, a morte, o amor.
Celebrar o mês do folclore é, portanto, celebrar a alma popular do Brasil — e, com ela, vozes como a de Hélio Serejo, que souberam escutá-la, compreendê-la e eternizá-la em palavras.
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