Quando eu era criança tive muitas noites sul-matogrossenses embaladas por estórias de Trancoso contadas por minha mãe. Seu repertório trazia a “Lenda da Lagoa de Extremoz”, “Lenda da Lagoa do Bonfim”, a “Lenda da Lagoa de Papari” (não é a de Jacy e Guaracy, mas a da “Cobra Verde” – qualquer dia escrevo sobre ela), dentre outras. Das suas ‘contações’, as que mais me impressionavam eram referentes às pessoas que sonhavam com “botija” cheia de moedas de ouro enterrada em lugares estratégicos por quem já havia morrido. Nesse universo onírico, aparecia alguém revelando o lugar exato do enterro da botija, cujo privilegiado que ousasse desenterrá-la deveria respeitar verdadeiro ritual envolto em mistérios.
Dentre as minhas reminiscências infantis, trago outras, ouvidas de outras pessoas, não posso negar que as que mais encantaram e ficaram gravadas nitidamente foram três estórias contadas por um cearense na casa dos 80 anos, chamado Expedito. Eu contava 12 anos à época. Em visita à casa dos meus pais, há cinco meses, soube que ele havia morrido quase centenário. Talvez você não acredite, mas são estórias gigantescas. Uma delas é quase odisseia. O critério para ouvi-la é possuir dois poderes: não ter pressa e compreender o imaginário popular. Se você não tiver essas duas capacidades, nem tente. As crianças e os adolescente da minha época – pasme! – tinham tempo.
Mas vamos lá... Esse senhor era vigia de um órgão público que ficava próximo a minha casa. Isso se casava muito bem com o vai-e-vem de um ‘magote’ de menino que brincava tranquilamente até, no máximo, às 22h00, indo dormir a primeira ‘convocação’ paterna. Nesse contexto eu – e mais uma meia dúzia de meninos – sentiam-se mais atraídos pelas histórias contadas e recontadas pelo vigia, que pelo esconde-esconde ou o que quer que seja que ocorresse nas “brincadeiragens” próximas.
Vale destacar que a maneira que ele contava era incomparável. Qualquer cinema de primeiro mundo era fichinha para ele. Parecia essas pessoas que hoje fazem “contações” nas escolas. Tinham onomatopeias, gestos, tons altos, baixos, enfim, sua didática aprendida na universidade da vida, de maneira espontânea, exercia verdadeiro feitiço na plateia muda, a qual mal piscava, envolta no contexto da narração. Saíamos dali com a mente fervilhando de imaginações.
Hoje, passadas mais de três décadas, o apaixonante disso tudo é ver pinceladas, nuanças dessas estórias em meio a outras que li e ouvi em contextos e épocas diferentes. Um exemplo muito forte deu-se em 2006, quando li “A Botija”, da professora Clotilde Tavares (que ainda tive o gosto de tê-la como mestra em 1997, na UFRN). A estória é fascinante, inclusive reli-a três vezes. O que mais me encanta nessa obra (que deveria ser lida por todos os brasileiros) é o meu “reencontro” com esse senhor cearense em meio às páginas deliciosas escritas por Clotilde tantos anos depois.
“Vi” o senhor Expedito por diversas vezes passeando por ali. Curioso é que as estórias contadas pela escritora, que as ouviu em sua infância (na Paraíba) se mesclavam com as que ouvi no Mato Grosso do Sul, contadas por um cearense. Por vezes as estórias do senhor Expedito se pareciam logo no início, outrora no meio, outras vezes no fim.
Certa vez, no intervalo da visita de “Patativa do Assaré” no Auditório da Reitoria da UFRN, me reencontrei com o professor Deífilo Gurgel (in memorian), para o qual eu já havia falado enteriormente das tais estórias do cearense. Ele me disse “agora você vai contar uma daquelas estórias”. Foi muito interessante vê-lo rindo sem parar.
Quem gosta de ler sabe muito bem que a literatura é cheia de experiências iguais. A gente está sempre reencontrando velhos personagens, perfis, fatos etc com roupagens similares nas páginas que vão sendo passadas. Uma pessoa daquele livro que você leu lá atrás reaparece com outro nome. Até mesmo pessoas da vida real surgem nas páginas. É incrível! O meu reencontro com o senhor Expedito, no “A Botija” foi uma experiência inesquecível, a qual só compreende quem dá valor aos livros e às pessoas simples.
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