A cidade em que nasci foi inventada por um homem extraordinário. Ele veio fugido da Tcheco-Eslováquia, hoje República Tcheca, perseguido pelos nazistas. Jan era visionário. Se vivo, ainda estaria anos-luz adiante… Eu tinha 19 anos de idade em 1986, ainda descobria o que era a vida lá pelos sertões do Mato Grosso do Sul, quando soube de um escritor também tcheco-eslovaco. Não sei onde li a informação, mas aquilo me interessou. “Tenho que ler esse livro, é de um escritor da Tchecoslováquia”, como se ser tcheco significasse o máximo.
Mas o meu julgamento ocorria porque eu sempre quis ler os livros de Jan, mas eram todos em eslovaco (era impossível). Então, ler Milan Kundera, em português, me aproximava daquele homem espetacular. “Quero ver como um tcheco escreve”. Foi o primeiro livro para adulto (de autoria de estrangeiro) que li. Antes, conhecia apenas Andersen, Esopo, Os Irmãos Grimm… coisas bem infantis.
Milan Kundera me impressionou tanto que escolhi esse livro (o original mesmo, da minha adolescência) para estar guardado comigo até hoje, dentre quase todos os demais de Kundera. Ele morreu, agora, no último dia 11 de julho, caminhando para os 100 anos (contava 94 anos). Vinha adoentado há um bom tempo. Sempre digo que tenho pena quando pessoas geniais morrem porque elas são como os jardins do parque de Keunkenhof em Rijnland, Amsterdã, na Holanda.
Sempre gostei de escrever, e Kundera, dentre tantos, me ensinaram muito. Na obra “A insustentável leveza do ser” ele aborda alguns de seus temas preferidos: sexualidade, filosofia, com personagens refletindo sobre a ironia e a insignificância da vida. Era um escritor-filósofo. Ele vivia exilado na França. Deixou a Tchecoslováquia em 1975 e nunca mais retornou à sua cidade natal. Ele se fez conhecido por esquadrinhar a mente humana, seus pensamentos, sentimentos e crenças do indivíduo, assim como sexo e relacionamentos. Em sua obra-prima, A Insustentável Leveza do Ser, Kundera contou a história de um triângulo amoroso tendo como pano de fundo a Primavera de Praga.
Hoje lembrei-me dele. “Preciso escrever alguma coisa sobre esse homem fantástico, meu professor”. Meus livros estão numa ordem que só eu sei. Bati o dedo nele e o retirei da prateleira. Ainda não cheira a velho, mas traz o cheiro dos voos imaginários… então peguei dele e pus-me a folheá-lo. É antigo o meu hábito de escrever nos livros, rabiscá-los todo com coisas que acho interessantes, ideias que pululam como insights, fusão de pensamentos, poemas que saltam do nada, tema para uma crônica… só mesmo eu para entender tantos rabiscos.
Saindo um pouco da caixa, foi em Milan Kundera que descobri para que serve aqueles camarotes dependurados nas paredes das igrejas antigas. Curiosamente a de Nossa senhora do Ó tem esse design. Parece engraçado, mas esquadrinhando o livro vi dezenas de anotações e essa era uma delas. Na verdade, Kundera me levou ao pensar e não perdoar certas coisas. Ele mesmo não perdoou muitas coisas coisas. E estava certo. Há coisas que não merecem perdão e não me venham com argumentos poéticos ou religiosos… chega!
Só sei que reli umas três vezes “A insustentável leveza do ser”. Reler é reaprender. Li quase todos os demais livros dele (ensaios, romances e até uma peça de teatro muito curiosa “Jacques e seu mestre, homenagem a Denis Diderot em três atos”. Mas é assim mesmo. A morte vem para nos igualar. Mas algumas pessoas demoram muito para morrer. Milan levará, creio, uns 500 anos para se demorar por aqui… ele, sim, foi a insustentável leveza...
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