Um grupo de amigas - caras amigas - acaba de me fazer um apelo que vá trabalhar ao lado delas em determinada sociedade de mulheres.
Argumentam bonito, explicam que não se trata de feminismo, que nenhuma das consócias tem nada da virago meio masculina celebrizada pela caricatura, que elas não querem entrar em concorrência com os homens, mas mas apenas para lutar pela defesa dos direitos da mulher, ainda hoje espezinhados pela sociedade e pela legislação em vigor.
Ora, minhas flores, mulheres reunidas fazendo discursos, escrevendo manifestos, batalhando pelo progresso do sexo, lutando pelos nossos famosos direitos, que é isso senão feminismo?
Dizem vocês, a certa altura: “Nenhuma de nós gosta do chamado feminismo…” O ponto não é bem esse. O importante, para mim, não é que eu goste ou que não goste; o ponto, comigo, é outro: o importante é que eu não acredito em feminismo. Não creio numa rede de interesses comuns que ligue as mulheres do mundo, separando-as dos homens e dos interesses masculinos. Acho que vai uma distância muito maior entre uma comunista e uma católica, ambas mulheres, do que aquela que separa um homem e uma mulher das mesmas convicções.
Também não acredito na igualdade dos sexos.Afirmar isso, hoje, já é um truísmo. Pois é. E como acontece com quase todos os truísmos, este é também uma verdade. Concordo que a nossa legislação sobre os direitos civis da mulher casada é irritante e injusta, mas soma-se à grand cópia de injustiças que correm mundo sob o nome de leis, e que é mister remediar, não porque sejam especificamente contra as mulheres, mas principalmente porque são injustas.
Continuando a falar com franqueza, chego a confessar que não tenho ideias muito seguras a respeito do papel que a mulher pode e deve desempenhar no mundo moderno. Se, por um lado, somos capazes de aprender muitas das coisas que os homens sabem, e se podemos dar conta da maior parte dos ofícios masculinos (talvez porque a civilização ocidental suavizou de tal modo a tarefa dos homens e a pôs ao alcance das mulheres…), por outro lado a nossa carga - biográfica, digamos - já é de si muito pesada para que procuremos outros encargos além do que a natureza nos reservou.
Nas cartas de vocês há uma que diz uma coisa muito engraçada: “A mulher moderna cansou-se de ser um simples animal reprodutivo”. Infelizmente, meu bem, a natureza não é progressista nem tem ideias modernas; a natureza, com a sua cegueira e a sua característica falta de imaginação, teima em fazer da mulher, moderna ou antiga, um mero animal reprodutor e aleitador. Por mais brilhante, intelectual, artista, ambiciosa que seja a mulher, não deixa por isso de ser - com licença da palavra - a fêmea da espécie, e ter ao seu encargo exclusivo o penoso trabalho de gestação e criação dos filhos. Que os homens, tudo o que eles fazem pela prole é o que se pode chamar de trabalho voluntário e não compulsório, como o nosso…
Nessa teima da natureza nasce o grande conflito da mulher de carreira, da mulher profissional, que pelos seus dotes intelectuais, capacidade de trabalho e agressividade ousa e consegue competir com os homens nos terrenos que até bem pouco eram reserva particular deles. Conflitos com os homens, pode-se dizer que já não existem, que eles já estão vencidos e convencidos.O conflito é com ele própria. A mulher ainda não descobriu uma fórmula que resolva o problema da maternidade quando esta entra em choque com a profissão, o que quase sempre sucede. É sistematicamente obrigada a escolher entre a carreira ou os filhos: ser ou a amazona, ou a mãe de família. Nenhuma das outras soluções experimentadas resolve: porque a melhor delas, que são as “creches”, ou as armas, governantes, etc., não representam uma solução, mas simplesmente uma transferência. Arranja-se uma mãe substituta, mas a necessidade da mãe permanece e tem que ser suprida; e o problema não foi resolvido, foi passado adiante. Há as que tentaram ao mesmo tempo ser uma profissional e dar conta dos filhos: mas isso representa uma sobrecarga pesada demais, acaba sempre resultando no mesmo: o sacrifício de uma das duas tarefas - a família ou a profissão. Com isso quero dizer que os atuais problemas femininos não consistem mais em arrebatarmos dos homens este ou aquele direito - que já o estamos adquirindo sem disputa; os poucos que os coitados ainda retêm são mais simbólicos do que reais e apenas servem para lhes salvar o amor próprio. O nosso conflito básico é com a nossa condição de mulher - e representa em verdade um desses dramas terríveis e insolúveis da natureza humana, como o do amor, por exemplo, e para os quais, aparentemente, não há forma conhecida de solução. O melhor ainda é a gente tentar uma acomodação à inglesa - quero dizer, empregando o velho sistema inglês de compromisso. Se o mundo moderno nos abre maiores horizontes, se nos permite uma porção de profissões, e interesses que nos eram vedados há alguns anos atrás, aproveitemos essas oportunidades nas medidas das nossas possibilidades, mas sem muito arrojo, sem muita soberba. Porque, a menos que reneguemos a nossa própria condição de mulher, faça a gente o que faça, dirija aviões, arengue as massas, dispute na política, ajude a governar o Estado - lá escondida nas nossas entranhas de mulher estará sempre presente a misteriosa máquina, pronta a funcionar sem respeitar cartaz nem coroa, pronta a transformar a valquíria audaciosa que toma o lugar dos homens na simples e eterna mulher que carrega um filho consigo e por isso mesmo se torna fraca e desinteressada do mundo, carecida de proteção e ajuda. Isso, meninas, pode ser uma verdade desagradável, mas é também a verdade nua e crua. E, sendo assim, para que perder tempo com feminismos?
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RACHEL DE QUEIROZ é escritora cearense. Este artigo foi publicado na edição de 26 de julho de 1952 da revista O Cruzeiro. @herdeiros de Rachel de Queiroz
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OBS. Transcrevi este artigo para a minha página por achá-lo um dos mais curiosos de Rachel de Queiroz, na minha opinião. Obviamente que há um contexto o envolvendo, mas preferi não emitir nenhuma opinião sobre o mesmo. Deixei para você que ora lê. O texto fala por si. Raquel era trotskysta, comunista e ateia.
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