LETRA
Havia naquela cidade uma mulher predestinada a usar uma saia por sobre uma calça.
Trajava camisetas em cima de camisas masculinas.
Nunca a vi sem lenço na cabeça.
Lenços estampados de restos de roupas velhas.
Suas calças eram amarradas com embira de bananeira.
Nos pés arrastava velhas Havaianas.
Contava oitenta primaveras de letras, creio.
O cajado lhe dava modos de caminhar.
Tinha alguns filhos.
Sua imagem arrastava uma aura exótica e pitoresca mais percebida por crianças.
Eis que vos apresentei-lhes Letra…
Era chamada assim na cidade inteira.
O apelido nasceu do hábito de pregar a palavra “letra” em suas conversas.
Para tudo era Letra, inclusive para sofrer.
Gastava a vida esmolando letras.
Letra foi um anjo que nasceu grudada no sofrimento.
Era serena, calma e um pouco doce.
Falava baixo, mas com autoridade.
Não pedia como os pedintes comuns,
Tinha as pessoas e os lugares certos de pedir.
Se outra vida existiu em Letra, pertenceu à realeza.
Havia algo de lorde em seus modos.
Era polida, serena e olhava com a alma.
Os olhos contavam mensagens misteriosas e indecifráveis.
Trazia a face carregada de estradas, veredas, trilhas, caminhos…
Lembrava um ‘Passifloraceae’.
As marcas eram tão profundas que lhe abortou a expressão de alegria.
Era um rosto padecido a sofrer.
Legado de desprezo e penúria.
Poucos enxergavam Letra.
Uma vez ela chegou ao local do meu labor.
Letra tinha livre trânsito onde fosse.
Os lugares se abriam à sua chegada.
“Eu vim aqui pra que o sr. me desse uma letra de café, uma letra de arroz e uma letra de feijão”.
Atendi-a como atendesse a minha mãe.
Tenho nos meus dedentros que as pessoas muito pobres estão vestidas de Deus.
Era engraçado o seu modo de pedir.
Ainda não tinha ouvido de perto.
Conhecia de fama.
Ri guardado.
A palavra “letra” funcionava como palavra-ônibus na boca dela.
Quando entreguei os produtos, ela determinou docemente:
“Agora eu quero uma letra de 1 real”.
Em 1997, o valor equivalia aos nossos 10 reais de hoje.
Entreguei o dinheiro e ela se despediu lordemente.
Uma funcionária havia assistido a conferência e proferiu um alerta:
“Só não dê dinheiro a Letra, ela gasta no Jogo do Bicho”.
Algum tempo depois, Letra retornou:
“Quero que o sr. me dê uma letra de 1 real”
Respondi:
“Letra, eu soube que você joga no Bicho; não é melhor comprar comida?”
Antes trancado a boca tivesse.
Com modos de realeza, ela se aproximou, demorou aqueles olhos de mistério e despejou-me a sentença:
“O sr. não deu o dinheiro? Não tá dado? Se deu é meu e eu faço o que eu tiver vontade, não é verdade!”
Engoli a gargalhada junto com a lição.
Como me ofender com Letra?
Nas idas e vindas reivindicando letras disso e daquilo, Letra deu-me aulas que não estavam nos livros.
O fato se deu numa cidade vizinha a Natal, onde morei um período.
Hoje, Letra descansa em alguma letra no cemitério.
Não sei em que letra ela morreu.
Não sei quantas letra ela tinha quando partiu.
Dia desses uma amiga me lembrou algumas letras engraçadas saltadas dela.
Sua vida foi uma via dolorosa
Cheia de estações de pedir.
Creio que Jesus se disfarçasse talvez de Letra...
Se existe inferno, Letra o experimentou aqui na Terra.
Só não sei se ela percebia.
Uma vida feita de mil letras de sofrimento.
Quantas letras iguais a ela existem nesse mundo?
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