Imagem: Flick |
Nesse tempo, a Igreja Matriz de Sant'Ana e São Joaquim era administrada por um padre muito idoso: "Deus no Céu e ele na
Terra". Amado e idolatrado, salve, salve. Dessas pessoas amorosas, serenas,
caridosas... raras como um rio limpo. Já com o título de Monsenhor, Antonio era
o seu nome de batismo, mas o povo – pecador que sempre é – pecava no uso do
pronome de tratamento e até mesmo no nome de pia. Era padi Ótõe pra lá,
padi Ótõe pra cá. Ele nunca se importou. Seu apego era com o
evangelho bem ao modo do Vieira.
Monsenhor Antonio, talqualmente as metáforas de Vieira, não era padre de paços, mas de passos. E desse modo, seus passos em terras mipibuenses começaram em 1896, onde vivia emoldurado de pobres e miseráveis, portanto a virada do milênio se deu sob os seus belos e profundos sermões. Seus modos meio santificados, somados à aparência anciã, despertavam no povo uma reverência incomum. Monsenhor Antonio estava sempre cercado de figuras pitorescas, pois para ele não diferiam muito das figuras notáveis.
Vejam que padre-diamante!
Toda cidade interiorana tem as suas figuras pitorescas. Sem elas os lugares são imperfeitos, afeitos ao marasmo. Nesse tempo São José de Mipibu
tinha dentre os seus moradores, o famoso “Inácio Priquitinho”. Ninguém sabe informar em que
pia de praça ele recebeu tal batismo – nem mesmo Gilberto Barbalho. Mas assim
era chamado, sem reservas. Imagine uma figura de sua cidade que todos
conhecem por alguma razão pitoresca. Gente de presepadas. Assim o era “Inácio
Priquitinho”. Como ele não tinha o pertence ao qual é apelidado, seria por
razão de ter possuído tal pássaro ou ter adquirido a alcunha numa de suas falas
esdrúxulas? Ninguém sabe.
Pois bem, os mipibuenses estavam diante
da amedrontadora porta do novo século. 1900 estava prestes a se abrir
para as incertezas. “Inácio Priquitinho” se comportava naquele tempo como um profeta,
rasgando discursos que profetizavam o fim do mundo. Alertava que exatamente à
meia noite do dia 31 de dezembro de 1899, quando a porta de 1900 se abrisse, soariam três badaladas do campanário da igreja de Sant'Ana e São Joaquim, e o mundo se acabaria. Sua profecia salivava
a cidade inteira. Onde ele estivesse, bafejava o aruspício. Dizia com convicção, arrastando públicos, prendendo a atenção dos transeuntes.
Mas... não atalhando a conversa, é bom explicar logo de preâmbulo que “Inácio Priquitinho”
morava numa casinhola atrás da igreja. Desse modo, vê-lo dentro ou fora do
templo não causava estranheza a ninguém, de maneira que ele passava invisível a todos, de tão comum que era, como pedaço de paisagem. Essa “invisibilidade” permitiu-lhe – engenhosamente – subir até a torre da matriz de Santa Ana e São Joaquim
e amarrar uma cordinha no badalo do sino, de modo que a ponta da cordinha ficasse no quintal de sua casa. A astúcia deu-se quando as coisas
estavam mais aquietadas, beneficiadas pelo ocaso, cujo astro sol se dissipava lá
nos longes dos engenhos e canaviais.
Como é de se imaginar, exatamente a meia noite do 31 de dezembro de 1899 o sino da igreja badalou três vezes.
Horror geral!
Foi igual a três marretadas no coração. Num tempo em que a torre
ainda não possuía o relógio, estava claro que o sino dobrou por uma razão
divina. Deus estava irado com a humanidade pecadora, desvirtuada, má, invertida,
e iniciaria a partir daquele instante a destruição da Terra. O mundo arderia em
fogo a partir daquele instante! E tudo começaria por São José de Mipibu! –
diga-se de passagem.
Eis que o soar do sino promoveu
uma loucura desabalada na cidade. As pessoas ficaram enlouquecidas... choravam,
gritavam, corriam, ajoelhavam, pediam perdão, clamavam por piedade, se
esbarravam umas nas outras, procuravam os seus entes queridos, abraçavam os
inimigos atrás de perdão, crianças agarravam os seus pais, corriam para a
igreja para pelo menos morrer na casa de Deus, enfim houve uma cena dantesca,
assistida de camarote pelo deus daquele momento... E deus era “Inácio
Priquitinho”, que ria como se assistisse ao filme “Tempos Modernos”, com Charlies Chaplin... ria e gargalhava circencemente...
E como mentira tem perna
curta, as horas se passaram e nada de fogo, nada de meteorito despencando sobre as
casas, nada de explosões, nada de vulcões explodindo no centro da cidade, nada
de línguas de fogo lambendo as pessoas... Nadica de nada. E como sempre tem aquelas pessoas que ficam assuntando de longe... Nesse interim fé deram de que havia uma corda pendurada no badalo do sino.
"Taí o fim do mundo!"
Foi a deixa para que tudo
voltasse ao normal. Os inimigos voltaram a ser inimigos, os fofoqueiros
voltaram a fofocar, os ladrões de galinha retomaram a profissão, os jogadores
de jogos de azar correram jogar, mulheres e homens que se chifravam, voltaram a
chifrar, enfim, tudo voltou a ser como dantes no quartel de Mipibu.
Presepadas à parte, Inácio Priquitinho – espertíssimo – mistura de Camonge e Pedro Malasarte - providenciara que a cordinha ficasse longe de sua casa logo após ter acionado o sino. Assim se livrou da crucificação que viria na certa, acaso não tivesse pensado no detalhe.
Mas como foi descoberto, então?
Somente alguns anos depois ele revelou a traquinagem, para crédito ou descrédito de alguns. E o padre Ótõe? Com certeza foi o único que não deu confiança para aquela galhofa. Deve ter ficado na casa paroquial comendo talvez bolo preto, frango assado ou talvez beijus de mandioca mole, assistido pelo periquito de estimação que cochilava no poleiro. Era a virada do milênio, afinal.
Essa história foi mastigada
durante muitos anos nas praças, bodegas, armazéns, engenhos e casas em São
José de Mipibu, simbolizando um dos fatos mais pitorescos que ali ocorreu. 12.12.1996. (Imagem: Flick)
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