ACTA NOTURNA - 12.7.2016 - ORIGEM DA PALAVRA CANINGADO - 12.7.2016
“Caningado” é um comportamento incômodo,
chato, sufocante; gente caningada é gente irritante, mesmo que não tenha a
intenção; gente sem que fica na cola, cobrando algo, ‘pigorando’, pedindo,
vencendo pela insistência, gente sem “desconfiômetro”. A expressão integra o
regionalismo vocabular no Rio Grande do Norte, com destaque para a região que
moramos, equivocadamente chamada de “agreste”, mas que se trata da microrregião
de Macaíba, na Mesorregião do Leste Potiguar e no Polo Costa das Dunas (mas
isso é outra história).
A palavra “caningado” não é comum em
todos em todo o estado. Constatei que em diversas municípios a palavra é
desconhecida, como em Japi e Lagoa Nova, por exemplo. Obervei isso em
decorrência de um estudo sobre a linguagem norte-rio-grandense, iniciado em
1992, em Nísia Floresta e estendido em algumas cidades. Mas não é apenas essa
palavra que está embrulhada num enigma, trago algumas cuja acepção e origem
ainda me inquietam. São vocábulos usados com frequência em nossa região,
permeados por suposições pitorescas. Outra delas é a palavra “forró”.
A Base Aérea de Parnamirim é famosa
como suposto berço de algumas palavras como “caningado” e “forró”. No caso do “forró”,
dizem que veio de “for all”. Muitos juram que a palavra foi forjada na Base
Aérea de Natal, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Os militares faziam
grandes bailes no cassino local e colocavam uma plaquinha com a expressão em
inglês “for all” (a pronúncia é ‘fór ól’), que significa ‘para todos’, mas os
potiguares entendiam como “forró”, até porque a pronúncia é parecida. Esse
assunto tem sido muito discutido e há muitas suposições. Há outras expressões,
mas, com relação à palavra “caningado”, muitos juram que surgiu na década de
1942, no auge da presença dos militares norte-americanos por essas plagas.
Contam que havia um oficial muito
exigente e perfeccionista, por nome Cunninghan (se pronuncia câningam). Ele
tinha a função de delegar tarefas às centenas de forasteiros oriundos das mais
diversas cidades potiguares, que vinham tentar a vida na “Canaã de Parnamirim”.
Tais figuras, nascidas e criadas em ambiente rural, tosco e descansado, viam-se,
de repente, num ambiente onde tudo era novidade. Os americanos chegaram aqui com
uma caixa cheia de coisas inéditas. Era outra tecnologia. No aspecto
profissional, exigia-se muita agilidade e contínuo cumprimento de metas.
Difícil para quem não era habituado a qualquer tipo de exigência. Dramático
para quem não abria mão da sesta depois do almoço. Terrível para quem até então
só manejava a enxada e outros serviços pesados.
Os equipamentos trazidos pelos yankees
soavam totalmente estranhos para os norte-rio-grandenses. Havia muita
dificuldade para lidar com as ferramentas que eles viam pela primeira vez; a
palavra de ordem era atenção. Não bastasse, o português macarrônico dos
americanos exigia-se atenção dobrada. Logo o oficial Cunninghan estava sempre
irritado, corrigindo os mínimos deslizes dos potiguares. E sua irritação
irritava os trabalhadores que precisavam engolir uma enxada diariamente para
suportar Cunninghan.
Não demorou muito a peonada adquiriu
uma antipatia terrível contra Cunninghan,
associando o seu nome a tudo o que incomodava. “Lá vem caningui”, “lá vem
caningo”, ‘lá vem caningan” e, devagarinho o nome se marchetou “lá vem aquele
“caningado!” e por caningado ficou. Quando estavam apenas entre eles, diziam:
“deixe de ser caningado”, como se dissessem deixe de agir como o Canninghan.
Logo o tal militar tornou-se intragável. Só de vê-lo os nativos contavam até
mil.
Já ouvi palestrante jurar de pés juntos
que a palavra foi parida em Parnamirim, na dita Base Aérea. Muitos justificam
essa gênese com foros de verdade inquestionável. Em 2013, conversando com o músico parnamirinense
Ismael Dumangue, ele disse que sua avó usava tal expressão com frequência, por
sua vez, herdada da sua bisavó. Só nesse testemunho se constata uma trajetória
de mais de quase cem anos de existência da dita palavra. A informação, por si,
derruba a tese da Base Aérea, aparecida na década de 1942, mas, hoje, dei o
cheque-mate no enigma. Será?
Eu me encontrava no Instituto
Ludovicus, quando Daliana Cascudo me presenteou com a Revista da Academia
Norte-Rio-Grandense de Letras nº 45. Lendo-a, deparei-me com um texto do
escritor Marcel Lúcio, professor do IFRN – Cidade Alta, intitulado “Percurso na
poesia de Mário de Andrade”.
Ele comenta sobre algumas obras do
célebre autor de Macunaíma, dentre elas “Clã do Jabuti”, publicado em 1927. A
referida obra traz um poema de 10 estrofes, denominado: “Coco do major”. É nele
que encontramos a explicação para o enigma do caningado. Logo na primeira
estrofe está escrito:
O major Venâncio da Silva
Guarda as filhas com olho e ferrolho,
Que vidinha mais caningada
- seu mano –
Elas levam no engenho do velho.
Observe que o sentido da palavra “caningado”
é o mesmo que tratamos no primeiro parágrafo. A vidinha das filhas, trazidas
presas pelo pai conservador é chata, incômoda, sufocante, enfim, tudo o que o
oficial Cunninghan foi, e com um seguinte divisor de águas: Mário de Andrade
colheu-a em 1927, ou seja, quase vinte anos antes de Cunninghan pisar com suas
botas em Parnamirim. Vale ressaltar que 1927 foi o ano do registro. O poema é
superiormente muito mais antigo.
Trabalhar com História Oral, como nos
orienta os célebres Jacques Le Goff e Ecléa Bosi, prediz pesquisa redobrada e
muito mais cuidado. Digo isso porque, a julgar pelo material informado por
Ismael Dumangue, muitos poderiam contestá-lo, desacreditá-lo, afinal ele contou
uma memória da mãe e da avó. Se não tivesse aparecido um documento concreto
para comprovar que “caningado” não tem nada a ver com o intragável Cunninghan,
alguns iriam dizer que Ismael criou a informação. Diriam que é causo, é
estória, não é História. Vejam que injustiça! Muitos não valorizam a História
Oral por isso. Pela dúvida. Mas veja como Ismael Dumangue estava correto.
Estaria explicado o enigma?
Há outros enigmas de outras regiões do
Nordeste, como “oxente”, que dizem vir também dos americanos que exclamavam “oh
shit!” e os brasileiros entendiam “oxente!”. Tem também a história de um
inglês, engenheiro agrimensor, homossexual, contratado para trabalhar nos trópicos.
Contam que ele pedia constantemente aos peões a bitola (instrumento de uso
contínuo nessa profissão). Mas dizia “batola” com um i meio escondido depois do
A. O sotaque macarrônico, a troca o “i” pelo “a”, a maneira delicada e melosa
como ele pedia o objeto – somada ao espírito satírico do nordestino – fê-los
interpretar a palavra como “baitola”. Logo a coisa foi se espalhando e passaram
a usar a expressão para se referir aos gays. Assim contam!
Os dicionários desconheciam a palavra
“caningado”. Somente em 2004, com a edição do rico Dicionário Houaiss, contemplaram
esse verbete, embora com sutis diferenças. Vejamos:
CANINGA: s.f.1 má sorte; azar,
caiporismo. 2 p. ext. Sentimento de desgosto, aborrecimento * Etim prov. Do quicg.
Kininga: nome de uma inquice que faz emagrecer (pág. 600).
Só para esclarecer: na religião do
Candomblé de ritos Angola e Congo, inquice é uma das divindades equivalentes
aos orixás dos nagôs. Em alguns terreiros é alma de morto, espírito mau (egun),
segundo o Houaiss. Com relação à palavra “caningado”, diferente da maioria
listada com o provável século do seu surgimento, não informam tal dado. Mas
tendo se originado na África, deve ter séculos.
Tenho um palpite que a palavra
“caningado” tem algo com o “cão” (o diabo). É como se quisesse dizer que a
pessoa é “endiabrada” (“Cãoningada”. Seria? Se todos esses partos de palavras
ditas surgidas no Nordeste, e agora até na África são reais ou coincidências,
não sei, até porque as palavras voam, caem, renascem, desaparecem, retornam.
Palavras caningam e às vezes são caningadas também. Vivo pelejando com
elas. Mas que a palavra “caningado” não tem nada a ver com o oficial
americano “Cunninghan”, isso sim, é fato. Para mim o assunto está resolvido.
Não vou questionar o “Percurso na poesia de Mário de Andrade”, tampouco o
Houaiss. Mas tenho uma certeza: não quero perto de mim gente caningada nem para
fazer remédio.
Estaria esclarecido ?
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