ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Professora Cida Basílio, uma pioneira


 Professora Cida Basílio, uma pioneira

Podemos encontrar uma explicação bem fácil para entendermos a história da professora Aparecida Sales servindo-nos da Santa Bíblia Sagrada, quando ela traz as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando Ele diz  “Vinde a mim as criancinhas!”.
Essa comparação se justifica no fato de a referida professora ter vivido a maior parte da sua vida cercada de crianças, na condição de professora do ensino infantil.
Essa história começou no ano de 1982, quando sua amiga de infância, Soledade Araújo, conhecida como “Suli”, reconhecendo o seu potencial, apresentou-a à professora Terezinha Leite, a qual era secretária do ex-prefeito Almir da Silva Leite, ambos falecidos.
Nessa época existia um programa do Governo Federal denominado MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização, que era voltado para a alfabetização de adolescentes e adultos, numa política educacional exatamente igual ao EJA que conhecemos atualmente.
Esse programa, criado em 1967, ocorria por meio de convênios com entidades públicas ou privadas. Foi extinto em 1985, e substituído pela Fundação Educar, desativada no Governo Collor de Melo, em 1990.
O MOBRAL existiu sob forte influência da Ditadura Militar, cuja professora Aparecida vivenciou seu auge no governo do Presidente João Figueiredo, que era Major do Exército Brasileiro.
A Prefeitura Municipal de Nísia Floresta, na pessoa do prefeito Almir da Silva Leite, estabeleceu esse convênio, conseguindo que ele também fosse destinado às crianças de Nísia Floresta, numa atitude inédita
A professora Terezinha, encantada com o dinamismo da professora Aparecida, encaminhou-a à Secretaria Estadual de Educação, submetendo a professora Aparecida a um treinamento de 15 dias, cuja professora realizou com sucesso.
Em seguida ela retornou para o município já para começar a trabalhar como professora de uma turma de crianças com idades entre 4 a 5 anos, cujos pais estavam ansiosos para ver funcionar, pois se tratava de um momento histórico, afinal era a primeira vez que a pré-escola funcionaria em Nísia Floresta.
Naquela ocasião a senhora Lurdinha Guerra, coordenadora do Mobral, enviou um documento ao prefeito Almir Leite, o qual dizia: “Comunico que o trabalho do MOBRAL do RN foi contemplado com um prêmio internacional da UNESCO, e agradeço pelo apoio recebido do município de Nísia Floresta, o qual contribuiu para essa grandiosa vitória”,
Naquela época não existiam tantos programas educacionais como hoje. Os recursos eram escassos e tudo acontecia com grandes dificuldades.
E foi assim que ela começou, pois o prédio destinado às aulas – o Centro Pastoral Isabel Gondim – não tinha a mínima infra-estrutura. Não havia água encanada, nem móveis. Mas Aparecida não fez disso um problema. Reuniu todos os pais, expôs os problemas e recebeu apoio de todos.
A partir daí passaram a ocorrer várias reuniões. Todas muito proveitosas e com resultados surpreendentes.
Naquela época as pessoas demonstravam um maior grau de voluntariado, pois, sem nenhuma reclamação, todos abraçaram a causa com muito amor.
Cada pai trouxe o que podia: filtro para água, um fogão de lata movido a carvão, bacias, vassouras etc. Resolveram o problema da água, conseguindo improvisar uma mangueira que vinha da CAERN.
Houve o acordo para cada criança trazer um prato, um copo, uma colher e o seu lanche.
Como a turma era grande foi decidido que cada dia uma mãe daria expediente como auxiliar, numa espécie de estagiária. Posteriormente os próprios pais decidiram que uma das mães, a senhora Adélia (hoje falecida) ficaria de forma fixa, e seria remunerada pelos demais pais, os quais fariam uma cota mensal. Infelizmente, devido às condições financeiras dos pais, eles findavam não conseguindo pagá-la todos os meses.
Interessante era que a senhora Adélia, mãe da aluna Janiere, jamais fez qualquer juízo de valor dessa situação, pois nunca faltava e trabalhava com grande dedicação, sempre alegre, extrovertida e atenciosa com as crianças.
         Ao contrário do Regime Militar que vigorava na época, a professora Aparecida, de forma bastante democrática, pediu que os pais sugerissem nomes para a escola, a qual foi denominada “Chapeuzinho Vermelho”.
         Para obter melhores resultados a professora Aparecida serviu-se de uma criatividade fora do comum, mas, sem quere, acabou se tornando uma espécie de precursora no uso de materiais reaproveitáveis – tão na moda atualmente -  pois, de forma lúdica, servia-se de tudo o que poderia ser jogado no lixo: caixas de ovos, latas de conservas, vasilhames de margarina, palitos de fósforos, caixas de papelão, tampinhas de garrafa, sementes, macarrão, cola de goma e outros materiais.
         A Praça Coronel José de Araújo, que na época não tinha o modelo atual, passou a ser praticamente uma extensão do Centro Pastoral Isabel Gondim, pois ali as crianças passavam horas a fio, cantando músicas educativas, canções tradicionais do folclore brasileiro, e várias músicas inventadas pela própria professora. Uma das atividades que as crianças adoravam era desenhar na areia com pequenos gravetos.
         Com o passar do tempo os pais perceberam os avanços no aprendizado dos alunos e resolveram investir mais. Desse modo conseguiram mesinhas e bancos para as crianças e para a professora, baldes e panelas grandes, um armário e um fogão à gás.
         Os pais eram muito dedicados e participativos. Não mediam esforços para fazer festas com direito a escolha do rei e da rainha, com venda de votos e comes-e-bebes. Toda a arrecadação das festinhas eram revertidas em prol do patrimônio da escolinha.
         Um dos reis dessas festinhas foi José Roberto, e uma das rainhas foi Clézia de Araújo, a Nildinha, que reside atualmente em São Paulo.
         A escolinha “Chapeuzinho Vermelho” era uma escola feliz, amada e respeitada por todos.
         Certo dia uma encomenda dos Correios mudou a história dessa escola. Várias caixas chegaram, destinadas pelo Ministério da Educação.
         Ao serem abertas a professora Aparecida foi às lágrimas. Eram materiais didáticos e pedagógicos: cola, papel ofício, lápis de cor, giz de cera, lápis grafite, régua, borracha, tinta guache, massa de modelar, pincéis, papel crepom, tesoura, barbante, pegador, livrinhos de historinhas e diversos jogos educativos.
Foi um presente que emocionou a todos e foi notícia na cidade inteira. A alegria das crianças não tinha fim. Era vista no brilho dos olhos de cada um, os quais recebiam o material como se fosse algo do outro mundo, com um valor inestimável. Havia um zelo especial por parte da escola, dos alunos e dos pais.
No decorrer da existência dessa escolinha tão feliz o seu funcionamento deu-se em outros prédios, como a casa de força, na rua da Bica, a qual abrigava o velho motor desativado, que por muitos anos abasteceu de energia elétrica todo o município.
Depois foi para o prédio onde atualmente funciona a Secretaria Municipal de Ação Social. Posteriormente funcionou numa sala cedida pela Escola Municipal Yayá Paiva.
Durante toda a trajetória educacional da professora Aparecida ela teve o senhor Almir da Silva Leite como seu grande incentivador e apoiador. O ex-prefeito sempre visitava a escola para saber se tudo caminhava bem, pois tinha uma atenção especial às crianças.
Muitas vezes tirava dinheiro do seu próprio bolso para arcar com despesas da instituição e sempre apoiou todos os eventos dessa escola.
Um dia, tocado pelas constantes improvisações e mudanças de prédio, resolveu empreender todos os esforços possíveis para reverter esse quadro. Foi ao Governo do estado. Viajou a Brasília e conseguiu um grande presente cujos pais não acreditavam: a escola teria prédio próprio.
E foi assim que, onde atualmente se encontra o prédio da Escola Municipal Maria Dolores Regina de Macedo Leite, foi erguido um prédio que recebeu o nome Escola “Chapeuzinho Vermelho”.
A alegria se redobrou durante muito tempo nessa instituição. E nessa escola, juntamente com as crianças que Deus lhe enviou, ela encerrou suas atividades, sendo aposentada  no ano de ...............
Desde muito tempo a professora Aparecida sonhou reunir seus alunos para esse que é um dos mais importantes da sua vida, pois ela não viu outro lugar mais especial para agradecer a Deus e a Virgem Maria como a casa de Deus. A casa de Nossa Senhora do Ó. Ela agradece a essas divindades por ter coroado de êxito a sua missão de educadora. Num tempo que as coisas não eram tão abundantes como hoje, mas que o amor das famílias e as bênçãos do Céu sempre estiveram, ao seu favor, fazendo com que tudo desse certo.
Aparecida Basílio, essa nisiaflorestense abnegada, foi a primeira professora do ensino infantil de Nísia Floresta e será sempre lembrada por sua trajetória de amor à educação.
Que Deus possa abençoá-la juntamente com todos os seus ex-alunos e com os pais dos mesmos, pois foram peças importantíssimas para o sucesso da sua trajetória.
Quando Jesus disse “Vinde a mim as criancinhas”, à luz da exegese bíblica, ele quis dizer: “que todos os adultos amparem as crianças e as ensinem o caminho do cristianismo, que é o caminho do amor. Protejam as crianças e eduque-as para que o mundo seja cada vez melhor. Nunca deixem uma criança desamparada”.
Foi com esse entendimento que a professora Aparecida Basílio trabalho a vida inteira.
É por isso que Nísia Floresta deve a essa professora o seu respeito e a sua gratidão, pois a missão de educadora é uma das mais lindas, mas não deixa de ser uma das mais árduas. E não existe profissional que não tenha passado pelas mãos de um professor.


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

O bredo em Papari: no passado, a fartura; no presente, a indiferença.


 O bredo em Papari: no passado, a fartura; no presente, a indiferença.
 Quando cheguei a Papari pela primeira vez chamou a minha atenção um mato vistoso espraiado atrás da Bica, onde proliferava. Percebi claramente se tratar de um angiosperma, o qual normalmente é comestível. Mordi a folha e constatei que era uma hortaliça.


A professora que me acompanhava disse que o nome era “Bredo”. Explicou que toda a cidade consumia o vegetal com abundância durante a Semana Santa. Faziam no leite de coco e, segundo ela, era delicioso. Mas ressaltou que a tradição desapareceu completamente. Segundo ela ninguém mais preparava “bredo” em Papari. "Se alguém disser isso aos mais novos, dirão que é mentira", reforçou.

Assim como no passado muitas hortaliças que consumimos hoje com naturalidade eram nativas das florestas, o bredo com certeza integra esse rol. Mas curiosamente perdeu a glória dos velhos tempos, diferente de outras hortaliças como couve, cebolinha, coentro e outros, cujas donas de casa jamais os dispensam.

Falar de “bredo”, hoje, assusta.
Percebi que o “bredo” nasce de forma espontânea, cujas sementes certamente são levadas pelas aves.
Algum tempo depois despertou-me a curiosidade de pesquisar sobre o “bredo” e descobri que originou-se na América e foi trazido pelos escravos africanos, os quais o consumiam abundantemente, através de variados pratos. Na Bahia é alimento sagrado.
Não falta em nenhuma casa, principalmente durante a Quaresma, inclusive nessa época ele é encontrado em todos os lugares, assim como a “xanana”, embora essa não seja comestível. Mas o "bredo" nasce sem que seja plantado intencionalmente, nos cantos de muro, nos quintais, no mato e até mesmo nas calçadas. E isso não é exclusividade do Nordeste. Nasce em quase todo o Brasil e em muitos países. Na “Sexta-Feira da Paixão” se torna o único prato do almoço em muitos estados do Nordeste, pois é comum em todo o Brasil.


Explicou-me a avó da professora que o “bredo” era tão gostoso que os próprios ricos de Papari o consumiam no bacalhau. “Não é porque era coisa de pobre que era ruim”, explicou-me a velha senhora. Vejam como se trata de um alimento curioso.
Creio que o uso do “bredo” não ocorra simplesmente porque é hortaliça, mas que os antigos o adotaram também por seu valor nutritivo. Pesquisando, descobri que o “bredo” é rico em cálcio, potássio, ferro, e contém vitaminas A, B1 e B2. Se a pessoa estiver com a vista fraca deve consumir boldo e sentirá grande diferença.


Estudiosos afirmam que o seu consumo manda embora a anemia, fortalece a imunidade do corpo e abranda os terríveis sintomas da osteoporose, da anemia. Faz bem até mesmo para inflamações da bexiga, as doenças do estômago e a prisão do ventre.
Lendo sobre o assunto observei que assim como resgatamos várias coisas do passado, como histórias, danças antigas etc, deveríamos resgatar o consumo desse importante alimento, e não apenas durante a quaresma, mas sempre.
Segundo a professora que me apresentou o “bredo”, o prato normalmente é feito no leite de coco ou até mesmo o óleo do coco. É preparado com peixe ou com camarão. Ela explicou-me que as famílias ricas compravam o bacalhau para preparar durante a Semana Santa. Os pobres, como não tinham recursos, colhiam o “bredo” que se espraiava abundantemente por toda a cidade e o preparavam com peixe, o qual era farto nas lagoas locais. Ela até brincou, dizendo “ser o bacalhau dos pobres”.
   

É importante reconhecermos que o camarão era tão abundante na velha Papari, inclusive o “pitu” (um tipo de camarão enorme), atualmente extinto, e o camarão verdadeiro, que podemos atribuir a ele a máxima “santo de casa não faz milagre”. As pessoas eram tão familiarizadas com o crustáceo que o bom mesmo era o bacalhau. Mas como era caro, o jeito era “camarão no bredo”. Ou “peixe no bredo”.
Analisando essa tradição, chamou a minha atenção o seu desaparecimento, o qual não deixa de ser algo curioso. Por que desaparecer um prato popular que atravessou séculos? Por que deixar de comer um alimento tão saudável?

Não sei se em Papari ainda afloram os ervais de "bredos", mas em casa adotei o hábito de tê-los como ornamento. Suas flores são verdadeiros poemas...

Tenho impressão que tudo isso revela um comportamento cultural. Talvez o “bredo” seja associado à pobreza. Quem sabe entenderam que comer “bredo” fosse “coisa de pobre”. O “bredo” era consumido num tempo em que as diferenças entre pobres e ricos eram mais nítidas. Aos ricos, bacalhau. Aos pobres, “bredo” e peixes e camarão de lagoa.
Comer “bredo”, hoje, seria uma desonra? Falar que os antepassados comiam “bredo” revela pobreza?
Etimologicamente, o "bredo" é originário do termo grego blíton por via da expressão latina blitu. Estudiosos afirmam que a planta harmonizou as culinárias do Daomé nagô, da Nigéria ioruba e da Bahia.
Com certeza o “bredo” chegou a Papari pelas mãos dos negros que aqui fabricaram muita rapadura, cachaça e mel de engenho, sob o chicote dos senhores de engenho. Certamente o “bredo”, por ter um pé na Àfrica, tornou-se desinteressante, assim como muitos o fazem até hoje.
Deixar de comer “bredo” seria uma forma de preconceito?

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Trajano Leocádio de Medeiros Murta, o "Velho Trajano de Engenho Pavilhão"

Engenho Pavilhão atualmente - fotografia datada de 2003. Nada lembra o casarão, o qual foi quase todo demolido, dando origem a essa  casa atual.

Trajano Leocádio de Medeiros Murta, o "Velho Trajano do Engenho Pavilhão" (1993-1999)

“Engenho Pavilhão”, 17 de maio de 1862. O homem mais rico de Papari, conhecido como o “velho Trajano do Pavilhão” amanheceu desolado. Luís, único filho homem, morreu repentinamente aos três anos de idade. A fazenda parou. Os empregados se deslocaram até o alpendre do casarão – o mais luxuoso e esplêndido da localidade. Ali se abancaram para aguardar ordens que decorreriam daquele episódio triste. Os chapéus amassados sob os braços denotavam a tristeza que tomara conta de todos.
As serviçais corriam pela casa, cobrindo os espelhos e fotografias com tecidos escuros, conforme rezava a tradição. Precisavam se desdobrar para amenizar a situação dos patrões, os quais perderam as forças. Não tinham raciocínio pelo menos naquelas primeiras horas. Não se ouviam outro som na casa-grande, exceto o choro incontido da família. A vila parou com a notícia. O velho Trajano era querido e respeitado por todos.
O pequeno Luís Leocádio de Medeiros Murta era filho único, dentre seis filhas. Uma, do primeiro casamento, Maria Emiliana de Medeiros e, tendo enviuvado o velho Trajano, casou-se com Francisca Xavier arrumando mais quatro filhas, Emília Maria, Maria Emília, Maria Madalena e Joana Maria. Luiz se destacava, talvez, por ser “o homem da casa”, como diziam e dizem até hoje em caso semelhante. O velho Trajano trazia o sofrimento ainda recente pela morte da primeira esposa, e de repente a cena se repetia com o seu primogênito.
Em pouco tempo a casa-grande encheu-se de amigos e conhecidos. Todos queriam ver o defunto e cumprimentar os familiares. Naquele tempo a morte era um acontecimento na velha Vila Imperial de Papari sem atrativos, exceto vaquejadas, eventos eclesiásticos e raros bailes de engenho. Mortes quebravam rotinas e tinham um quê de “evento”. Todos faziam questão de se solidarizar, ou prestigiar. Principalmente se ela visitasse gente muito rica. Era o caso dessa morte!
Contam que até hoje há pessoas atraídas por coisas de morte. Gostam de velórios e exercem uma espécie de jornalismo fúnebre, enfronhando-se em mortes alheias para assistir os mínimos detalhes e depois contar para quem não prestigiou. Imagine naquela época!



Pois bem. O velho Trajano do Pavilhão, ou melhor, Trajano Leocádio de Medeiros Murta mandou vir a melhor costureira de São José de Mipibu, para a qual encomendou uma mortalha igualzinha ao hábito de São Francisco de Assis. Em Papari mandou confeccionar uma imponente charola, cujo carpinteiro dobrou a noite para dar conta dos detalhes. Tudo para que o sepultamento se desse com pompa e destaque. Talvez o velho Trajano fosse desses que não aceitam a morte, e insistem em vivenciar os últimos momentos como se pudesse eternizá-lo. E conseguiu.
Foi o maior e mais luxuoso funeral ocorrido na vila. O defuntinho foi exposto de pé sobre o andor ora carregado por parentes, ora carregado pelo povo. Assim percorreu as ruelas da Vila Imperial de Papari até chegar à Matriz de Nossa Senhora do Ó. O pequeno Luís trazia nas mãos um tercinho de prata. Aos seus pés se distribuíam centenas de flores brancas. 
O povo ficou perplexo com o episódio nunca visto. Carregar um morto em pé durante um enterro era no mínimo esqusito. O velho Trajano permaneceu devastado durante as exéquias. Após o corpo ter sido encomendado, foi depositado numa caixãozinho pintado de branco, e finalmente sepultado no cemitério local. Cândido Freire, famoso cirurgião-barbeiro, cujo seu nome seria dado muitos anos depois ao posto de saúde, prestigiou esse episódio e o contou por muitos anos. Cândido é descendente de Joan Lustaw Navarro (aquela história do Massacre de Tabatinga,  mas é outra história!).
Trajano Leocádio de Medeiros Murta era chefe do Partido Conservador em Papari. Na realidade o Engenho Pavilhão era o “Sítio Capió”. Assim que o adquiriu, mandou erguer o casarão e batizou a propriedade com o nome de “Pavilhão”. Inspirou-se numa tradição medieval, cujos apelidos das pessoas eram dados às suas propriedades. Nesses conformes nasceu o apodo de “velho Trajano do Pavilhão”.
Apesar de muito rico e ser considerado um “senhor de engenho”, sua humildade causava admiração nos paparienses acostumados a tratamentos debaixo dos pés, cujos sobrenomes dos tais senhores precisam ser omitidos para não causar desconforto. Era um homem muito culto. Depois do pai de Nísia Floresta, Dionísio Gonçalves Pinto, nenhuma casa teve mais livros. Sua biblioteca impressionava, e foi escola de muitos cérebros notáveis que alçaram voos para outros rincões do Brasil. Importante lembrar que Trajano Leocádio era paraibano de nascença, e escolheu Papari depois de conhecer bela moça nascida em engenho das bandas do Porto.
Contam que ele ainda se envolveu, embora modestamente, na revolução de 1824. Deu confusão e ele saltou para a nossa irmã Mipibu, onde se escondeu por bom tempo. Também era muito querido na terra do Barão. Trazia a boa política na alma. Contam. Acalmada a turbulência, tornou-se escrivão de notas no período de 1828 a 1830 em São José de Mipibu. Possuia um estilo conciliador. Era muito influente. Sua filha, Maria Emiliana de Medeiros, casou-se com o Dr. Francisco de Souza Ribeiro Dantas, gente antiga de Mipibu, moradores do Engenho Olho d Água.


Marcos Freire e Fídias Freire - Engenho Pavilhão, 2003
Em Papari, o Velho Trajano do Pavilhão presidia o Partido Saquarema. Depois tornou-se Presidente da Câmara Municipal de São José de Mipibu em sete de janeiro de 1845 a sete de janeiro de 1849. Em 1845, quando Mipibu foi elevada à categoria de cidade, ficou responsável pela organização cultural da festa. Era muito amigo do famoso maestro Bettelein, mais conhecido como “Belém”.
Foi Deputado Provincial durante sete gestões, de 1838 a 1851, perfazendo treze anos de atuação. O sucesso na Assembleia Legislativa Provincial levou-o a Vice-Presidência do Rio Grande do Norte em 1863.
Teve parentes famosos. Tarquínio Bráulio de Souza Amaranto (cuja história você encontra nesse mesmo blog), Braz Florentino de Souza e José Soriano de Souza, sobrinhos dele, certamente se tornaram notáveis graças ao espírito bondoso do tio, o qual pagou os estudos de todos até onde eles almejaram. Todos foram professores da Faculdade de Direito de Recife. Naquela época se tornar mestre nessa instituição era um feito notável devido ao nível de excelência dessa que era a segunda melhor universidade de Direito do Brasil. Tarquínio ainda foi duas vezes deputado geral pelo Rio Grande do Norte. Esses sobrinhos visitavam eventualmente o Engenho Pavilhão, pois nutriam verdadeira devoção ao tio.
É válido expor que o Engenho Pavilhão era a melhor e maior casa de Papari, onde se espraiavam as mais belas casas e palacetes feitos com materiais importados, buscados no Porto da Ribeira por via de carros-de-bois. A casa-grande media sessenta palmos de largura, trazia um baldrame alto tal qual o Engenho Descanso. O soalho era todo em madeira de lei. Seis janelas e três portas amplas. Todos os cômodos eram forrados. À ocasião de seu inventário a casa grande do pavilhão foi avaliada em vinte contos, valor extraordinário para a moeda daqueles tempos. Era uma casa incomum a uma localidade permeada por construções toscas de taipa. As paredes eram forradas com retratos de gente antiga, espelhos e algumas obras de arte. Naquela época se valorizavam muito as baixelas, cujo Pavilhão possuía coleções em prata pura.
O velho Trajano do Pavilhão era conhecido por sua animação e modos corteses. Estava sempre pensando na próxima festa. Muitas delas duravam dias, atraindo senhores e senhoras de engenho de Papari e Mipibu. O vale do Capió vivia aceso desses eventos. Os homens desfilavam com as mesmas roupas que vestiam nas famosas festas do palácio do Governo. O fraque ditava o estilo masculino. Eram festas familiares cuja mocidade não faltava.
As senhoras ilustres farfalhavam suas saias de tafetá, rodadas, distribuídas sobre anquinhas, conforme os ditos da moda daqueles tempos áureos do turbulento Vale do Capió. Cada uma que trouxesse pescoço e pulsos cravejados com belas joias para melhor desfilar. Eventos assim serviam para mostrar roupas, ouro e pedras preciosas. Forma de externar poder. Até chapéu. Esses também se viam como se veem nas terras de London. As filhas, finamente educadas, dedilhavam ao piano os clássicos célebres, maravilhando os ouvidos mais exigentes.
A Vila Imperial de Papari, conforme o nome alardeava, trazia muito de imperial nesses tempos. Tanto é que as festas eram regadas às “quadrilhas imperais”, sob a batuta do Mestre Bettelein” regente de orquestra impecável. Assim, as danças obedeciam os traçados aristocráticos, com mesuras e deferências que rememoravam as festas palacianas europeias. Quem dera! O Vale do Capió, hoje permeado de mato e restos de alicerces, totalmente abandonado, era tão imperial quanto os impérios da Europa.
Velhos alfarrábios dão como dono do Engenho Pavilhão, em 1920, o senhor Joaquim Januário de Carvalho. Não posso informar ao leitor desde quando a propriedade veio às mãos deste. Os donos atuais, infelizmente, não sabem nada sobre o engenho.
Mas, conforme vinha dizendo, somos passantes. Estamos por aqui zelando do que pensamos ser nosso, o velho Trajano do Pavilhão teve o seu período de zelador. E passou. E foi esquecido... Faleceu no dia 23 de maio de 1867. Há 151 anos. Foi sepultado no cemitério local, onde jaz o túmulo sem qualquer placa. Nada lembra tanta riqueza e imponência do antigo Engenho Pavilhão. Seu dono foi um Fidalgo. Hospitaleiro como ninguém...

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

A santa que 'apareceu' nas paredes da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó


Terezinha Trindade aos 22 anos   
Terezinha Trindade (tia da escritora Socorro Trindade)

Papari. Julho de 1954. Era mais ou menos oito horas da manhã. Duas moças muito apegadas uma a outra tomaram café e foram passear na Igreja Matriz de Nossa senhora do Ó. Na realidade foram contemplar o vuco-vuco que se inaugurara no templo naqueles dias. Era um bate-bate sem fim. Suficiente para chamar a atenção da cidade pacata e sem atrativo algum, não fossem os acontecimentos eclesiásticos. 

Lenira Trindade aos 19 anos 
 
Os despojos de Nísia Floresta chegariam à cidade nos próximos meses. O sacerdote Rui Miranda, ordenado em 1953, aparentava não apreciar muito a ideia, mas se alegrara com verbas estaduais destinadas à reforma. Admitindo ou não, era a contribuição da filha ilustre daquele rincão. Mortinha, mas rendeu dinheiro para os trabalhos.

Terezinha Trindade (2018) em nova entrevista, contando outros episódios antigos para o autor deste blog.
Estavam os trabalhadores naquele vavavu, como dizia o doutor Antonio de Souza, quando uma grande surpresa se apresentou entre as pedras. Era uma santa. Aliás, a imagem de uma santa. “Ela não quebrou nas marretadas porque estava num vão entre uma pedra e outra”, narrou-me dona Lenira Trindade, que à época tinha 26 anos. A história me foi contada em 1995. “A santinha tinha mais ou menos quarenta centímetros, toda de madeira... dava gosto... muito bonita, não sabe”, reforçou sua irmã Terezinha Trindade na mesma data da entrevista.


Ao se deparar com a bela imagem os pedreiros alardearam o feito, chamando a atenção de quantos passavam por ali. “Num instante juntou gente... um ia dizendo para o outro e foi aquele movimento dentro da igreja”, explicou D. Lenira. Na mesma hora foram chamar o cônego. Este não demonstrou surpresa alguma. Apenas pegou a imagem e brincou, dizendo: “Essa santinha é Lenira. Parece com você! Disse isso apontado para mim. Fiquei toda sem jeito e o jeito foi rir”. E todos caíram na gargalhada. As duas irmãs, que sempre foram muito apegadas, acharam extraordinária aquela descoberta, “mas o padre não deu a mesma importância; só fez guardar a imagem e pronto”, finalizou D. Lenira. 


O povo insistiu em comentar o assunto com foros de coisa de outro mundo, mas o padre colocou rédeas na conversa logo na primeira homilia pós-fato.
Perguntei sobre o paradeiro da imagem, as irmãs disseram que ela ficou exposta como os demais santos que ficavam na sacristia. Com o passar do tempo nunca mais a viram. Isso reacende em nós (e deve servir de exemplo e vigília) o quanto a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, que ainda é tão rica, foi saqueada. Eu, que já entrevistei incontáveis nativos desde 1992, sobre toda sorte de assunto, ouvi histórias semelhantes sobre peças de valor incalculável que ornamentavam a Matriz e a Casa das Freiras, mas que sumiram ao longo de décadas. Obviamente que não se sabe o fim dado à imagem da santa, mas restou a curiosa história e a reflexão que nunca deve se calar.
Outro detalhe curioso: elas não souberam explicar a denominação da santa.


As senhoritas Lenira (in memorian) e Terezinha são filhas de Paulo Bezerra da Trindade (in memorian), funcionário por muitos anos do Cinema Polyteama, em Natal. Este, casou-se com Gulhermina Emília de Carvalho (in memorian), em 1924. Tiveram nove filhos. 
Adicionar Paulo Bezerra da Trindade (in memorian)
Eram católicos. Tanto é que as irmãs Lenira e Terezinha eram freqüentadoras assíduas das celebrações e eventos ocorridos na Matriz. Ambas não se casaram. Uma de suas irmãs, a professora Conceição Bezerra da Trindade, nascida em 1924, é mãe da escritora Socorro Trindade. Um episódio provocou desencanto em D. Terezinha, a qual optou por uma vida mais reclusa, sem a tradicional frequência à matriz.
Gulhermina Emília de Carvalho (in memorian)
Lenira e Terezinha ao lado da mãe Guilhermina

Com relação ao aparecimento da imagem da santa, resta-nos várias indagações inquietantes: quem a colocou ali? Quando? Por quê? Terá sido durante a construção da Matriz ou depois? Qual era a santa? São perguntas que jamais serão respondidas, pois essa história, que praticamente estava sepultada e só agora veio a público, é assunto de conhecimento de meia dúzia de sobreviventes, imagine saber quem e por quê santa foi guardada na parede. Mas restou a história!


O cônego Rui Miranda exerceu suas atividades clericais na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó no período de 1953 a 1956. Nesse tempo ele encampou várias reformas nesse templo. À época o IPHAN era veiculado ao Ministério da Educação e Saúde. Mal completara vinte anos e seus serviços não chegavam aos estados como previa o seu estatuto.  

Imagem do Sagrado Coração de Jesus, a qual pertencia aos pais de Lenira e Terezinha.

Diferente de hoje, as leis pertinentes à preservação do Patrimônio Histórico não eram tão conhecidas em Papari e em outros recônditos, desse modo os prédios públicos eram reformados ao bel prazer de quem o administrava. Assim muito foi destruído e muito foi descaracterizado. Com relação ao referido cônego, infelizmente ele fez algumas mudanças, descaracterizando parte da arquitetura original interna da Matriz do Ó. É possível ver marcas até hoje dessa reforma, olhando atentamente o seu interior (para quem está no soalho de entrada da escadaria de acesso ao sino).

Cônego Rui Miranda, 77 anos (2006), ocasião em que o entrevistei.
Em 2006 eu entrevistei o cônego Rui Miranda. O material está nesse mesmo blog. A maior parte da sua atuação sacerdotal deu-se em Ceará Mirim. Era um padre polêmico e envolveu-se em muita confusão em Ceará - Mirim. Suas peripécias chegaram ao ponto de se transformar em TCC's na UFRN.

O cônego Rui Miranda faleceu em Ceará-Mirim, aos 84 anos, em 2011.

Luís Carlos Freire diante do cônego, entrevistando-o numa manhã de domingo de 2006.

Como era mais ou menos Nísia Floresta em 1954.
Primeira página do registro escrito que fiz à ocasião da entrevista com o a cônego Rui Miranda, em 2006 e Ceará-Mirim/RN. Se o leitor quiser ler todo o registro, clique aqui:


segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Manoel de Barros - Uma lembrança inesquecível

Manoel de Barros - Uma lembrança inesquecível...

Manoel de Barros defronte a sua casa em Campo Grande/MS.

         "Quando eu tinha 17 anos inventei de conhecer Manoel de Barros. Eu não sabia a dimensão do homem que encontraia, tampouco do poeta gigante, aliás, quase o Brasil todo o desconhecia. Falo de 1984. Naquela época eu sabia dele de maneira diluída, assim como muitos potiguares sabem sobre Câmara Cascudo, Nísia Floresta, Antonio de Sousa, Otacílio Alecrim e outros. 
O máximo que eu me distanciava da minha casa era uns trinta quilômetros. E Campo Grande ficava a quase 400 KM. Mas fui. A visita aconteceu porque desde que me dei por gente, sempre fui enfronhado nos livros. Nesses conformes me familiarizei com os Irmãos Grimm, Andersen, Esopo, Pedro Malasartes, dentre tantos clássicos da literatura infantil e juvenisl universal e nacional.
        Essa relação com a literatura sempre me instigou a escrever poemas e histórias, mesmo que não fossem construídos com a perfeição exigida pela Língua Portuguesa. Mas eu sempre fui obedecedor dos sentimentos. Sentia vontade de escrever sobre tudo. Quase doença aquilo.
        Certo dia houve um evento público na cidade e estava presente a Srª Iracema Sampaio, fundadora da famosa revista "Executivo Plus", periódico de cultura largamente circulado em Campo Grande. Décadas antes ela havia sido a primeira professora da cidade em que nasci, e eventualmente visitava o município para rever os seus ex-alunos que então eram avós. 
       Aproveitei sua estadia e mostrei-lhe os meus escritos. Ela disse que eu tinha talento, mas precisava lapidá-lo. Então falou-me sobre o poeta Manoel de Barros, orientando-me a visitá-lo na capital.
     Através da Srª Nelly Barbosa Martins, esposa do governador Wilson Barbosa Martins, consegui o endereço do grande mestre. Eles tinham parentes na minha cidade. Ênio Martins, irmão do governador, casado com Diva Câmara Martins, compadres de meus pais.
         Sempre fui muito curioso sobre lugares desconhecidos. Desse modo empreendia viagens, ora a pé, ora de bicicleta para os lugares onde alguma coisa me chamava a atenção: rios distantes, sítios, fazendas enfim bastava o lugar me despertar curiosidade que eu empreendia viagem para conhecê-lo. Sempre fui fascinado pela natureza.
        Eventualmente minha mãe era pega de surpresa com meus passeios nem sempre avisados. Às vezes ia para alguma cidade próxima, ficava na casa de conhecidos. Naquela época os ônibus não eram tão comuns e isso me pregava algumas peças, pois os veículos quebravam ou nem sempre eram fiéis nos horários. Já cheguei a aparecer em casa de um dia para o outro e ter que me explicar.
       É interessante explicar que a paixão pela numismática e filatelia eram os trampolins que me arremessavam nessas viagens. Desse modo eu saia pedindo, trocando ou comprando selos e moedas antigas por todos os lugares. E consegui exemplares raros com essa peripécia. Se eu tivesse alguma pista de que em tal lugar havia alguma casa antiga, gente idosa que tinha algo antigo, lá estava eu para negociar.
        Foi exatamente esse espírito aventureiro que levou-me à casa de Manoel de Barros. Foram quatro horas de viagem na Empresa "Viação Motta". Cheguei a Campo Grande com o dia amanhecendo. Recordo-me que mais ou menos às nove horas lá estava eu defronte à casa do colecionador de frases. Um rapaz estacionou uma C10 exatamente naquela hora. Ao vê-lo descer e perceber que entraria na casa, perguntei sobre Manoel de Barros. O rapaz disse que era filho dele e estava chegando da fazenda.
        Fiquei muito feliz e perguntei o seu nome. Era João Venceslau, o qual pediu que eu entrasse e já foi chamando pelo pai. Mal pisamos na varanda e lá estava um senhor de cabelos grisalhos e óculos. Trajava uma calça de tergal bege e camisa branca. O filho disse que eu queria falar com ele. No mesmo instante Manoel de Barros perguntou se eu era estudante. Disse que sim e falei que vinha de longe. Ele ficou impressionado quando eu disse de onde vinha.
         Contei-lhe que gostava de escrever, que havia mostrado os meus escritos a Iracema Sampaio e ela recomendara que eu os mostrasse a ele. Enquanto falava, retirei os poemas da pasta e entreguei-lhe. Não sei se ter-lhe abordado à queima roupa foi bom ou ruim, mas percebi que ele me olhava profundamente. Foi todo atenção. Elogiou Iracema, e isso me deixou mais à vontade, pois percebi que a minha indicadora era gente que ele gostava.
       Seu filho transitou várias vezes, retirando algumas coisas da carroceria e ele pediu que eu me sentasse numa mesa na sala. Dona Estela, sua esposa, apareceu e ele pediu que me servissem café com leite, pão, queijo e frutas. Fiquei surpreso com sua simplicidade e acolhida. Enquanto eu apreciava as comidas ele lia compenetradamente.
       Após uns vinte minutos percorrendo os olhos nos calhamaços, disse: "você é um poeta em desenvolvimento; é muito talentoso e precisa permanecer escrevendo; escreva sempre e leia muito, pois quem te ensina é livro".
      Perguntou os autores que eu havia lido, sugeriu alguns. Nunca me esqueci de suas palavras.
       Passamos algumas horas conversando. Ele mostrou seus escritos à mão, pequenos livretos que me inspiraram até hoje. Apreciei sua biblioteca, enfim saí de lá após o almoço.
             Retornei mais duas vezes.
         Depois que vim para o Rio Grande do Norte só deixei de acompanhá-lo, em termos de notícias sobre suas atuação, após a sua morte. As vezes que retorno ao Mato Grosso do Sul não o visitei mais.
        Manoel de Barros é a maior experiência da minha vida. Minha fonte de inspiração.

       Em junho de 2019 fui ao Mato Grosso do Sul. Meu pai faleceu. Alguns dias após o enterro me estirei até Campo Grande e fui visitar dona Estela, viúva de Manoel de Barros, a qual caminha para cem anos. Ela havia acabado de chegar de uma clínica e estava muito cansada. O cuidador pediu milhares de desculpas. Compreendi. 
      Foi o meu último contato com os ares manoelinos.

 Casa de Manoel de Barros, em Campo Grande/MS.








 Manoel de Barros em escultura de Bronze na Avenida Afonso Pena - Campo Grande/MS.



 

 
 




 

 
 Minha sobrinha Beatriz me acompanhou

Trans Pantaneira - Minha irmã Regina
Meu sobrinho Ricardo junto a escultura de Manoel de Barros em Campo Grande/MS
Essa fotografia é recente.







Dona Helena, uma pantaneira com o seu tererê