ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Mestre Benedito se despede de seu boi, passando o apito para o seu povo...

 Publicado no dia 21 de fevereio de 2022, dia do seu encantamento


É singularmente estranho receber a notícia do encantamento de um homem da casta do mestre Benedito. Mestre do Boi-De-Reis de Nísia Floresta, da rua da Palha, do Porto, homem que proporcionou décadas de alegria aos nisiaflorestenses, comandando esse Auto extraordinário, impossível de ser definido em palavras. Mestre por excelência. Não era algo inventado, mas uma manifestação que emanava da alma. Quando recebi a ligação de Josivaldo, que deu-me a triste notícia, minha mente se resumiu às lembranças que julgo importante destrinchar algumas...
 
Conheci o mestre Benedito no Porto, em 1992, quando ele encarnava os espíritos que conduzem o Boi-de-Reis, espetáculo mágico, gracioso, misterioso e empolgante. Fiquei sem acreditar que aquilo era real. Na ocasião também fui apresentado aos mestres Tonheca e Canindé, tesouros humanos do Folclore de Papari. Homens que trazem em suas essências a cultura genuína e incontável sabedoria popular. Naquele dia eu pensei “preciso estar próximo desses mestres para aprender”, para registrar, para divulgar...
 
De 1992 em diante, mantive sempre contato com o grupo, priorizando dar-lhes visibilidade dentro do próprio habitat deles, pois, infelizmente, é comum que uma sociedade se acostume tanto ao que possui, que não enxerga as suas belezas, por isso não valoriza como deve. Obviamente que isso não era generalizado, mas as gerações mais novas, se não fossem provocadas a entender a própria cultura, iria ignorá-la e até mesmo negá-la. E isso era fato.
 
Observei que algumas pessoas os convidavam para que eles exibessem o folguedo, mas não os tratavam com o necessário respeito. Agiam como se eles tivessem o dever de passar horas numa exibição cansativa e, ao final, mal terem o direito a um insignificante lanche. Era como se aquele espetáculo singular servisse para promover pessoas e instituições e, passada a exibição, tornavam-se invisíveis. Ignoravam que o grupo é grande e precisa de maquiagem, manutenção das roupas, dos calçados, dos assessórios, do querosene, enfim de uma série de detalhes, inclusive estarem muito bem alimentados, afinal é uma manifestação com coreografia intensa. Energia pura.
 
Observei que algumas pessoas queriam mostrar o Boi-de-reis como se ele fosse tirado de uma gaveta e depois guardado. Então conversei bastante com os mestres, orientando-os a impor condições para se apresentarem, afinal eles tinham gastos e precisavam cobrar uma taxa para se manterem, e até mesmo, depois, promoverem uma confraternização entre eles, afinal aquilo os fortaleceria anda mais. Eram mestres, eram artistas populares e exibiam uma das mais belas e antigas manifestações folclóricas do Brasil, vinda nas caravelas. Precisavam ser valorizados e respeitados. Quantos municípios brasileiros queriam ter um grupo de Boi-de-reis dessa qualidade? Todos! Assim eu dizia aos mestres e ao grupo.
 
Com o passar do tempo, todo mundo queria o Boi-de-Reis em algum lugar, então o orientei que elegessem uma pessoa entre eles para responder pelo grupo, inclusive que estipulassem um valor justo a ser cobrado, e eles mesmos decidissem como usá-lo. Quando alguém ligava para mim eu dizia “procurem Fulano e pague a ele o valor tal”. E assim era feito.
Creio que muitos precisam aprender que o Folclore não tem preço. Ninguém paga o peso, o tamanho, a quantidade do Boi-de-Reis, mas ao remunerá-los com justiça está-se garantindo que eles tenham vida longa, estejam revitalizados, bem equipados, alimentados, coloridos enfim se exibam em toda a sua plenitude. Isso é o mínimo. 
 
Em 2006 inscrevi o Boi-de-Reis de Nísia Floresta num edital do Banco do Nordeste e eles foram contemplados. Desse modo foi possível adquirir tecidos, fitas, espelhos, tênis e instrumentos musicais. Pirografei cada instrumento, personalizando-os com letras garrafais, justamente para evitar que tivessem outros rumos, evitando que fossem emprestados ou, se roubados, dificultassem passar adiante.
 
Ao longo dos anos, promovi diversos eventos públicos, inclusive alguns pessoais, sempre incluindo o Boi-de-Reis de Nísia Floresta, sempre conscientizando a população a entender e valorizar aquele tesouro de valor incalculável, parte da identidade de Nísia Floresta. Uma vez, levei-os à UFRN, onde a plateia os aplaudiu de pé. Fiz o que pude, na minha condição de amante do Folclore, visando projetá-los e sensibilizando as pessoas acerca do valor daquela manifestação.
 
Mestre Benedito sempre foi uma figura serena, bondosa e cheia de simplicidade. Homem cativante. Da mesma forma os mestres Tonheca e Canindé. O tempo passa, os compromissos da vida mostram outros caminhos, mas a amizade e o respeito, mesmo de longe, continuam. Sei que, de alguma forma fiz para o Boi-de-Reis o que era da minha obrigação como folclorista e como pessoa humana. Essa coisa folclórica está no meu sangue desde os meus tataravós. Chamei a atenção no aspecto de eles mesmos se enxergarem e se valorizarem sempre, e não deixarem essa riqueza morrer, e fiz o mesmo para com a sociedade que precisa se sentir pertencida ao Boi-de-Reis, e o Boi-de-Reis pertencido a ela.
 
Hoje, ao saber da morte do mestre Benedito, sinto uma profunda tristeza. Para mim enterraremos uma Biblioteca repleta de livros. Mestre Benedito era um baú de sabedoria. Há muito tempo escrevi um profundo estudo denominado “Casadetaipa” (está no meu blogue), e muita informação aprendi com ele, com os mestres Canindé e Tonheca. É um dos trabalhos mais lidos do meu blogue, por incrível que pareça, justificando o valor da sabedoria popular.
 
Não posso negar que estou muito triste, mas procuro entender esse encantamento. Uso, inclusive, um entendimento popular que diz “não viemos ao mundo para lajeiro”, ou seja, não somos eternos. Chegou a hora dele. Foi dada a sua contribuição. E que contribuição! Ele sempre soube da minha gratidão, do meu respeito e admiração por ele e por sua família.
 
A cultura de Nísia Floresta perde um homem notável, que espalhou boas sementes enquanto pessoa humana e brincante da cultura popular. Com certeza o Boi-de-Reis permanecerá vivo nas mãos dos demais mestres e das gerações mais novas, afinal algo tão belo e extraordinário jamais deve morrer. Lições ficaram. Ensinamentos ficaram, resta ao povo e às autoridades a tarefa de cada um fazer a lição de casa bem feita, afinal foram muitas aulas...
 
Como reza o nome Benedeto, que significa "bendito", bendito seja o seu legado!
Externo os meus sentimentos à sua esposa, aos seus filhos, sobrinhos e netos. Externo os meus sentimentos ao povo de Nísia Floresta.

























 

Homenagem ao mestre Benedito - Boi-de-reis de Nísia Floresta (escrito em 2013)...


Quem nunca assistiu ao espetáculo antiquíssimo do BOI-DE-REIS de Nísia Floresta? É um auto-popular que veio nas caravelas de Pedro Álvares Cabral. Ter o Boi-de-Reis num município é ter um colosso de Rodes, é ter um monumento de infinita grandeza, é ter ouro. Assisti ao Boi-de-Reis é um privilégio. Quem assistiu deve dizer "ganhei um presente!". É simplesmente inesquecível! Cultura popular viva! É ver o Brasil de frente. É ver o povo brasileiro. 
 
Tem capeta, tem Birico (interpretado pelo Mestre Canindé), tem Catirina, tem o Jaraguá, tem Gigante, tem Galantes, tem damas, tem o bode… TEM O BOI! É um espetáculo dramático feito apenas por homens, cujos brincantes se dividem em fazer oa papéis femininos. E isso é a graça do espetáculo antes de o Boi entrar em cena. Não há quem não ri das meninas-meninos.
 
Uma figura que provoca gargalhadas é quem menos devia: o danado do capeta! Eis que as crianças rasgam a boca de chorar e gritar, aterrorizadas, com medo de o diabo pegá-las e levá-las para casa. O Boi-de-Reis de Nísia Floresta é uma graça.
Uma das coisas mais impressionantes é a arte contida em seus protagonistas, principalmente as mentes brilhantres de seus mestres, os quais trazem as loas, as canções quase sem fim guardadas na mente.
 
A beleza da coreografia eletrizante dos galantes é outro atrativo. Haja pernas, haja pés... Mas quando o Senhor Boi-de-Reis entra em cena, encena e rouba a cena... é lindo demais... Como é lindo o Boi-de-Reis de Nísia Floresta!
A “Rua da Palha”, hoje Vila São João, tem em seu endereço celebridades na mais pura acepção da palavra. O BOI-DE-REIS DA RUA DA PALHA É UMA CELEBRIDADE POR EXCELÊNCIA!
 
Óbvio que alguns não valorizam como deviam, em detrimento das modernidades, mas não sabem o que estão perdendo. Infelizmente, em nome desse equívoco, eles os deixam mofando literalmente, mas eles resistem, pois têm quem lhes dê o verdadeiro estímulo: a palavra, a orientação, o apoio.
 
Você sabia que o BOI-DE-REIS de Nísia Floresta já se apresentou no FESTIVAL NACIONAL DO FOLCLORE DE OLÍMPIA (SÃO PAULO)? Sabe por quê? Pela genuinidade, pelo empirismo e pela raça contida em todos os seus elementos. No princípio de 1992 o grupo entrou em decadência. Quase foi extinto, mas houve quem o resgatasse e os animasse, tornando-o vivo novamente. Infelizmente não foram as autoridades que o salvaram da extinção. Foi gente comum, que, iguais a tantos, sabe o valor dessa manifestação popular significativa da nossa cultura. E se o povo permitiu é porque entendeu a sua importância.
 
Saúdo a todos os brincantes do BOI-DE-REIS de Nísia Floresta!
 
SALVE O MESTRE CANINDÉ!
SALVE O MESTRE BENEDITO!
SALVE O MESTRE ANTONIO!
 
Viva o Boi-de-Reis!
Como é lindo o Boi-de-Reis de Nísia Floresta!

Mestre Benedito - Boi-de-Reis de Nísia Floresta...


Com a morte do Sr. Benedito, mestre de Boi-de-Reis de Nísia Floresta, fiquei pensando sobre a morte, exatamente morte e consequências quando se trata do desaparecimento dos saberes populares. É certo que, antes de se tratar de um mestre, de um brincante de folclore, há a morte de um pai, um avô, um amigo - fato que nos consterna -, mas em seu caso há um homem maior, que se soma a esse primeiro homem. Ele, sem estudo algum, detinha conhecimentos notáveis. Havia nele uma ilustração no que concerne ao domínio sobre a arte de exercer o Boi-de-Reis. Isso funciona como impressão digital. É uma identidade que não permite cópias. O máximo que podemos ter desse homem, hoje, é o seu legado que se despreendeu dele e caiu no colo de uma cidade. Mas esse legado não será igual nos outros, pois ele era ele. Era único. A grande dádiva dessa perda é saber que um dia o Sr. Benedito foi uma criança, foi um adolescente e construiu-se nele tudo o que ele foi. Ele herdou e deixou uma herança. Essa é a esperança que ficou para a cidade, portanto esperanço que a sua família perpetue a sua memória e siga se construindo na arte de brincar o Boi-de-Reis. É certo que temos o privilégio de contar com mais dois grandes mestres, Canindé e Antonio. Louvado sejam os seus nomes. Vida longa para eles! Mas, como o assunto é o mestre Benedito, urge que as autoridades deem todo o apoio necessário ao grupo do Boi-de-Reis de Nísia Floresta para que esse bem maior de Nísia Floresta tenha condições de existir plenamente.

A maior homenagem - Mestre Benedito - Boi-de-Reis de Nísia Floresta

 
É muito comum ao calor da morte de pessoas comuns ou ilustres, aflorar o sentimento de homenageá-las. Penso que uma homenagem deve ser prestada com merecimento e justiça. Há municípios que transformam instituições públicas num celeiro de homenagens por conveniência, por política, por politicagem, por oportunismo e – pasmem – até mesmo por solicitação do homenageado ou de parentes. 
 
Em alguns lugarejos interioranos se vê órgãos públicos com nomes de pessoas desconhecidas: “Clube de Idosos Sogra do Prefeito”, “Rua Bisavô do vereador que nunca morou na cidade”, “Conjunto Amigo do Ex-Prefeito”, “Avenida Um Empresário Ricaço de Sorocaba Que Nem Em Sonho Conhece A Cidade”, “Praça Dona Fulana Amiga da Vereadora Sicrana”... 
 
São homenagens feitas às pessoas sem relação com o local, mas o nome está numa placa, como se ela tivesse um legado na cidade. Já ouvi E VI cada história escabrosa que não vale a pena perder tempo. As pessoas são inteligentes e sabem muito bem.
 
Há poucos dias encantou-se o mestre Benedito, brincante de Boi-de-Reis, homem dignamente merecedor de homenagens. Mas o que é uma homenagem? Qual a verdadeira homenagem? Homenagear alguém por quê? 
 
Essas três perguntas devem ser critério fundamental para que órgãos como Senado, Câmara Federal, Assembleia Legislativa e Câmara de Vereadores respondam antes de prestar uma homenagem a alguém. 
 
Jamais uma homenagem deve ser feita sem que o homenageado tenha um legado reconhecido no município, no estado ou no país. Se se trata de um município, cabe à Câmara de Vereadores os devidos trâmites.
 
Quando homenageamos uma pessoa desconhecida, simplesmente porque um vereador de uma cidade potiguar (por exemplo), tem uma colega que pediu que o seu pai – que mora em Sorocaba (por exemplo) – receba o nome de uma rua, além de ridículo, é desrespeitoso e afrontoso com o povo desse lugar. Quando se homenageia desconhecidos, rouba-se o direito de se homenagear alguém que merece.
 
Homenagear é reconhecer, perpetuar o nome, colocar o nome na eternidade. Homenageia-se por gratidão, respeito, louvor, reconhecimento. Portanto não cabe estar nesse panteão pessoas que sequer colocaram o pé na cidade, sem relação alguma com o seu povo, sem legado algum no local. Deveria existir uma lei que regesse isso, pois assim acabaria o hábito vulgar e banal de enaltecer quem não merece.
 
Mas, retomando o assunto do mestre Benedito, é lógico que ele merece o nome numa rua, numa insituição de cultura ou em outro dispositivo, ou uma homenagem no formato de evento. Mas fico pensando o que o mestre Benedito pensaria sobre isso. Com certeza absoluta – pelo homem simples que era –, se fosse possível a essas instituições públicas perguntarem a opinião dele sobre isso, tenha certeza que ele diria: 
 
“A melhor homenagem é ser reconhecido em vida, ser valorizado em vida, receber apoio em termos de estrutura enquanto estamos vivos. A melhor homenagem a não deixar que a gente se canse, que a gente diga que não vai mais “dançar” o Boi-de-Reis, vai parar. A melhor homenagem é não permitir que a gente seja visto com roupas molambentas, bufentas, remendadas porque nós mesmos nos mantemos com muita dificuldade e graças a meia dúzia de pessoas que muito nos ajudaram, pois do contrário já estaríamos extintos. A melhor homenagem é que as escolas saibam quem somos, que as pessoas comecem a valorizar a nossa arte desde criança. A melhor homenagem é ter a garantia de que a secretaria de cultura da cidade disponibilize ao grupo do Boi-de-Reis a devida estrutura, permitindo a nossa locomoção sem que isso seja visto como esmola ou um favor. A melhor homenagem é a garantia de que a cada dois anos a secretaria de cultura confeccione um novo figurino completo para o grupo, que garanta a manutenção de nossos instrumentos musicais, enfim, que haja uma política pública a nosso favor. Isso não é privilégio. É reconhecimento da Arte. É reconhecimento do Folcore do município. É respeito a quem promove a cultura popular. A melhor homenagem é tomar consciência que somos reconhecidos como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), e como Patrimônio Cultural do Brasil, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Quando pensarem em nos homenagear nos modos convencionais, que façam isso depois de nos homenagear em vida, depois de nos dar dignidade em vida, pois terá muito mais sentido. Homenagem verdadeira é isso. Ser respeitado de verdade, não é estar em placas com nomes de ruas, não é estar como nome de instituições públicas, é estar com a nossa Arte viva, intensa, valorizada, reconhecida, divulgada, respeitada, amparada, estruturada na forma da lei. Os órgãos públicos que tiverem esse respeito por nós estarão nos homenageando da forma mais verdadeira e importante. Nós também somos a homenagem porque a nossa Arte engandece e divulga um minicípio. A maior homenagem é ser reconhecido nesses moldes, pois é um reconhecimento que se confundirá com a nossa existência plena”
 
Bem... depois dessas palavras do mestre Benedito, não sei nem o que dizer... ele já nos disse tudo...

 

"E depois? Que será da Rússia?"

 

 Estou lendo o livro “O assassinato de Rasputin”. Creio que todos conhecem a história do enigmático personagem Rasputin, que impressionou o czar russo Nicolau II e sua esposa, czarina Aleksandra Feodorovna, tornando-se politicamente um conselheiro influente da família imperial. Era um camponês, místico, que apareceu do nada no palácio dos czares e ali quase não saiu mais. 

Considerado uma espécie de santo pelos Romanov, conquistou esse status depois de “curar” o filho deles, o tzarevich Alexis Romanov, que sofria de hemofilia. Era Deus no céu e Rasputin na Terra. Ele só não governava a Rússia, mas se deixassem... graças ao seu poder de persuasão, pintando e bordando. Suas orientações eram tidas pelos czares como divinas, portanto seguidas fielmente. A história é longa e não posso demorar mais, pois o assunto é outro… justamente a guerra.

Eis que num determinado capítulo leio uma carta que ele escreveu ao czar Nicolau II. Rasputin sempre odiou a guerra, então ele deu o seguinte conselho:
“Caro amigo, repetirei mais uma vez o que já te disse: Uma nuvem ameaçadora paira sobre a Rússia! Desventuras! Inumeráveis sofrimentos! Está escuro, e não se vislumbra a luz! Um mar de lágrimas, um mar sem fim… e quanto sangue? Não existem palavras para dizê-lo. O horror é indescritível. Sei que tudo depende de ti. Querem a guerra, mas não compreendem que a guerra é perdição. Pesado é o castigo de Deus quando nos tira a razão. Então é o princípio do fim. És o tzar, pai do povo: não deixe que os insensatos triunfem e ponham a perder a si mesmos e ao povo. Muito bem, venceremos a Alemanha. Mas e depois? Que será da Rússia? Na verdade, nunca existiu, desde o princípio dos séculos, uma marca maior. Ela está submersa em sangue. Sua perdição é completa. A tristeza não tem fim”.
Como disse acima, Rasputin tinha pavor só de ouvir falar em guerra. Onde quer que estivesse na corte, nos salões, nos restaurantes, entre os camponeses, proclamava sua aversão a esse mal. Mas ele mal encerrou a sua carta e já ouvia os primeiros disparos da guerra. Foi uma das raras vezes que o czar não lhe deu ouvidos.
Sabemos que o desenho dessa guerra foi outro. Os tempos eram outros. Eles estavam no princípio do século XX, afinal toda a família seria assassinada pelos bolcheviques em 1918. Mas me chama a atenção quando Rasputin escreve “...venceremos a Alemanha. Mas e depois? Que será da Rússia?”
 
É justamente a pergunta que fazemos hoje? A pergunta é atual. É uma pergunta feita há mais de cem anos, mas parece que foi feita hoje, dia 25 de fevereiro de 2022. “... e depois? Que será da Rússia?” É o que o mundo pergunta, hoje…
 

Piedade Bezerra e o seu Folclore...

 


PIEDADE BEZERRA E SEU FOLCLORE...
 
(2016)
 
Dia desses, na Clínica de Oftalmologia do Dr, Dotti, tive o prazer de me estar com Piedade Bezerra do Timbó, essa figura querida e abnegada às coisas do nosso folclore. Como não poderia ser diferente, conversamos e rimos muito. Quem gosta de Folclore, não se cumprimenta sem contar uma resenha. E isso se deu com louvor, pois eu nunca havia escutado a resenha que ela me presenteou. 
 
Num determinado momento percebemos que roubávamos a cena, pois as gaitadas se expandiram. O motivo foi a estória abaixo, contata por ela, nem tão conveniente para aquele ambiente, mas só sei que foi assim. Disse-me Piedade que, certa vez uma mulher procurou um 'oculista' e disse:
 
- Dotô, eu vim aqui móde o sinhô me passá um óculos vermelho, um óculos verde e um óculos marrom!
O oculista - intrigado com aquela preferência esdrúxula - redarguiu-a:
--- Minha senhora, mas três óculos para quê?!
Muito convicta ela respondeu:
--- Ora bolas! Mas que pergunta, doutô! O vermelho é para "vermelhó", o verde é para "verdeperto", e o marrom é côndi eu percisá "vermarromeno".
 
Aí o leitor já entendeu a razão das risadas... Isso é Piedade, fonte inesgotável de sabedoria... e de alegria!

O Boi-de-Reis de Nísia Floresta e suas resenhas...



Grosso modo, o Boi-de-Reis surgiu na Europa do século XVI, mais especificamente na Península Ibérica (parte mais ocidental, e compreende dois países: Espanha, Portugal e Andorra, uma pequena fração do território francês e o território britânico de Gibraltar).
No Brasil é também conhecido como Bumba meu boi, Boi Bumbá, Boi Calemba, Boi de Mamão, Boi Surubi, Rancho de Boi, Bumba de reis, Boi pintadinho, dentre outros nomes.
 
Chegou até nós trazido nas caravelas de Cabral. Diz-se que havia um conto ibérico de enredo muito semelhante ao da história da lenda do Bumba meu boi, difundida no Brasil.
Ao chegar ao Brasil, a história foi se modificando ao incluir alguns aspectos das culturas africana e indígena, variando também os nomes do folguedo e os personagens, mas o boi sempre foi o pilar da dramatização, assim como os galantes, o Birico, o Jaraguá, a Burrinha, a Catirina e outros. 
 
O auto é conduzido por mestres, que norteiam toda a história com um contínuo apito executado incontinenti. Muitos grupos se apresentam ao som de instrumentos musicais como rabeca, triângulo, sanfona, pandeiro, zabumba e outros, mas há grupos que não usam nenhum instrumento, quase sempre por dificuldades financeiras e falta de apoio dos órgãos públicos.

Foi durante o período colonial, com a escravidão e a criação de gado, que a lenda associada a essa manifestação teve sua origem tal qual a conhecemos hoje.
 
O Boi-de-Reis é uma manifestação artística e popular do folclore brasileiro reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), e como Patrimônio Cultural do Brasil, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
 
Nem sempre tudo foi flores para os brincantes de Boi-de-Reis. Num tempo mais remoto esse auto era brincado mais por pessoas negras, e passou por perseguições das elites nordestinas e da polícia, sendo, inclusive, proibido de 1861 a 1868. 
 
Numa ocasião, Ana Cascudo, filha de Câmara Cascudo, contou-me que, algumas vezes o seu pai foi chamado às pressas em sua casa, inclusive de madrugada, por esposas ou parentes de brincantes de diversos folguedos populares devido ao preconceito das pessoas que se incomodavam com o “barulho” promovido pelos brincantes em determinados pontos de Natal. Eles consideravam o ato como desordem.
 
Câmara Cascudo, que muito entendia de folcloridades, corria até a delegacia e dizia “delegado, solte esses cidadãos, eles estão simplesmente dando vida às raízes folclóricas do Brasil, isso não é desordem, é cultura popular”. 
 
O delegado, surpreso com a visita tão importante, não dizia uma palavra ao mestre Cascudo, apenas ordenava aos ordenanças “abram a sela e soltem o pessoal, mas mande fazer a algazarra em outro canto!”.

Memória de Natal - Átrio do antigo cais...

 

MEMÓRIA DE NATAL...
AO INVÉS DE MUDAR O NOME DA PONTE, POR QUE NAO MUDAR ESSA IMAGEM DE DESPREZO E ABANDONO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO DE NATAL... PENSE NISSO, CORONEL AZEVEDO!
 
Assim como as velhas prostitutas d'antes usadas e jogadas fora, por vezes quase arremessadas nas águas mansas do rio Potengi, jaz esse belo edifício quase dentro do rio, no antigo Porto de Natal/RN. 
 
O prédio traz de original meramente as paredes... não se sabe até quando. Paredes que funcionam como muros protetores para uma câmara frigorífica que ocupa quase toda a parte interna... coisa de comerciante de peixes, aliás toda essa área é praticamente um mercado de peixe, cujos felinos domésticos fazem jus à expressão "balaio de gatos"... Também é área de bares meio esquisitos... há resquícios do mercado paralelo de corpos... 
 
Mas o rosto atual do prédio nos permite fazer algumas conjecturas. Percebemos uma espécie de logomarca dos Correios no centro do prédio, sobre a porta principal. Ou seria apenas um desenho semelhante? Seria a alfândega? Independente de o quer que seja, o prédio é belíssimo, mesmo enfeado pelo perfume esdrúxulo dos frutos do mar, misturado ao suor de homens gritando "olha o peixe barato".
 
De fato são baratos, mas barata mesma é a consciência de incontáveis autoridades que governam Natal e nada fazem para salvar tesouros desse tipo... que pena que jogam fora as prostitutas quando velhas... com certeza elas contariam muitos episódios que os incultos não querem saber... L.C.F. 2016.

"Coisa que não se acaba no mundo é gente besta e pau seco"...

 


O dito popular acima pode ser lido na obra LIVRO DAS IGNORÃÇAS, em DIDÁTICA DA INVENÇÃO, escrito pelo poeta sul-mato-grossense Manoel de Barros. Ao lê-lo pela primeira vez, achei-o curioso e passei a considerá-lo mais uma dentre tantas invenções do autor pantaneiro, fruto de seus momentos de epifania, quando riso e razão se encontram.
Eis que, lendo a obra ADAGIÁRIO BRASILEIRO, escrita pelo cearense Leonardo Mota, daqui das divisas, nesse outro lado do planeta Brasil, me surpreendo com o mesmo dito popular, mas com uma pequena variante: “O que há mais nesse mundo é pau torto e gente besta”. 
 
Achei incrível. Vi logo que o dito popular não era mais uma das esdrúxulas frases do meu conterrâneo Manoel, mas de algum anônimo cearense - acreditei -, pois ela foi registrada há mais de cem anos nas terras de Alencar. Então era uma herança do Nordeste. O autor cearense fez o seu apanhado no final do século XIX, e a obra foi publicada no início do século XX. 
 
Então, diante dessa descoberta, dei por encerrado o assunto. Entendi que a frase voou do Ceará para o Mato Grosso do Sul, como voam as sementes de jacarandá, que tem asas e ganham o mundo ao sabor do vento.
 
Mas vejam só como “as coisas não tem fim” (como me disse Ava Jechaka’i, um índio guarani-kaiowá que me ensinou muito sobre a natureza (O seu nome quer dizer “ Aquele que presta atenção na natureza, nos animais e nas pessoas. Pessoa que tem no olhar sua fonte de conhecimento e sabedoria”). 
 
Dia desses, pesquisando outro assunto, caiu nos meus olhos a informação de que essa frase é um provérbio português. Ou seja, não era sul-matogrossense nem cearense. Tempos depois, pesquisando um assunto diferente na Bíblia, dei-me com Eclesiaste 1.15, que diz “O número dos tolos é infinito”, que traz a mesma essência do dito adágio. 
 
Fui cavar o assunto com mais profundidade e descobri que o dito popular é mais antigo do que se pensa. É milenar. Corresponde a célebre frase em latim “Stultorum numerus infinitus est”, dita por Salomão, comum em muitos países europeus, que significa “O número dos tolos é infinito”. Foi um achado. Estava explicada a fonte e fechado o círculo. 
 
Nunca ouvi alguém falando esse dito popular. O que sei dele foi através de leituras. Achei interessante e quis compartilhar com os apaixonados pela palavra. E, convenhamos, o que é mais importante nessa história toda, não é nem essa pesquisa despretensiosa, e que demorou tanto, mas saber que realmente “coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco”.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

O latim resistindo


MEMÓRIA DE SÃO JOSÉ DE MIPIBU - A FRASE LATINA NO UMBRAL DA IGREJA MATRIZ DE SANT'ANA E SÃO JOAQUIM...
 
A frase acima, em latim, significa "Nós próprios somos a casa de Deus". Ela está no base do coro da Igreja Matriz de Santana e São Joaquim, em São José de Mipibu/RN. É óbvio que a maioria do povo sabe essa tradução, mas fica aqui para quem desconhece. A igreja Católica prestigia muito o latim. Originalmente os cultos católicos eram celebrados nesse idiona, a língua-mãe da língua portuguesa e de diversas outras. Os livros católicos eram todos nesse idioma, portanto não poderia ser diferente que placas comemorativas, túmulos de religiosos, letreiros no interior dos templos também fossem nessa língua. 
 


O latim, hoje, é usado mais na Igreja Católica, embora acanhadamente se comparado ao passado. Não é à toa que muitos documentos publicados pelo Vaticano trazem o título em latim. Mas alguns padres intelectuais tanto falam quanto escrevem nessa língua. Outros, estudam o essencial para a interpretação de breves citações nessa língua, feitas por certos documentos da igreja. No Rio Grande do Norte um dos maiores latinistas é o padre José Mário, também exorcista. Por falar em latinidade, na Igreja do Rosário dos Pretos, no Bairro Cidade Alta, em Natal, ocorrem missas em latim todo domingo, pela manhã. A linguagem acadêmica também conserva diversas expressões e vocábulos nessa língua, por exemplo "essa medida é sine qua non", ou seja, indispensável/essencial, dentre tantas outras. 

O universo do Direito também se serve muito do latim. Recentemente o Abrigo Anízia Pessoa mandou instalar em suas dependências um Narco de Memória pelos 40 anos de fundação da instituição, feito numa placa de bronze, sob os cuidados da Ir. Iva Guedes - idp. O marco traz uma citação em latim, em conformidade com essa tradição católica. A valorização do latim, por mais que pareça antiquado, é fundamental, pois como entenderemos a nossa própria língua se o desconhecemos totalmente? É bom que o conheçamos, mesmo que pouco. OBS. As fotografias exteriores são de Jose Amauri Freire , registradas quando o templo era revestido de azulejo de banheiro. A imagem interna é de Otávio Carvalho.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Poema - O menino que sonhava felicidade


 POEMA

O MENINO QUE SONHAVA FELICIDADE.
Havia um menino todo abotoado em sonhos naquela cidade.
De tão desperdiçado com a realidade, pregou nele ideias de sonhar.
Garantia que o mundo se consertava com ferramentas do bem.
Um dia saltaram que ele exercia a cabeça de vento,
Isso porque o menino ventava histórias que emanavam fantasias.
Mas os seus sonhos de fato ganhavam mundo,
Assim ele praticava realidade no que pensavam ser o absurdo,
Proclamava que a verdade dos sonhos é diferente.
De tão responsável com sonhos ele os cultivava vivos.
Tinha tantos modos de sonhar que magicou um pássaro de água.
Era uma ave escura como o rio Paraguai.
Quando planava, as asas respingavam, formando rios.
Os bichos bebiam dele,
Houve até um aumento de floresta.
O menino anunciava que não estava no mundo, mas o mundo estava nos seus sonhos,
Para ele, o sentido de ser feliz tinha mais existência nos sonhos.
A realidade precisava ser marchetada nos sonhos...
Exercitando esse engenho tão convincente, ele apurava a felicidade.
Reforçaram à mãe do menino que ele desregulava o mundo,
A mãe, ainda mais competente à imaginação, não concebia sentenças.
Desligou, foi o que fez.
A poesia estava tão praticada nela, que não podia sumir os sonhos do filho.
O menino estava comprometido com a herança materna.
Eles exerciam sonhos para se enriquecerem de felicidade
Era genético que jamais ela praticaria o mundo normal.
Aquilo restava na lata.
Só não via quem desvia.
Então o menino desapareceu a fazer sonhos por onde passasse.
Dizem que os seus sonhos estão a tal ponto espalhados em poesia que até hoje são encontrados.
Quem os acha, arranja-se feliz como um rio...
Esses sonhos realizam quem tem mães sonhando os sonhos dos filhos... livres, sem tocá-los...

POEMA: PANTANAL...


POEMA: PANTANAL...

Há no Pantanal um aperfeiçoamento a Éden,
Ali tudo está divinizado ao silêncio,
Um silêncio em eternidades de sons.
Sussuros de vento, de águas,
Esturros... trinados...
Estar nele é abençoar-se em oração,
É uma contrição entoada de matas.
Ali nos dissipamos em Pantanal,
E, mimetizados, nos tornamos pássaros...
Somos elevados à árvores,
Em água nos derramamos,
Em onças somos...
O Pantanal cresce para a morte num infindável ciclo de vidas...
É berço comparecido com eternidades,
Cenário que se elevou a Paraíso.
Quando estou Pantanal,
Aconteço-me de sensações extraordinárias...
São momentos absortos de selvas,
Meu eu epidermado de bichos, bugres e espíritos mateiros.
Cresci abençoado a ser mato,
Destinado à sina do bichos
Não funciono para cidades.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Mestre Benedito se despede de seu boi, e passa o apito para o seu povo...



É singularmente estranho receber a notícia do encantamento de um homem da casta do mestre Benedito. Mestre do Boi-De-Reis de Nísia Floresta, da rua da Palha, do Porto, homem que proporcionou décadas de alegria aos nisiaflorestenses, comandando esse folguedo extraordinário, impossível de ser definido em palavras. Mestre por excelência. Não era algo inventado, mas uma manifestação que emanava da alma. Quando recebi a ligação de Josivaldo, que deu-me a triste notícia, minha mente se resumiu às lembranças que julgo importante destrinchar algumas...
Conheci o mestre Benedito no Porto, em 1992, quando ele encarnava os espíritos que conduzem o Boi-de-Reis, espetáculo mágico, gracioso, misterioso e empolgante. Fiquei sem acreditar que aquilo era real. Na ocasião também fui apresentado aos mestres Tonheca e Canindé, tesouros humanos do Folclore de Papari. Homens que trazem em suas essências a cultura genuína e incontável sabedoria popular. Naquele dia eu pensei “preciso estar próximo desses mestres para aprender”, para registrar, para divulgar...
De 1992 em diante, mantive sempre contato com o grupo, priorizando dar-lhes visibilidade dentro do próprio habitat deles, pois, infelizmente, é comum que uma sociedade se acostume tanto ao que possui, que não enxerga as suas belezas, por isso não valoriza como deve. Obviamente que isso não era generalizado, mas as gerações mais novas, se não fossem provocadas a entender a própria cultura, iria ignorá-la e até mesmo negá-la. E isso era fato.
Observei que algumas pessoas os convidavam para que eles exibessem o folguedo, mas não os tratavam com o necessário respeito. Agiam como se eles tivessem o dever de passar horas numa exibição cansativa e, ao final, mal terem o direito a um insignificante lanche. Era como se aquele espetáculo singular servisse para promover pessoas e instituições e, passada a exibição, tornavam-se invisíveis. Ignoravam que o grupo é grande e precisa de maquiagem, manutenção das roupas, dos calçados, dos assessórios, do querosene, enfim de uma série de detalhes, inclusive estarem muito bem alimentados, afinal é uma manifestação com coreografia intensa. Energia pura.
Observei que algumas pessoas queriam mostrar o Boi-de-reis como se ele fosse tirado de uma gaveta e depois guardado. Então conversei bastante com os mestres, orientando-os a impor condições para se apresentarem, afinal eles tinham gastos e precisavam cobrar uma taxa para se manterem, e até mesmo, depois, promoverem uma confraternização entre eles, afinal aquilo os fortaleceria anda mais. Eram mestres, eram artistas populares e exibiam uma das mais belas manifestações folclóricas do Brasil. Precisavam ser valorizados e respeitados. Quantos municípios brasileiros queriam ter um grupo de Boi-de-reis dessa qualidade? Todos! Assim eu dizia aos mestres e ao grupo.
Com o passar do tempo, todo mundo queria o Boi-de-Reis em algum lugar, então o orientei que elegessem uma pessoa entre eles para responder pelo grupo, inclusive que elegessem um valor a ser cobrado, e eles mesmos decidissem como usá-lo. Quando alguém ligava para mim eu dizia “procurem Fulano e pague a ele o valor tal”. E assim era feito.
Creio que muitos precisam aprender que o Folclore não tem preço. Ninguém paga o peso, o tamanho, a quantidade do Boi-de-Reis, mas ao remunerá-los com justiça está-se garantindo que eles tenham vida longa, estejam revitalizados, bem equipados, alimentados, coloridos enfim se exibam em toda a sua plenitude. Isso é o mínimo.
Em 2006 inscrevi o Boi-de-Reis de Nísia Floresta num edital do Banco do Nordeste e eles foram contemplados. Desse modo foi possível adquirir tecidos, fitas, espelhos, tênis e instrumentos musicais. Pirografei cada instrumento, personalizando-os com letras garrafais, justamente para evitar que tivessem outros rumos, evitando que fossem emprestados ou, se roubados, dificultassem passar adiante.
Ao longo dos anos, promovi diversos eventos públicos, inclusive alguns pessoais, sempre incluindo o Boi-de-Reis de Nísia Floresta, sempre conscientizando a população a entender e valorizar aquele tesouro de valor incalculável, parte da identidade de Nísia Floresta. Uma vez, levei-os à UFRN, onde a plateia os aplaudiu de pé. Fiz o que pude, na minha condição de amante do Folclore, visando projetá-los e sensibilizando as pessoas acerca do valor daquela manifestação.
Mestre Benedito sempre foi uma figura serena, bondosa e cheia de simplicidade. Homem cativante. Da mesma forma os mestres Tonheca e Canindé. O tempo passa, os compromissos da vida mostram outros caminhos, mas a amizade e o respeito, mesmo de longe, continuam. Sei que, de alguma forma fiz para o Boi-de-Reis o que era da minha obrigação como folclorista e como pessoa humana. Essa coisa folclórica está no meu sangue desde os meus tataravós. Chamei a atenção no aspecto de eles mesmos se enxergarem e se valorizarem sempre, e não deixarem essa riqueza morrer, e fiz o mesmo para com a sociedade que precisa se sentir pertencida ao Boi-de-Reis, e o Boi-de-Reis pertencido a ela.
Hoje, ao saber da morte do mestre Benedito, sinto uma profunda tristeza. Para mim enterraremos uma Biblioteca repleta de livros. Mestre Benedito era um baú de sabedoria. Há muito tempo escrevi um profundo estudo denominado “Casadetaipa” (está no meu blogue), e muita informação aprendi com ele, com os mestres Canindé e Tonheca. É um dos trabalhos mais lidos do meu blogue, por incrível que pareça, justificando o valor da sabedoria popular.
Não posso negar que estou muito triste, mas procuro entender esse encantamento. Uso, inclusive, um entendimento popular que diz “não viemos ao mundo para lajeiro”, ou seja, não somos eternos. Chegou a hora dele. Foi dada a sua contribuição. E que contribuição! Ele sempre soube da minha gratidão, do meu respeito e admiração por ele e por sua família.
A cultura de Nísia Floresta perde um homem notável, que espalhou boas sementes enquanto pessoa humana e brincante da cultura popular. Com certeza o Boi-de-Reis permanecerá vivo nas mãos dos demais mestres e das gerações mais novas, afinal algo tão belo e extraordinário jamais deve morrer. Lições ficaram. Ensinamentos ficaram, resta ao povo e às autoridades a tarefa de cada um fazer a lição de casa bem feita, afinal foram muitas aulas...
Como reza o nome Benedeto, que significa "bendito", bendito seja o seu legado!
Externo os meus sentimentos à sua esposa, aos seus filhos, sobrinhos e netos. Externo os meus sentimentos ao povo de Nísia Floresta.