ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Sanderson Negreiros e Tarcísio Medeiros, uma faceta histórica...



Ano que vem completará meio século da primeira edição de “Aspectos geopolíticos e antropológicos da História do Rio Grande do Norte”, uma das obras de Tarcísio Medeiros, insígne escritor norte-rio-grandense. Li-a em 1993, então aluno na UFRN, na aula de Cultura Brasileira, por orientação do também ilustre potiguar Sanderson Negreiros. 

Sanderson tinha um modo interessante de construir o conhecimento com seus alunos. Lembro-me que certa vez, em sala de aula, quando ele citava Dorian Gray Caldas, disse “querem ir em sua casa, conhecê-lo”. E fomos naqueleinstante. Assim conheci outro renomado mito da terra de Câmara Cascudo. Aquilo me marcou. 


Outra vez eu havia faltado na semana anterior. NÃO EXISTIA WHATSAPP.  Quando voltei, soube que teríamos que ler alguns livros para, depois, discutí-los. A dinâmica seria assim: a pessoa que leu discorreria sobre a obra. Sanderson Negreiros, o professor, faria possíveis observações, e o restante da turma, que não havia lido aquele livro, ouviria a explanação fazendo perguntas e outras abordagens. Assim, todos saberiam sobre todos os livros.

Como eu havia faltado, sobrou para mim “História da Alimentação no Brasil”, de Câmara Cascudo. Ninguém quis ficar com ele, pois é tão grande que algumas editoras o publicam em dois volumes. No caso, li todo num livro só. As obras eram de Sanderson. Li como uma criança degustando o seu sorvete preferido. É simplesmente fascinante e foi um dos livros que mais me marcaram. 



Essas foram duas passagens marcantes com o professor Sanderson, na UFRN...

Eis que chega em minhas mãos, ontem, a obra “Aspectos geopolíticos e antropológicos da História do Rio Grande do Norte”, de autoria de Tarcísio Medeiros. Até aí, nada demais além da importante obra. Mas ela continha esses invisíveis que a mim, pelo menos, impressionam e que acho digno dar-lhes  visibilidade. 

O livro, apesar de carregar 49 anos de idade, está intacto, mas o que mais chamou a minha atenção foi um cartão onde está datilografada uma mensagem escrita pelo autor, dirigida a Sanderson Negreiros, além da dedicatória.

O texto traz informações preciosas em que é possível viajar até a Redinha e ver esses dois mitos sentados no alpendre de uma espaçosa varanda jogando conversa fora. Dentre elas as ideias que ele findou escrevendo nessa obra. 




O que me encanta é a humildade. Ele fala do livro como se não fosse o tesouro que é. Dá impressão que é um desses livros que você lê, lê e não há o novo, o inédito, o fascinante... só mesmices.

O cartão foi escrito no dia 22 de maio de 1973. Tarcísio tinha 55 anos de idade e Sanderson 34. 21 anos de experiência a mais carregava Tarcísio, e ele acolheu sugestões do jovem Sanderson. Humildade e respeito a um jovem que com certeza muito cedo se revelou genial.

Ele assina o cartão e com a mesma caneta Bic diz “N.B. Releve os erros tipográficos”.Quem daria importância para “erros tipográfico” diante daquele pergaminho de conhecimentos?

O que está ali que foi sugestão de Sanderson? Quais as lacunas dos “grandes mestres” citadas por Tarcísio? São esses invisíveis que nuterm a minha imaginação... Fico pensando o que conversaram esses notáveis.

O clipe estava se desmanchando; deixou nódoas no cartão e na página. Senti-me como os egiptólogos descobrindo câmara em pirâmide ao retirar a peça metálica e imprestável, ali colocada por Tarcísio e retirada por mim. Sanderson foi tão bom que deixou para alguém esse presente.

Tarcísio partiu em  2003, aos 85 anos. Sandersou se encantou em 2017, aos 78 anos. Ambos deixaram obras preciosas para o Rio Grande do Norte e para o Brasil, tanto assinadas por eles quanto contidas em suas bibliotecas.

Limites e perímetro urbano de Nísia Floresta e na área urbana isolada



Em 2013 um amigo, funcionário da Prefeitura de Papari, mandou-me esse documento, o qual quis compartilhar, pois é  bastante útil no  aspecto histórico, permitindo o conhecimento de topônimos geográficos.

Helena Meirelles, uma história que nos impressiona...



Helena Pereira da Silva Meirelles nasceu na fazenda Jararaca, Mato Grosso do Sul, em 1924. Compositora, cantora e violeira. Aprendeu a tocar viola com seu tio Leôncio, em festas promovidas por seu avô paterno. A família reprovou rigorosamente a sua vontade de manusear instrumentos musicais. Alegavam que "não era coisa para moça de família". Naquele tempo lugar de mulher era na cozinha. Como escreveu Gilberto Freyre em sua obra “Sobrados e Mucambos”, “a mulher saia de casa três vezes: para casar, batizar e enterrar”. 


As mulheres, já desde meninas, cresciam ouvindo a sua sina -  ou sentença - que sua vida se resumiria às prendas domésticas, cozinha, fogão, do bordado e afins. Uma espécie de catequese machista legava à mulher nada mais que a casa. Quem quebrasse a sentença pagariam caro. O preço era a desonra e  difamação que já começava em casa, pelo pai. Ele precisava “defender a honra da família”. Desse modo, muitas mulheres foram condicionadas a uma vida muitas vezes reprovada pela moral social, a começar pelo próprio lar hostil e cheio de preconceitos e rótulos depreciativos descarregados sobre a mulher, desde pequenina. Já o menino era criado solto como um cachorro.



Nesse tempo nasceu a menina Helena. Já nasceu no formato de um violão - ou viola. Andar com um violão para cima e para baixo não pegava bem nem para um homem, pois passava a imagem de pessoa descompromissada, sem responsabilidade, “um vagabundo”, diriam. Imagine uma mulher dedilhando um violão! O pai reprovava o seu dom, não permitindo que ela chegasse nem perto de uma viola. Aos 9 anos de idade, aproveitando as saídas do pai, ela pegava a viola do tio (todos músicos) e ia para o mato “tocar para as onças e passarinhos”, como me disse uma vez que esteve em minha casa, no Mato Grosso do Sul (já famosa). O gosto pela música era tão grande que ela resolveu se casar  aos 17 anos de idade com um peão de boiadeiro, vizinho, e passou a residir próximo dos pais. Viu no casamento uma alternativa para manusear o instrumento com liberdade, longe da reprovação paterna. Helena amava os instrumentos de corda, e sentia na alma a necessidade de lidar diariamente com a música, como se ela saísse de suas entranhas, como se o próprio corpo fosse uma nota musical.


O casamento foi uma tragédia. O marido não queria que ela tocasse viola, e ela o tocava diariamente, após os deveres domésticos. Helena tentou sustentar o casamento e fez o possível para que o marido entendesse o seu gosto pela música, mas apanhou muito, chegando ao ponto de ser espancada e rotulada com os nomes mais baixos que se pode dirigir à uma mulher. Assustada, ela abandonou o lar, deixando para trás um filho nascido no meio do pasto, tendo em vista que o marido se ausentava durante meses, levando comitivas de gado para os sertões sul-matogrossenses. Na sua mente ela entendia que levar a criança para um mundo incerto era muito mais perigoso.


Sem ter a quem recorrer, sem familiares próximos,  sem maturidade e experiência alguma - praticamente uma adolescente - ela foi trabalhar em casas de família. Voltar à casa paterna era o mesmo que matar o seu talento musical. Como empregada doméstica, Helena Meirelles comeu o pão que o diabo amassou, sendo humilhada constantemente, tratada como no passado tratavam as escravas. Os “patrões” queriam pagá-la apenas com o almoço e a janta oferecidos diariamente, restos de roupas usadas, migalhas, sem contar que só em dizer que gostava de moda de viola, era execrada, como se gostasse de algo ilícito. Em algumas casas, ela dormia na cozinha, sobre um couro de boi para justamente acordar bem cedo, muitas vezes chutada, para deixar tudo pronto para os patrões.


Enquanto suas patroas queriam os seus serviços domésticos, os patrões queriam o seu corpo. Helena vivia numa constante resistência contra assediadores, sendo enxergada como um objeto sexual por muitos patrões perversos, tarados, que não respeitavam mulher alguma que não fosse suas filhas. Desestimulada, ela teve a ideia de buscar ambientes onde desse vazão ao seu talento musical. “Se no lar onde nasci não pude tocar, se no meu casamento não pude tocar, se em casa de família não posso tocar e sou explorada, resta-me tocar no mundo”. Certamente pensou assim. 


A viola estava  grudada nela como pele. Assim passou a trabalhar em estabelecimentos comerciais, como bares, restaurantes e pousadas de beira de estrada e ponto de peões de boiadeiro. Esses lugares se abriram para o seu talento musical. Helena causava perplexidade onde passava. Os donos dos estabelecimentos imploravam que ela se estabelecesse ali, mas ela era indomável. Cismada. Muitos homens iam às lágrimas ao vê-la solando a alma do Mato Grosso e os ares paraguaios tão comuns àquela região.


O tempo foi passando, ela perdeu totalmente o contato com a sua família, mas começou a ser conhecida por suas polcas, chamamés, rasqueados, fandangos , guarânias e outros ritmos sul-mato-grossenses. Constantemente era convidada para participar de festas e bailes no interior do Mato Grosso do Sul, na região do Pantanal, Campo Grande, mas a menina dos seus olhos era o Porto XV de Novembro, local onde ela reinou plenamente. O fato de se tratar de uma mulher musicista que se apresentava em qualquer lugar – algo extraordinário para aquela época - consistia numa verdadeira atração, pois não se via em todo o Mato Grosso uma mulher com tal comportamento.


Obviamente que não podemos ser hipócritas de negar a sua fama de biscate meramente pelo fato de viver no meio de homens e de bar em bar. Ela colecionava razões para assim ser rotulada: abandonou a casa dos pais, vivia com um violão debaixo do braço, tocava em casas noturnas e em qualquer biboca, casava e descasava quando queria, deixava alguns filhos com conhecidos, vivia no meio de homens. Não poderia ser diferente a uma sociedade hipócrita, que faz juízo de valor do portão para fora e tampa o sol com a peneira do portão para dentro, ignorando as “biscates de família”, filhas de gente rica, que se forem criticadas, processam na justiça. Helena era uma “ninguém” perto das biscates ricas. Os juízes da vida alheia não perguntam a Helena Meirelles os bastidores de sua vida e o que ela passou num tempo em que quase ninguém respeitava uma mulher que abraçasse o mundo sozinha.


Deixando de lado a parte que os hipócritas preferem enaltecer, a sua fama de artista impecável corria pelos sete cantos, levada de boca a boca pelos peões que arrastavam gado em todo o rincão do Mato Grosso do Sul. Não havia quem não falasse de Helena Meirelles por toda a Estrada Boiadeira. No Pouso Sapê, Pouso Guassu, Pouso Matinha e Porto XV de Novembro não faltavam os seus acordes. Todo mundo queria saber quem era aquela mulher singular. Centenas de pessoas se arranchavam nos lugares  onde ela se apresentava para vê-la tocar. 


Nesse ínterim, aos 21 anos, ela se junta novamente a outro homem. Sua vida conjugal sempre foi problemática devido a sua paixão pela música, que para ela era a prioridade. Bastava um marido fazer nariz torto para o seu violão, e o casamento estava rompido sem traumas. Isso a empurrou para um mundo condenável pela sociedade. Entre um lugar e outro, entre um marido e outro, Helena pariu vários filhos e os deixou nas casas de comadres e pessoas conhecidas, sempre dizendo que um dia os reivindicaria. 


A sociedade, como sabemos, mata e cura, apedreja e afaga. Mas como não somos juízes, e as vidas particulares são insignificantes diante  dos nossos legados, O legado monstruoso de Helena - hoje reconhecido internacionalmente - é superior à sua vida pessoal que, diga-se de passagem, precisou ser exatamente daquele jeito. Inegavelmente o seu lado de mulher musicista foi magnânimo. Basta.


Após trinta anos sem ver os seus familiares, já na casa dos 60 anos, na década de 70, Helena reencontrou a sua família. Em seguida ela mudou-se para Santo André, São Paulo, onde passou a residir com o marido que a acompanharia até a sua morte, e alguns dos filhos. Apesar de tudo, ela nunca perdeu o contato, mesmo em sua vida conturbada. Sempre procurou notícias através de pessoas conhecidas que passavam nos locais onde ela tocava. A exceção foi apenas uma filha, que ela deixou com uns amigos que desapareceram e ela nunca mais a viu. Helena realizava pequenas apresentações na casa da irmã e reunia outros violeiros. Incentivada por um sobrinho, ela gravou algumas de suas músicas em um pequeno estúdio que enviou-as em fitas K7 para rádios e gravadoras brasileiras.


Pouco depois foi convidada por Inezita Barroso (1925-2015) para uma apresentação em seu programa Mutirão, exibido pela Rádio da Universidade de São Paulo (USP). Participou, posteriormente, do programa Viola, minha Viola, da TV Cultura, também apresentado por Inezita. O seu modo de tocar era peculiar, diferenciando de tudo o que se conhecia sobre instrumentos de corda. Talvez a opressão sofrida convergiu toda para a sua potência musical, onde ela construía os seus acordes solitariamente, silenciosamente, e fez disso grandes composições, como quem recebe espinhos e dá flor.


O sucesso e o reconhecimento nacional veio depois que o mesmo sobrinho enviou algumas fitas para a revista norte-americana Guitar Player, dedicada a instrumentos populares de corda. A revista escolheu-a como instrumentista revelação de 1993, colocando sua palheta  num museu inglês, ao lado de nomes como o dos ingleses Eric Clapton (1945) e Jimmy Page (1944) e dos norte-americanos B.B King (1925-2015) e Carlos Santana (1947). Depois disso, o Brasil quis saber quem era Helena Meirelles. Em 1994, ela lança, pelo selo Eldorado, seu primeiro CD, intitulado Helena Meirelles, com destaque para dois chamamés compostos por ela, “Fiquei Sozinha” e “Quatro Horas da Madrugada”, e outras músicas de domínio público, como “Araponga” e “Chalana”, sucessos de Mário Zan (1920-2006), além de histórias e causos de sua vida, nas faixas finais do CD. 


Em 1996, lançaram "Flor da Guavira", com músicas instrumentais de sua autoria e algumas canções folclóricas mato-grossenses-do-sul. No ano seguinte, lança mais um CD, também pela Eldorado, intitulado "Raiz Pantaneira", com treze composições suas, e participação de Sérgio Reis (1940) na canção “Guiomar”, de Haroldo Lobo (1910-1965) e Wilson Batista (1913-1968). Em 1998, apresentou-se na EXPO Mercosul em Canela, Rio Grande do Sul, e em diversas unidades do Sesc pelo Brasil. Em 2002, lançou o seu quarto e último CD, "Helena Meirelles ao Vivo", gravado em Campo Grande, com destaque para “Flor Pantaneira”, de sua autoria, e participação de Zezinho Nantes, na gaita. 


Em 2004, é lançado o documentário "Helena Meirelles a Dama da Viola", com direção de Francisco de Paula (1962) e trilha-sonora da própria Helena. Ainda neste ano, participa do CD Os Bambas da Viola, da gravadora Kuarup, ao lado de Chico Lobo (1964), Roberto Corrêa (1957), Heraldo do Monte (1935), Almir Sater (1956) e Renato Andrade (1932-2005). 


Helena Meirelles alcançou o auge da fama, muitas vezes não conseguindo atender a todos os convites, pois já contava com 80 anos cujo corpo alquebrado não era mais aquele que não tinha hora para repouso, ocupado com sua viola que não se aquietava, atravessando madrugadas, sob os acalourados "sapucays" (gritos típicos dos ambientes com música ao vivo), tão comuns em todo o Mato Grosso do Sul, herança paraguaia.


Em 2005, Helena Meirelles não resistiu às complicações pulmonares, vindo a morrer em Campo Grande, aos 81 anos de idade. Em 2006,  é lançado o documentário Dona Helena em sua homenagem, com direção de Dainara Toffoli. Foram exatos 10 anos de fama absoluta, construída sobre o exercício constante, desde os 9 anos de idade, quando certa vez ela pegou o violão do tio e saiu correndo mata adentro para dedilhar magicamente tudo aquilo que havia aprendido "de olho". Certa vez um tio a flagrou em sua peripécia musical e ficou perplexo. Só de ver os tios e a peonada mato-grossense e paraguaia tocando, ela construiu o seu próprio concerto de corda.


A história de Helena Meirelles traduz a audácia de uma criança que escolheu a música como o alimento da alma. Um gesto de coragem extrema e grandes renúncias em nome do amor à arte. Já dolescente, ela quebrou as correntes do machismo  reinante que a impediam de voar. E voou. Voou alto. Como pássaro cantador foi a sua viola, sua companheira eterna. Sua decisão audaciosa custou-lhe caro - tomada num tempo cuja mulher se tornava facilmente mal vista por razões banais - e quem rompesse os tabus e preconceitos carregaria para sempre os piores rótulos, não importando se tivesse culpa ou não. A história de Helena é um exemplo claro de que, muitas vezes, os próprios pais empurram os seus filhos para a tragédia. Qual seria a desonra de se ter uma filha que tocava violão? Mas foi assim...


Quantas e quantas mulheres, por esse Brasil afora, foram instigadas a buscar outros rumos nem sempre apreciados pela sociedade, mas que foram os únicos encontrados numa sociedade machista, patriarcalista e  conservadora, que sentenciava o ser de cada pessoa. Ela não teve alternativa. Para onde corria surgiam lobos.


Independente de julgamentos e sentenças preconceituosas, Helena é um dos maiores exemplos da busca por um sonho. Para Helena, as piores agruras da vida não consistiram em obstáculos. Inegavelmente ela foi uma criança-prodígio. Se tivesse cedido às sentenças injustas dos juízes populares, jamais teria sido esse patrimônio da música brasileira. Jamais teria dado ao Brasil e, em especial, ao estado do Mato Grosso do Sul a honra de ter levado o nome desse estado para o mundo. Quem, mais do que ela, projetou o nome de sua cidade para os quatro cantos do Mundo? 


Hoje Helena é objeto de estudo dos mais respeitáveis músicos, e também é tema de estudos acadêmicos de importantes universidades do Brasil. É citada por renomados intelectuais das mais diversas áreas. Hoje o seu nome estampa até mesmo um museu, reservando-lhe um espaço muito especial e digno. Foi uma das maiores ideias do município onde ela desabrochou e reinou. Helena Meirelles é um dos grandes orgulhos do estado do Mato Grosso do Sul. (Texto inspirado em publicações do Museu Helena Meirelles).

sexta-feira, 15 de julho de 2022

 

Sanderson Negreiros

INVISÍVEIS VISÍVEIS...

Ano que vem completará meio século da primeira edição de “Aspectos geopolíticos e antropológicos da História do Rio Grande do Norte”, uma das obras de Tarcísio Medeiros, insígne escritor norte-rio-grandense. Li-a em 1993, então aluno na UFRN, na aula de Cultura Brasileira, por orientação do também ilustre potiguar Sanderson Negreiros. Sanderson tinha um modo interessante de construir o conhecimento com seus alunos. Lembro-me que certa vez, em sala de aula, quando ele citava Dorian Gray Caldas, disse “querem ir em sua casa, conhecê-lo”. E lá fomos. Assim conheci outro renomado mito da terra de Câmara Cascudo. Aquilo me marcou.

Outra vez eu havia faltado na semana anterior. NÃO EXISTIA WHATSAPP.  Quando voltei, soube que teríamos que ler alguns livros para, depois, discutí-los. A dinâmica seria assim: a pessoa que leu discorreria sobre a obra. Sanderson Negreiros, o professor, faria possíveis observações, e o restante da turma, que não havia lido aquele livro, ouviria a explanação fazendo perguntas e outras abordagens. Assim, todos saberiam sobre todos os livros.

Como eu havia faltado, sobrou para mim “História da Alimentação no Brasil”, de Câmara Cascudo. Ninguém quis ficar com ele, pois é tão grande que algumas editoras o publicam em dois volumes. No caso, li todo num livro só. As obras eram de Sanderson. Li como uma criança degustando o seu sorvete preferido. É simplesmente fascinante e foi um dos livros que mais me marcaram.

Essas foram duas passagens marcantes com o professor Sanderson, na UFRN...

Eis que chega em minhas mãos, ontem, a obra “Aspectos geopolíticos e antropológicos da História do Rio Grande do Norte”, de autoria de Tarcísio Medeiros. Até aí, nada demais além da importante obra. Mas ela continha esses invisíveis que a mim, pelo menos, impressionam e que acho digno dar-lhes  visibilidade. O livro, apesar de carregar 49 anos de idade, está intacto, mas o que mais chamou a minha atenção foi um cartão onde está datilografada uma mensagem escrita pelo autor, dirigida a Sanderson Negreiros, além da dedicatória.

O texto traz informações preciosas em que é possível viajar até a Redinha e ver esses dois mitos sentados no alpendre de uma espaçosa varanda jogando conversa fora. Dentre elas as ideias que ele findou escrevendo nessa obra. O que me encanta é a humildade. Ele fala do livro como se não fosse o tesouro que é. Dá impressão que é um desses livros que você lê, lê e não há o novo, o inédito, o fascinante... só mesmices.

O cartão foi escrito no dia 22 de maio de 1973. Tarcísio tinha 55 anos de idade e Sanderson 34. 21 anos de experiência a mais carregava Tarcísio, e ele acolheu sugestões do jovem Sanderson. Humildade e respeito a um jovem que com certeza muito cedo se revelou genial.

Ele assina o cartão e com a mesma caneta Bic diz “N.B. Releve os erros tipográficos”.Quem daria importância para “erros tipográfico” diante daquele pergaminho de conhecimentos?

O que está ali que foi sugestão de Sanderson? Quais as lacunas dos “grandes mestres” citadas por Tarcísio? São esses invisíveis que nuterm a minha imaginação... Fico pensando o que conversaram esses notáveis.

O clipe estava se desmanchando; deixou nódoas no cartão e na página. Senti-me como os egiptólogos descobrindo câmara em pirâmide ao retirar a peça metálica e imprestável, ali colocada por Tarcísio e retirada por mim. Sanderson foi tão bom que deicou para alguém esse presente.

Tarcísio partiu em  2003, aos 85 anos. Sandersou se encantou em 2017, aos 78 anos. Ambos deixaram obras preciosas para o Rio Grande do Norte e para o Brasil, tanto assinadas por eles quanto contidas em suas bibliotecas.