ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Rocas Quintas, a verdadeira história.

Para quem gosta de ler histórias de figuras populares, o Rio Grande do Norte é um rio perene, desaguador de impressionantes personalidades que ainda 'agoam' o imaginário popular. Vai da embaixatriz que tinha carta-branca para entrar no gabinete de qualquer governador - e ser bem recebida - a um vendedor que entregava urubu tratado como sendo galeto. A venda era exclusiva aos norte-americanos dos tempos da guerra... Mas dentre os mais excêntricos personagens, temos "Rocas Quintas", cuja história segue abaixo. Resolvi transcrevê-la porque um autor norte-rio-grandense publicou um livro apresentando outra pessoa como sendo "Rocas Quintas", portanto a bem da verdade segue a verdadeira história de "Rocas Quintas", contada nada menos por um especialista no estudo dos nossos personagens populares...



ROCAS QUINTAS

(Por Gutenberg Costa – Pedagogo, Bacharel em Direito, Escritor e Pesquisador).        

O memorialista é aquele que com certa idade conta o vivenciou de fatos e do seu conhecimento com pessoas e lugares. Descreve o seu passado e o repassa acompanhado de sérios testemunhos e fontes fidedignas. Sabe-se que quem pesquisa história necessariamente é devorador de livros, cliente voraz de livrarias e ‘rato’ de sebos. Já os ficcionistas ficam isentos de veracidade histórica em suas criações, como nos seus contos e romances. Apenas alguns desses, retratam os seus personagens, que aos olhos dos bons observadores, logo enxergam pessoas existentes em seus tempos. Mesmos que mudem os seus nomes ou situações. Assim o fez nosso criativo Nilo Emerenciano, em muitos de seus contos.

           Dentro da paisagem urbana de Natal dos anos 70 a 90, do século passado, existiu de fato uma mulher prostituta e muito famosa conhecida por seu apelido – Rocas Quintas. Tímida, não aceitava ser entrevistada, mas aos poucos me concedeu curtos depoimentos em diversos momentos na então calçada do finado Café São Luiz, centro da Cidade Alta, no início dos anos 90, (1991): “Meu nome é Maria Edite. Estudei pouco na infância. Sempre fui uma menina traquina. Sempre gostei de fazer sexo desde mocinha. Eu quando era mais nova fazia ponto lá na Rua Quinze de Novembro na Ribeira. Numa noite atendia dezenas de homens nos quartos daqueles cabarés. Era uma cama velha, uma bacia de ágata ao lado, jarra d’água e sabonete para o asseio do casal. Era tudo na pressa e saia um e já se entrava com outro… homem de todo tipo, de cachaceiro a valentão, de jovem a velho… Hoje eu estou gorda e velha. Peço ajuda nas ruas, pois ando muito doente, meu senhor”. E mostrou-me na ocasião numa manhã de sol forte, meio dia, para comprovar seu pedido, uma parte de uma caixa de antibiótico onde se via o nome do tal remédio…

            Alguns até diziam ser o seu marketing de pedinte ambulante. Na ocasião, a famosa Rocas Quintas, já aparentava uns 50 anos. Cabelos pretos com algumas mechas em branco. Desdentada, mas risonha às vezes. Obesa, como diziam ‘com barriga quebrada’. Branca e semi analfabeta, pernas grossas e pescoço bem curto. Olhos castanhos claros, diferentemente daquela romanceada Capitu machadiana. Estava calçando sandálias havaianas já gastas de muitas andanças e peregrinações, vestindo saia vermelha já desbotada e uma blusa não tão branca, como deveria ter sido no passado. Saudade do milagroso ‘Omo total’ das propagandas televisivas.

           Seu apelido apareceu primeiramente na história escrita, através do premiado contista e memorialista, Nilo Emerenciano, em seu livro de Contos – ‘Aconteceu na Quinta Delegacia’, (1982, FJA). Embora ele não diga o seu livro foi inspirado em alguns personagens populares que o autor conheceu de perto nas ruas de Natal. O grande amigo Nilo, como dezenas de outros natalenses, conheceu a verdadeira Rocas Quintas, que era também natalense. Segundo a mesma: tinha dezenas de irmãos e seu pai vendia peixes e também matava porcos para sustentar sua família. Ela, solteirona, morava com os pais na região entre os bairros de Petrópolis e Praia do Meio. Família pobre, mas trabalhadora como muitas outras que habitavam os arredores da referida praia. No citado livro de Nilo, seu apelido dá título a um conto e mostra-nos uma quadra cantada popularmente pelos mais jovens dos anos 70/90, os quais também a apelidava de – ‘Corre Campo’ e ‘Errepê’, referências à cobra que não para de correr e ao antigo fusquinha da polícia, que batia o mundo todo em Natal:

“Rocas Quintas, Rocas Quintas,

Todo dia pega trinta,

Trinta homens todo dia,

“É a conta de Maria…”.

             Em 1999, participando do concurso literário do então Quarto centenário da Cidade do Natal, promovido pela secretária especial para as festividades, apresentei meu projeto, que tratava de muitos tipos populares que conheci nas ruas das Rocas, das Quintas, passando meu Alecrim, onde nasci e vivi grande parte de minha vida. O referido projeto foi aprovado e eu ainda exigi que o livro fosse numerado de 01 a 400, em homenagem a minha cidade. E lá, pela segunda vez, a prostituta andante apelida de Rocas Quintas está figurando numa crônica, nas páginas 146/148. Sem sua fotografia, tão programada com o amigo Canindé Soares, pois quando chegara em sua moto, ela já havia debandado da Cidade Alta para as Quintas, atrás de seus possíveis pretendentes sexuais… Quando lancei o meu citado livro a procurei por semanas e não mais a encontrei pelas ruas. Teria partido sem destino em busca de novos amores em outras paragens? Ou como diz o povo: virou finada na terra dos pés juntos?

domingo, 4 de outubro de 2020

O Medalhão de Nísia Floresta - 1911

Nísia Floresta aos 60 anos de idade

 No dia 2 de abril de 1911 o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, sob a presidência do Dr. Desembargador Vicente de Lemos, foi convidado, mediante um ofício enviado pelo Grêmio Literário “Augusto Severo”, para prestigiar a solenidade de inauguração do medalhão de Nísia Floresta no jardim da praça “Augusto Severo” no dia 19 de março de 1911. 

 
 
Henrique Castriciano, apaixonado pela história de Nísia Floresta, mandou fazer essa obra em Paris, pelas mãos dos artistas Corbiniano Vilaça e Edmond Badoche, e sensibilizou o governador Alberto Maranhão para edificar um monumento nos jardins da praça Augusto Severo, onde a bela peça foi afixada. À ocasião o presidente do IHGRN nomeou os senhores Pedro Soares, Luiz Lyra e Nestor Lima para representá-lo no evento. Na reunião do dia 16 de abril de 1911, inclusive o sr. Luiz Lyra declarou que a comissão nomeada para a referida inauguração cumpriu o dever recebido. 
 

Esse evento foi muito divulgado. Muitos foram os convidados. Nesse tempo o município de "Vila de Papari" tinha o Coronel José Joaquim Carvalho de Araújo como Presidente da Intendência. Ele era muito ligado à família Maranhão, e sempre esteve a serviço dessa Oligarquia. Não posso afirmar, mas é muito provável que ele tenha prestigiado o evento, já que a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta nasceu em Papari, levando em conta - também - o fato de ele ter prestigiado a construção e inauguração do antigo monumento em homenagem a Nísia Floresta, erigido em 1909, quando Alberto Maranhão - amigo pessoal dele - esteve em Papary (antigo nome do município que se chamaria Nísia Floresta a partir de 1948). 
 
Esse monumento não demorou muito, pois vândalos roubaram o medalhão, e como não o encontraram mais, mandaram derrubar a base de alvenaria que o sustentava. Esse fato lastimável ocorreu no dia 25 de outubro de 1949, ou seja, 38 anos após a sua inauguração.
Atualmente esse hábito de vandalizar monumentos para retirar o bronze é prática de alguns drogados, que o fazem para vender e sustentar o vício. Mas a realidade de 1911 era muito diferente. 
 

Esse acontecimento - na minha opinião - pode ter sido uma forma de externar preconceito contra Nísia Floresta. Creio que foi coisa encomendada por desafetos instigados por velhos preconceitos. Coincidentemente, nesse tempo, uma inimiga gratuita, que Nísia nunca conheceu pessoalmente - pois nasceu 29 anos depois dela -, se encarregava de frequentar todos os ambientes natalenses que promovessem homenagens a Nísia Floresta, e entregava uma imensa carta denegrindo-a. 
 
Ela passou grande parte de sua vida nessa curiosa "missão". Particularmente não entendo o objetivo dessa personagem que atendia pelo nome de Isabel Gondim. Defendo a tese de que o vandalismo se deu por preconceito porque trinta anos depois o medalhão foi encontrado intacto, alguém reconheceu a peça e a enviou ao Instituto Histórico e Geográfico do RN, onde se encontra. Ou seja, nunca houve interesse em "desmanchar" a peça para aproveitar o bronze, como hoje fazem aos fios de eletricidade que contém cobre. O único interesse foi destruir o monumento, ou seja, 'desomenagear' Nísia Floresta. Como se isso fosse possível.
 
As imagens aqui postadas documentam a construção do referido monumento, em 1911.
 
Mas, retomando o assunto do medalhão com a efígie de Nísia Floresta e também da transcrição de sua assinatura, tenho uma dúvida intrigante. O referido medalhão se encontra atualmente no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. A peça já estava ali quando aconteceu a chegada dos despojos de Nísia Floresta, em 1954. Digo intrigante porque essa mesma peça pode ser vista numa fotografia feita no Centro Norte-Rio-Grandense, em 1954, exatamente para as homenagens desse traslado. A efígie foi feita em 1851, na França. Seriam duas peças iguais? 
 
Medalhão com efígie e assinatura de Nísia Floresta, feito em Paris, em 1851. Hoje pode ser visto no Instituto Histórico e Geográfico de Nísia Floresta, de´pois do vandalismo feito ao monumento onde a peça encontrava-se instalada desde 1911, depois reencontrada num ferro velho e entregue ao IHGRN.

 
Em 1992, questionei o Centro Norte-Rio-Grandense sobre o que eles tinha de acervo sobre Nísia. A resposta foi "nada". Perguntei da efígie e e responderam que havia desaparecido há muitas décadas. Teria sido furtada por colecionador de antiguidades raras? Teria sido levada por algum admirador de Nísia Floresta? Onde foi parar o suposto segundo medalhão?

Como pode ser constatado na fotografia feita no Centro-Norte-Riograndense, em 1954, o medalhão, hoje desaparecido, se encontra sobre a mesinha de centro. Veja, abaixo, o zoom na imagem.


Os folclóricos mateiros - A Academia Brasileira de Mateiros...


OS FOLCLÓRICOS MATEIROS...
ACADEMIA BRASILEIRA DE MATEIROS
 
A maioria das pessoas entra numa floresta e enxerga mato, e por mato se entende grandes árvores, arbustos, cipós, garrancheiras e trepadeiras. A nossa cultura não nos permite ir além. Um "mateiro" não vê mato, vê uma cerejeira, um mogno, um pau-ferro, um cedro, uma copaibeira, uma quixabeira, enfim. Ele atribui valor a cada espécie que se descortina diante dele. Conhece a qualidade da madeira, a época da florada, frutificação, e muitos até mesmo estimam a idade das árvores. Os grandes mateiros, quais "ervateiros", identificam até mesmo as suas propriedades medicinais. Quando adoentados, entram ali e colhem o seu "remédio", ou melhor, as suas "mezinhas". O que para nós é mato, para eles é erva medicinal. Sua cultura permite-lhes ver a floresta de forma totalmente diferente da maioria de nós. Uma vez entrei num trecho de razoável mata, acompanhado por um mateiro, em Nísia Floresta. Foi uma das mais impressionantes experiências. Ele mostrava uma aparente garrancheira e dizia "isso aí derruba qualquer bicheira no gado"... "essa resina desse tronco mata caganeira"... "esse cupinzeiro acolá é o melhor de todos para cansaço em criança"... "é da bosta desse passarinho que sai as sementes certas pra compressa, quando o peso desce pro saco"... "o chá dessa formiga mata qualquer doença no zói"... "isso aqui é cipó de sapo, guenta feixe do tamanho que for, faz corda boa"... "olha ali os cachorro d'água, os danado adora raiz de cajueiro"... "o cabra com morróida só passa uma vez isso aqui no "c.", pois é tiro e queda"... "aquilo acolá é venenoso"... O meu encantamento aumentava conforme adentrava a mata. Não havia vegetal que ele não apontasse uma propriedade curativa. Estávamos diante do paraíso da saúde. Nunca me esqueci dessa experiência. Desse dia em diante - eu que nunca troquei pessoas "insignificantes" por nenhum letrado - redobrei o meu respeito pelos seres humanos de verdade - como João - até porque para mim ele - tão desimportante em Nísia Floresta - era uma das pessoas mais importantes que conheci. É certo que esse alfarrábio sabidoso vem lá dos detrases, bebidos nas fontes dos povos indígenas. Mas é privilégio de poucos. Mateiro é sacerdote por excelência. Creio que deveria existir uma Academia Brasileira de Mateiros. Pode ter certeza que lá seriam servidos os melhores chás, as melhores "cabumbas", os mais deliciosos "liguentos", rapaduras doces como o próprio ambiente, e o universo de contações de histórias não teria fim. Lá não haveria velhos bufões, esparramados em suas empáfias, sentindo-se os reis das cocadas pretas atrás de homenagens, pois todos já seriam homenageados pelo simples existir naquela academia, pois ela seria na mata, na essência da vida... João, um grande abraço! Essa é pra você!

 

sábado, 3 de outubro de 2020

O padre que matou o bispo

Padre Osana de Siqueira e Silva (à esquerda), ao lado de Dom Expedito Lopes - década de 50
 

O padre assassino - Os tiros que não saíram pela culatra

No dia primeiro de julho de 1957, por volta das 18 horas e 30 minutos, três sons de disparos de revólver ecoaram no Palácio Episcopal, em Garanhuns, no agreste pernambucano. João, empregado da casa, ao ouvir o barulho, correu à porta e deparou-se com o bispo, Dom Francisco Expedito Lopes, caído ao chão, ensanguentado, moribundo. Imediatamente pediu-lhe que chamassem o Monsenhor José de Anchieta Callou. Soube-se naquele momento, pelo próprio Dom Expedito, o nome daquele que o alvejou: Padre Hosana de Siqueira e Silva, seu subordinado. O motivo seria a denúncia que chegara ao bispo de que Padre Hosana estaria tendo um caso amoroso com Maria José Martins, sua prima e empregada doméstica. Dom Expedito Lopes faleceu depois de oito horas de intensa agonia. Padre Hosana, a princípio, refugiou-se no Mosteiro de São Bento. Como menciona o autor, “o crime, com suas interpretações, deixou marcas”. É a partir dessas (re)interpretações, das marcas do dizer, lembrar e narrar o crime, que ele constrói sua obra.Igor Alves Moreira é licenciado em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Neste livro, fruto de sua dissertação de mestrado defendida em 20084, ele procura explorar e faz isso com maestria, como o crime que sentenciou Dom Expedito à morte e Padre Hosana ao julgamento dos 1Recebido em: 21de julho de 2016. Aceito para publicação em: 30 de setembro de 2016.2Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGH-UFRN). Bolsista CAPES. Editor da Revista Espacialidades e membro do grupo de estudos Cartografias Contemporâneas: história, espaços, produção de subjetividades e práticas institucionais (UFRN). Email: cidmoraissilveira@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5434753825771874.3MOREIRA, Igor Alves. Do bispo morto ao padre matador:Dom Expedito e Padre Hosana nas construções da memória (1957-2004). Sobral: Edições Ecoa. Sobral. 2015. p. 14.4A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFC e possui o mesmo título do livro aqui analisado. O trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos. Em PerspectivaRevista discente do PPGH/UFCISSN: 2448-0789 Resenha Revista Em Perspectiva [On Line]. 2016, v. 2, n. 1.Página215homens, foi lembrado e (re)contado através das construções do lembrar. Apesar de admitir que a história é uma reconstrução da memória, Igor viola as memórias e gesta uma história intrigante5, possibilitando assim a construção de seu objeto, um acontecimento singular6.O interesse do autor é perceber como os fatos relativos ao crime foram contatos e recontados. Para isso, ele sustenta que há múltiplas variantes sobre o crime do Padre Hosana, agenciadas e permeadas de intencionalidades. No decorrer do livro, Igor mostra que existe uma tentativa de produção de um projeto intelectual, centrado na feitura da biografia de Dom Expedito, por parte da Diocese de Garanhuns, para empreender um plano de canonização do bispo. Da mesma forma ocorreu com a figura de Padre Hosana, que também teve sua biografia contada, em forma de livros ou narrativas orais, mas que ambas possuíam uma intenção clara: idealizar e inocentar os respectivos biografados das acusações que lhes foram direcionadas. Para isso, foi caro ao autor expor os conflitos das várias formas de como o crime foi contado, notadamente nos livros e nos depoimentos orais que coletou durante a pesquisa. Assim, ele admite que seu objeto de estudo encontra-se intimamente ligado a uma problemática da história social da memória, onde“o presente é sempre tocado e afetado pelo passado. E vice-versa. Uma relação pautada por contradições, tensões e reconstruções. Uma relação que abarca a lembrança e o esquecimento”. Assim, seu objeto de pesquisa é um “ausente que age”.O livro encontra-se dividido em três capítulos. O primeiro deles, Um bispo assassinado!, tem por objetivo analisar os discursos que mostraram Dom Expedito Lopes como “santo” e “mártir” da Igreja e, do outro lado, Padre Hosana como vilão e assassino. O autor problematiza aqui como os discursos, textos e falas produziram uma suposta santidade do bispo, onde “são textos dados ao público para convencer, para homogeneizar opiniões e 5Sobre a relação entre o historiador e o trato com as memórias, ver ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Violar memórias e gestar a História: Abordagem a uma problemática fecunda que torna a tarefa do historiador um “parto difícil”. Clio-Série História do Nordeste, n. 15. 1994.6 Paul Veyne entende o acontecimento como próprio do saber histórico, onde a partir dele a história poderia ser constituída. Para Veyne, o acontecimento é singular, uma conjunção de fatos que não se repetirão. Para mais informações ver VEYNE, Paul. Como se escreve a história:Foucault revoluciona a história. 4ª Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. 7MOREIRA, Igor Alves. Op. cit., p.15.8DOSSE, François. História e Ciências Sociais.Tradução de Fernanda Abreu. Bauru:EDUSC. 2004. p. 184. Em Perspectiva Revista discente do PPGH/UFCISSN: 2448-0789ResenhaRevista Em Perspectiva [On Line]. 2016, v. 2, n. 1.Página216diluí-las sobre o réu e a vítima”9. Ainda no primeiro capítulo, ele esclarece como o conceito deperdão foi usado nos discursos, notadamente o perdão oferecido ao Padre Hosana pelo bispo nas horas de dor, com a finalidade de compreender e pontuar o possível martírio de Dom Expedito. Aqui ele mostra como o discurso do martírio foi apresentado à população de Garanhuns pelos “homens e mulheres das letras”, ou seja, por aqueles que institucionalizaram essas práticas discursivas.O assassinato de Dom Expedito Lopes transformou-se em cartas, matérias de jornais e rádios, em livros, em literatura de cordel,em temas de canções, em conversas dos moradores mais antigos. Para conforto e desconforto de suas personagens, e da Diocese de Garanhuns, nesses registros do passado no presente, verifica-se a existência de discursos e silêncio em disputa. Nesses registros, vários conceitos e situações são abordados. No caso do assassinato de Dom Expedito, verifica-se ainda que ele foi um “exemplo” a ser seguido pela posteridade. O seu “exemplo”, no entanto, também aponta tramas e incoerências. Para outro punhado de pessoas, Padre Hosana foi um “bom exemplo”. Ambos, contudo, foram protagonistas de um crime. No segundo capítulo, A Diocese de Garanhuns e o tribunal para a causa da beatificação e canonização, o propósito é compreender e verificar os insumos e procedimentosinstitucionais da Igreja Católica no tocante ao processo de beatificação e canonização de uma pessoa. Há aqui uma preocupação do autor em analisar como a Diocese de Garanhuns produziu e divulgou ao público uma biografia linear e harmoniosa do bispo, bem como a atuação dos jornais em socializar uma narrativa em prol da beatificação e canonização. É discutido também os meios utilizados para sagrar e desenvolver uma memória específica e homogênea de Dom Expedito.Como fruto de uma seleção, a biografia de DomExpedito é composta pelo dito e não-dito, o autorizado e não-autorizado, com intenções específicas e claras: dar um santo aos demais diocesanos. Uma vontade e/ou capricho singular do grupo que é estendido aos demais de forma imperativa. Dar a ele a “verdade”: que o Brasil tem um santo, ainda não reconhecido oficialmente 9MOREIRA, Igor Alves. Op. cit.,p.21.10Ibidem. p.75. Em Perspectiva Revista discente do PPGH/UFCISSN: 2448-0789ResenhaRevista Em Perspectiva [On Line]. 2016, v. 2, n. 1.Página217pelo Vaticano. É uma biografia apresentada na compreensão de que toda sua vida foi exemplar. É linear e desprovida de provocações e conflitos.11No terceiro e último capítulo, Um padre assassino?, é debatido pelo autor as várias interpretações e narrativas que idealizaram Padre Hosana de Siqueira e Silva. Existe aqui, e é trabalhado através de um dos tópicos do capítulo, literalmente, uma “guerra de livros”, uma disputa de escrita, pela letra e a palavra. O autor traz para a discussão as várias obras específicas, algumas com notadamente uma pretensão biográfica, que tratam sobre o crime, onde se percebe claramente quem está do lado do bispo e do lado do padre. Igor reitera que no trato com asnarrativas sobre o crime, orais e escritas, foi possível perceber subversões e contradições, onde a movimentação do dito e não dito regem os sentidos do passado e, consequentemente, o texto do autor.Assim, a biografia é, tanto para os que defendem o bispo, quanto para os que preservam o padre, um instrumento de acusação e defesa. O passado de ambos explica o presente, justifica o crime. São os usos do passado. O passado de um explica sua santidade, confirma o sentido de sua morte, o passado do outro explica o crime. É uma biografia linear, com causa e consequência. Se não fosse o crime, nenhum precisaria de biografia, aqui posta como prova. O passado vale como argumento para provar a inocência de cada um.12O que conseguimos perceber é que o “mártir” Dom Expedito não permanece sem o seu oposto, o “vilão”, Padre Hosana. Um precisa do outro para existir. Nas palavras do autor, “nesses fragmentos do passado, os dois estão sempre juntos. Um alimenta o outro. Em meio aos dizeres e às contestações sobre ambos, eles se complementam, se necessitam”13.A obra em questão foi produzida através de uma grande variedade de fontes e um trabalho primoroso de pesquisa. O autor utilizou-se de um extenso referencial teórico e metodológico para dar conta da natureza de suas fontes: jornais, revistas, livros, biografias, atas de abertura e instalação do tribunal para a beatificação e canonização de Dom Expedito 11Ibidem. p.119.12Ibidem. p.164.13Ibidem. p.172. Em PerspectivaRevista discente do PPGH/UFCISSN: 2448-0789ResenhaRevista Em Perspectiva [On Line]. 2016, v. 2, n. 1.Página218Lopes; livros de cânticos, orações, textos e discursos proferidos nas missas, fotografias, registros de programas de rádio e TV, além dos registros das narrativas orais, totalizando um total de 42 entrevistas.A obra de Igor Alves Moreira consiste em um trabalho de um historiador notadamente preocupado com os usos e abusos do passado pelos sujeitos no presente, contribuindo para um olhar problematizador na relação entre o aqui (presente) e o ali (passado), dentro de uma perspectiva da história social da memória.Os que escrevem sobre esse crime se veem como guardiões dessa história, como guarda-costas do passado. Cada um puxa a “verdade” para si, constituída com base em iscas guardadas nas empoeiradas prateleiras de arquivos pessoais e institucionais de Pernambuco e, ainda, nas narrativas orais dos moradores de Garanhuns e Correntes. Este trabalho de ambula na oposição de uma ideia homogênea, uniforme e harmoniosa da relação entre presente e passado, e notadamente da concepção de história enquanto uma procissão de sujeitos comportados e não transgressores frente aos acontecimentos, de uma história enquanto exemplo a ser seguido, como ciência mestra da vida. Pelo contrário, no confronto das fontes, o autor verificou e analisou incoerências e incompletudes, leituras e posicionamentos diversos sobre as formas de dizer o crime, feitios narrativos extremamente divergentes. Porém, ele é enfático em dizer que o foco de seu trabalho não é o crime, e sim a forma como ele foi narrado nas mais diversas fontes em que analisou durante a produção da obra. Em suas palavras, “longe estou de querer saber sobre o desenrolar do crime. Preocupado estou em analisar como ele foi contado e recontado na letra e na fala”. E conseguiu.

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IRONIA DO DESTINO - 40 ANOS DEPOIS O PADRE ASSASSINO FOI ASSASSINADO

Ele foi encontrado morto a pauladas em seu sítio, em Correntes, Pernambuco, no dia 7 de novembro de 1997.  Até hoje não se sabe a causa. Ele era metido em várias confusões relacionadas à propriedades. Quando João paulo II esteve no Brasil, ele tentou marcar um momento com ele para ver a possibilidade de pedir perdão oficialmente, mas o Vaticano fechou as portas para ele. Seu crime teve repercussão mundial. Foi a primeira vez na história da Igreja Católica que um padre matou um bispo.

Padre Osana chegando à sede de seu sítio

FONTES:

Em PerspectivaRevista discente do PPGH/UFCISSN: 2448-0789 ResenhaRevista Em Perspectiva [On Line]. 2016, v. 2, n. 1.Página 214

Cid Morais Silveira2MOREIRA, Igor Alves. Do bispo morto ao padre matador: Dom Expedito e Padre Hosana nas construções da memória (1957-2004). Sobral: Edições Ecoa,2015.***

Bibliografia14Ibidem. p.173.15Ibidem. p.174. Em PerspectivaRevista discente do PPGH/UFCISSN: 2448-0789ResenhaRevista Em Perspectiva [On Line]. 2016, v. 2, n. 1.Página219ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Violar memórias e gestar a História: Abordagem a uma problemática fecunda que torna a tarefa do historiador um “parto difícil”. Clio-Série História do Nordeste, n. 15. 1994.DOSSE, François. História e Ciências Sociais.Tradução de Fernanda Abreu. Bauru: EDUSC,2004.MOREIRA, Igor Alves. Do bispo morto ao padre matador:Dom Expedito e Padre Hosana nas construções da memória (1957-2004).Sobral: Edições Ecoa, 2015.VEYNE, Paul. Como se escreve a história:Foucault revoluciona a história. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília