ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

domingo, 31 de janeiro de 2021

Nísia Floresta nunca defendeu o aborto, como se vê no blog "Meu Lado Poético"


NOTA DE ESCLARECIMENTO: AS IMAGENS ABAIXO ESTÃO MANCHADAS PORQUE PUBLICARAM UMA IMAGEM DE ISABEL GONDIM COMO SE FOSSE NÍSIA FLORESTA, PORTANTO, PARA NÃO COLABORAR COM O ERRO, PRECISEI MANCHAR.

NÍSIA FLORESTA NUNCA DEFENDEU O ABORTO...

Sempre que posso, perquiro os sites, lendo matérias e tudo mais que trata sobre Nísia Floresta fora do estado do Rio Grande do Norte. Faço isso para, justamente, corrigir um erro que se repete eventualmente, e que o leitor, se potiguar, já percebeu. As duas fotografias abaixo, publicadas no blog "Meu lado Poético" não é de Nísia Floresta, mas de Isabel Gondim. Infelizmente o erro foi se proliferando e tomou essa proporção, portanto, sinto-me no dever de entrar em contato com os autores dos equívocos, sugerindo a correção.
Normalmente mando um link do meu blog com uma compilação de imagens de Nísia Floresta, organizadas justamente para tais situações, ali mesmo a pessoa escolhe uma imagem e a coloca em sua publicação. Na maioria dos casos recebo o retorno e constato que o equívoco foi corrigido. Não posso fazer disso uma doutrinação, até porque nem tenho esse tempo todo, mas o faço na medida do possível.
 

 
 
Hoje, diferente dessa observação, trago uma reflexão que vai além. Alguém publicou no blog citado a fotografia de Isabel Gondim como sendo de Nísia Floresta e ainda trouxe uma informação absurda. Escreveram que Nísia Floresta defendeu o aborto. A matéria não tem data nem referências bibliográficas, portanto é impossível saber de onde ela tirou (ou inventou) isso. Nunca li isso em lugar algum. Nenhum estudioso da obra de Nísia Floresta tratou esse assunto porque sabe que é absolutamente impossível uma mulher extremamente conservadora como Nísia Floresta - digo conservadora no aspecto dos valores cristãos que ela defendeu escancaradamente - além de seu moralismo - também ser defensora do aborto. É antagônico. 
 

 
Particularmente, como pessoa que estudo e escrevo sobre Nísia Floresta desde 1992, sempre fiz o correto, seja quando falo sobre Nísia Floresta a uma plateia, seja quando escrevo sobre ela. De uns tempos para cá, depois que publicaram um vídeo-documentário com a imagem errada, o erro vem se intensificando, portanto passei a tratar o assunto com mais intensidade para justamente corrigi-lo. Trabalhar para corrigir isso é tarefa de todas as pessoas que estudam e divulgam essa intelectual. Não custa nada.
 
Mas retomando o assunto, Nísia Floresta, embora parece contraditório, era conservadora em muitas questões. Basta ler os seus livros. Ela foi uma mulher à frente de seu tempo em outros aspectos, como se sabe, mas jamais na defesa do aborto. Pelo contrário, ela defendia a vida, a família e afins. Lendo Nísia Floresta você encontra uma mulher católica, que conhece com profundidade a Bíblia sagrada, os santos, os fatos religiosos universais, enfim ela tinha um vasto conhecimento. A diferença é que mesmo sendo assim, ela não poupava críticas aos padres, bispos, cardeais e até ao papa no aspecto de suas vidas opulentas, pautadas no alto luxo, na gula etc. Ela não favorecia nas freiras a clausura, pois entendia que toda freira deveria ser uma Irmã Dulce, ou seja, precisava estar nas ruas, levando o evangelho, curando feridas físicas e psicológicas, levando o alimento para os que tinham fome física. Diferente de ficar presa entre quatro paredes, orando. Ela própria se tornou enfermeira durante a epidemia de gripe espanhola que assolou o Rio de Janeiro. Arriscou a sua própria vida, pois milhares morreram.
 
Sei que o direito ao que se faz ao corpo feminino é enxergado de diversas formas, inclusive pelas próprias feministas, afinal, atualmente o feminismo tem correntes de pensamento diferentes, assim como religiões, partidos políticos etc. Mas afirmar que Nísia Floresta defendia o aborto é um grande equívoco e totalmente incoerente com tudo o que ela escreveu.
 
Uma sugestão que deixo aos professores e pessoas que escrevem sobre Nísia Floresta, ou dão entrevistas, palestras etc, é que abordem o assunto desse equívoco com as pessoas que lhe procuraram para tal finalidade. Se possível, sugira a imagem correta, enviando-a pelo celular. Com certeza vocês também estarão ajudando a corrigir o equívoco. Faço essa observação porque já vi textos, entrevistas etc com pessoas que estudam sobre Nísia Floresta mostrando a imagem de Isabel Gondim. Isso ocorre porque a pessoa apenas forneceu os seus conhecimentos, o restante foi feito pela pessoa interessada, a qual pegou a primeira imagem que buscou na internet. E isso é uma falta de profissionalismo desmedida. Fica a dica! OBS. Sobre o blog acima citado, já enviei o pedido de correção. Vamos aguardar...

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Páginas desconhecidas de Paraná-Mirim - 1942 - Quando soldados pretos foram impedidos de virem para a Base Aérea.


PÁGINAS DESCONHECIDAS DE PARANÁ-MIRIM - 1942


QUANDO SOLDADOS  PRETOS FORAM IMPEDIDOS DE VIREM PARA A BASE AÉREA


Você já viu um soldado preto em fotografias feitas durante a Segunda Guerra Mundial em Natal? Os flagrantes de militares norte-americanos enchem álbuns. Sejam fazendo o policiamento, em despachos no Porto de Natal, construindo estrada, trabalhando aqui e lá, ou em folgas deliciosas no Grande Hotel do Major Teodorico Bezerra… até em diversões no “Maria Boa”... Mas não se veem soldados pretos. Isso tem uma explicação.  Toda história tem seus bastidores. Alguns são maravilhosos, excepcionais, outros, terríveis (como esse). 



Durante a Segunda Guerra Mundial os norte-americanos se instalaram aos poucos nas plagas de Manoel Machado, dando a origem à Base Leste, encostada à Base Oeste (dos brasileiros). Essa história é mais mastigada que gengiva de idoso. A Base Aérea montada pelos americanos é usada até hoje. A instalação da maior Base militar norte-americana fora dos EUA ocorreu em Natal, mais precisamente entre 7 de julho de 1942 (data oficial do início das atividades) e 1946, ano ao longo do qual os norte-americanos foram deixando gradativamente a base então administrada só por brasileiros. Durante o vavavu chegaram a pernoitar na base 22.000 homens, cujo movimento diário de aviões era em torno de 500 a 700. Eles deixaram mais de 700 galpões, grande quantidade de Jipes, armas e munições.



A História muitas vezes se prende aos fatos maiores, preocupando-se com começo, meio e fim, sem destaque para um ente isolado, chamado bastidores que, se analisados com a devida decência, dão outra história, tão necessária quanto a que foi proclamada nos jornais e livros da época. Esse é um caso cujas minúcias, aos olhos atuais, ferem a ética e a lei, mas à época, não era tão vigiado e recriminado devido a fatores culturais, embora anômalos. É exatamente sobre isso que comentarei abaixo. Já li sobre isso em outro lugar diferente de Clyde Smith, mas aqui me pauto nele. Trata-se de uma página esquecida da História dos norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial, e que aconteceu nessas plagas.



Durante os preparativos para o referido projeto, apareceu um imbróglio complicado. Houve a necessidade de que o pessoal da 194th Quarter-Master Truck Company fosse enviado ao Brasil para demandas que essa companhia era tecnicamente mais preparada. Com o fim da Guerra, vários despachos e demandas aconteceram paulatinamente. Surgiu o Projeto Verde (Geen Project), um programa de transporte que levava o pessoal norte-americano de volta aos Estados Unidos. Ocorre que todos os membros da companhia 194th Quarter-Master Truck Company (soldados, oficiais, funcionários comuns, corpo técnico etc) eram pretos. Por aqui não existiam militares brasileiros pretos. A Marinha americana disponibilizou marinheiros negros no Brasil, mas nem o ATC nem o Quartel-General importou-se em servir-se de seus trabalhos. 



A partir dessa observação, suspeitaram que o general Walsh tinha feito acordo com as autoridades brasileiras para não trazer soldados pretos para o Brasil. Teria sido um pedido de Vargas? Não se sabe. O que se sabe é que não vieram pretos para cá. Lembrando que o Rio Grande do Norte, apesar de ter vivido o período da escravidão negra tão estupidamente quanto qualquer lugar do Brasil - pois não existe escravidão boa, e longe de engolir a tese estúpida defendida por alguns historiadores “inocentes” de que os potiguares foram bondosos com os seus escravisados - o que de fato ocorreu foi que aqui teve poucos escravos, portanto Natal era predominantemente branca. 



Até então, a população norte-rio-grandense se resumia aos portugueses que se multiplicaram, misturados aos holandeses, franceses e indígenas. O Seridó é um pedaço da Europa no Brasil, em termos de cor de pele e olhos. Em diversos pontos do estado se veem pontos geográficos que predominam gente com fortes traços europeus, como por exemplo, a área de Boa Água até o início da década de 1990. Enfim, Natal era predominantemente branca, outra parte era miscigenada aos índios, outra, mínima, preta. 



Mas vamos retomar o fio da meada. Diante desse nó górdio, o chefe da Divisão de Pessoal enviou um documento ao Quartel-General do ATC ordenando que enviassem unicamente os equipamentos necessários, mas que não viesse nenhum membro do pessoal da Divisão. Essa objeção velada significava dizer que não viessem profissionais pretos. Certamente, para que não ficasse feio e muito notório, criaram uma série de justificativas com relação a tal proibição. Enfim, proibiram a vinda de soldados pretos para Natal, cujos argumentos foram, aparentemente, considerados favoráveis. Logo em seguida chegou os documentos informando que todos os equipamentos seriam enviados, mas sem militares pretos… Eis uma página de bastidor nada apetecível, mas é fato. E contra fatos, não há argumentos.

 

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Ayana, a noiva de cabeça para baixo (lenda da flor do baobá)...


AYANA, A NOIVA DE CABEÇA PARA BAIXO (LENDA DA FLOR DO BAOBÁ)...

           Era uma vez, num país africano chamado Madagascar, uma ilha-continente do Índico, nasceu uma menina diferente de todas as crianças das tribos da região. Era branca como neve, seus cabelos dourados traziam mechas pinceladas de ruivo, iguais às faíscas do sol. A face louçã  acentuava  a cor de seus olhos, incomum tonalidade violácea. Um feiticeiro famoso por nome de Bomani orientou os pais que lhe dessem o nome de Chiamaka, que significa “Deus é lindo”, mas os pais preferiram “Ayana", ou seja, “linda flor”. Pareciam adivinhar alguma coisa…

         Toda a população do país era preta, eles nunca haviam visto uma pessoa branca -, portanto várias tribos da região - e até de outros países -, cheias de curiosidade, se abalaram até Belo-sur-Tsiribihina-Tobi, onde nasceu a menina. Verdadeiras romarias. Queriam vê-la. Houve um princípio de tumulto nos primeiros meses. Os mais jovens defendiam que a criança era uma divindade. Outros, alegavam o oposto. Mas os idosos, que são muito respeitados, encerraram as conjecturas, alegando que a brancura de Ayana era um fenômeno natural de pele. Então a polêmica se dissipou lentamente, muito embora alguns guardaram para si suas impressões sobre a incomum criança.

         Apenas um detalhe diferenciava Ayana da meninada da tribo Belo-sur-Tsiribihina-Tobi. Era poupada do sol escaldante, pois sua pele se queimava facilmente. Com o passar do tempo, perceberam que ela realmente era igual a todos. Brincava o dia inteiro debaixo das árvores, corria na chuva, era alegre e esperta. Todos gostavam dela e Ayana era tão amada quanto as outras crianças. Ninguém mais a olhava como antes, exceto forasteiros que eventualmente passavam ali. O tempo, como não para, tornou Ayana uma adolescente encantadora.

Era comum às tribos locais viajarem até a costa ocidental de Tisombe, onde ocorria o Tanguadê, festa religiosa em louvor à fartura e à fertilidade. Era momento de agradecimentos e pedidos. A tradição dizia que pelo menos uma vez cada habitante daquela região deveria participar do evento. Mas normalmente eles iam anualmente, pois adoravam participar. A festividade vislumbrava um ano de prosperidade, fartura e o nascimento de novos filhos, que eram bênçãos e sinal de perpetuação das famílias e dos costumes.

A viagem era longa. Então eles preparavam víveres em abundância e viajavam em lombos de camelos, jumentos, em carroções e até mesmo a pé. A tribo de Ayana cultuava o deus do dia, uma divindade de nome Masoandro, que representava uma eterna luta contra a deusa da noite, de nome Volana. Para os cultuadores de Masoandro, a luz do sol representava a sua doação para os povos do mundo, a bonança e a esperança, ao contrário do que representava Volana, deusa da noite, da escuridão, da dispersão e do medo. Para os masoandristas, àqueles que acreditavam em Masoandro, a lua representava uma sentinela da deusa Volana.
 

Foi justamente nessa festa que Ayana conheceu Akin, belo rapaz alto e esguio. Por alguma razão, o encontro dos dois construiu um fio que, a partir daquele momento, unia suas vidas. Para alguns, esse fio que atravessa a vida dos homens tem o nome de amor. Ambos se apaixonaram. Ayana chamava a atenção a cada passo. Uns a olhavam com contemplação, outros, com reservas. Essa espécie de vigília a impedia de conversar melhor com Akin. Para piorar, as regras religiosas e as tradições daquela civilização milenar não permitiam que os filhos se relacionassem com pessoas não prometidas, e muito menos se casassem por iniciativa própria. As pessoas eram compromissadas desde crianças, como um contrato, tanto os homens quanto as mulheres. Um casal se unia em matrimônio a partir de um dote, valor em dinheiro a ser levado para o casamento a partir da quadringentésima menstruação da moça. Todas elas possuíam um ‘rakun’, pequeno pedaço de couro de camelo furado, como uma tabela, onde controlavam os períodos da menstruação.  

O dinheiro do dote não precisava ser exatamente em espécie, em moedas ou ouro, mas um misto de animais, como camelos, jumentos, cabras, aves, terras e até roças a colher. Assim rezavam os hábitos da tribo. Mas havia uma complicação mortal que impedia a união entre Ayana e Akin, o rapaz pertencia a uma tribo do extremo sul da ilha, isolada pelo tempo e pelos próprios homens como um povo condenado. A tribo de Akin cultuava a deusa Volana e todos carregavam em suas orelhas argolas de um puro marfim branco, como um sinal de benção lunar. Akin estava em Tisombe apenas como um curioso, atiçado pelos amigos, e nem sempre preocupado em respeitar os costumes alheios. Seus longos cabelos negros impediam que alguém percebesse suas argolas. Para qualquer masoandrista isso seria um sinal de maldição.

Foram trinta dias de celebração com muita dança, desafios, batuques, banquetes, rituais de adoração e uma infinidade de oferendas aos deuses. Até o protetor de Tisombe estava presente com a sua esposa. Era uma espécie de rei. O local dos festejos era emoldurado de fogueiras durante a noite, ali se assavam cabras, aves, animais de caça e comidas típicas em abundância. Cada fogueira acesa significava um culto a Masoandro. As chamas  e o calor do fogo sinalizavam um tributo eterno que não poderia ser apagado.

 Foram dias felizes para Ayana e Akin, jovens que se amavam pelo olhar. Eles não tiveram a mínima oportunidade de conversar, mas o simples contato eventual, soou como um namoro. Akin contava 19 anos e Ayana somava a sua décima sétima primavera. Mas a festa terminou e todos retornaram às suas aldeias. Certa vez, num rompante de admirável coragem, Akin se abalou até Belo-sur-Tsiribihina-Tobi para visitar Ayana, dessa vez seus cabelos estavam presos e suas argolas de marfim eram mais que visíveis. Ele sabia dos costumes e da ousadia empreendida, mas o amor fê-lo arriscar. A visita foi interpretada pelos pais de Ayana como uma transgressão, forte ofensa à família e principalmente aos deuses, atingindo frontalmente as regras religiosamente respeitadas. Ainda mais, o povo volano, cultuadores da deusa da noite, que quando vistos, representavam um mau presságio.

 Para além dessa audácia, Ayana era prometida ao jovem Erasto, inclusive o seu magnífico vestido de noiva estava pronto. Era uma peça de tafetá de seda perolada, vinda de Rabat, em Marrocos. O casamento se daria no final daquele ano. Não ficava bem aos costumes locais que um homem estranho visitasse uma moça prometida, principalmente um volano. Akin ouviu dos próprios pais de Ayana, todas as informações necessárias para tentar minar o seu amor, e foram  incisivos, pedindo que ele fosse embora e nunca mais retornasse. Foi um encontro amargo para todos.

Mesmo tomada pela paixão ardente, Ayana reforçou tudo isso a Akin, enquanto o levava até o portão, mas ele disse, sussurrando, que voltaria para buscá-la às escondidas, na próxima lua cheia, à meia noite, na parte detrás do terreiro de sua casa. Pediu que ela colocasse a mão na orelha, acaso concordasse. Ayana consentiu e ele partiu extasiado.

Naquele mesmo dia, o feiticeiro e o sacerdote da aldeia visitaram a família para saber sobre a presença daquele jovem de argolas brancas nas orelhas, que chamou a atenção de todos. Eles sabiam das tradições e quem era prometido para quem. O religioso orientou que o fato não poderia se repetir, pois tais deslizes causavam danos à imagem da noiva, de sua família e principalmente da tribo. Muitos rumores ecoaram na localidade. Os pais de Ayana ficaram profundamente abalados, mas, enfim, os dias se passaram e o constrangimento se abrandou.

Na data e horário marcados, quando Akin retornou para buscar Ayana, deu-se com uma grande surpresa. A aldeia estava em festa. A inocência de sua amada e a efusão do amor, fê-la se esquecer de que a data tratada entre eles era festiva. Então ele ficou escondido na mata, dentro da cavidade de um Baobá, uma árvore estranha, jamais vista por ele. Dali  conseguia ver a movimentação das pessoas.

Akin imaginou que todos se recolheriam antes da meia noite, assim sairia para roubar Ayana, pois sabia que ela o aguardava. Ledo engano. A festa deu sinal de buscar o sol. Então ele retirou a capa que usava, se disfarçou com uns couros que estavam espetados nas cercas de pedra, e se aproximou de onde estava Ayana com os seus familiares. Sua intenção era conseguir uma oportunidade de se comunicar com a amada. Por fatalidade um cachorro pressentiu o cheiro diferente e atacou Akin, arrancando o seu embuste. Houve a revelação e todos ficaram escandalizados, inclusive os pais de Erasto, o adolescente prometido a Ayana.

Ali se formou um pequeno rebu. O que anteriormente havia sido uma mera transgressão, agora consistia num direto ataque às tradições e ao deus Masoandro. Fato impensável e intolerável. As famílias precisariam dar um basta na audácia do rapaz, ou toda a tribo ficaria refém, sem a proteção de Masoandro. A intenção daquela visita se tornou nítida. O sacerdote fez logo um sermão, condenando com veemência a atitude de Akin e Ayana. No mesmo instante os pais de Erasto se retiraram, hostilizando a família de Ayana. Essa atitude ceifou qualquer pretensão de laços. O pai de Ayana ficou ultrajado e expulsou Akin, alegando que o mataria se ele retornasse. No mesmo instante alguns rapazes investiram contra Akin, ameaçando-o com lanças afiadas. Não restou outra alternativa para o forasteiro que não fosse fugir. Então ele desapareceu na mata enegrecida pela noite.

Em casa, Ayana revelou os bastidores da história aos pais e ao sacerdote, pois a vida daquela tribo passava pelo crivo daquele líder espiritual.  Todos eram educados a nunca mentir. Após a confissão eles esclareceram que se ela arriscasse reatar o relacionamento pecaminoso, todo o seu povo sofreria a ira do deus do dia. Quando o sacerdote se despediu, o pai de Ayana sentenciou que se ela desrespeitasse as orientações, o seu mais provável futuro seria a morte. A mãe avisou que a vestiria de noiva e a enterraria viva, de cabeça para baixo. Ayana, com medo acedeu, dizendo que eles poderiam ficar em paz, pois o assunto tinha sido sepultado para sempre.

O dia amanheceu e um tumulto acordou a cidade. Carregadores de água encontraram próximo dali a ossada de um homem atacado por leões, restando apenas as roupas, duas argolas quebradas de marfim, e um punhal que constava cunhado o nome de Akin. Os pertences do jovem volano foram reconhecidos por alguns rapazes da tribo que o viram em Tanguadê. O sacerdote foi até a casa de Ayana dar a terrível notícia, a moça também reconheceu a roupa do amado. Seu olhar de profunda tristeza e seu corpo quase desfalecido em tremores, contrastava com o ar de matreira felicidade dos pais. Eles aguardavam o acalmar da situação para arriscar resgatar o casamento da filha com Erasto, portanto aquela morte encerrava o grande entrave. Assim pensavam.

Foi impressionante o comportamento aparentemente resiliente e resignado de Ayana, a tristeza parecia tê-la radicalizado. Em nenhum momento ela esboçou qualquer reação que contrariasse o desejo de seus pais, embora a morte do amado fosse como uma punhalada cravada em seu coração. Era impressionante a sua serenidade. Mas ela havia tomado uma decisão silenciosa, tão silenciosa quanto a sua promessa de amor a Akin.

Os dias vindouros foram de aparente normalidade, mas Ayana soube que a aldeia comentava algo muito ruim sobre ela. Muitos alegavam estarem certos quando - no dia de seu nascimento -, supuseram que ela fosse um ser sobrenatural do mal, do caos e da dor. Então passaram a dizer que Ayana representava o início de uma maldição, e estaria colocando em decadência a prosperidade da aldeia, podendo trazer inúmeros problemas.

Os pais de Ayana, esperançosos de que tudo aquilo fosse passageiro, afagaram a filha, tentando dar-lhe alento. Disseram que aquele momento era como atravessar uma tempestade em meio ao deserto, mas o tempo se encarregaria de apagar tudo aquilo. Na realidade, eles a acalmavam na intenção de também sensibilizar os pais de Erasto, resgatando o acordo do casamento, afinal nada mais sério havia acontecido entre os dois. Ayana, como sempre, demonstrou muita doçura ao ouvi-los.

 Naquela mesma madrugada, assim que os pais adormeceram, ela se vestiu de noiva e demorou horas se maquiando. Depois se enfeitou com os ornamentos típicos de sua tribo, e no centro da cabeça colocou um laço de fita branca. Surgiu a mais bela nubente que já existiu na aldeia. Parecia a luz do sol ou o resplandecer do marfim branco refletindo a luz da lua. E antes que o sol despontasse os seus primeiros raios, ela trespassou a cerca de proteção da aldeia e adentrou a mata, sem rumo. Mil pensamentos divagavam em sua mente. Não demorou muito, ela se deparou com uma alcateia de leões e se colocou como oferenda. Impressionantemente as feras se comportaram como gatos domésticos, como se ela fosse invisível.

Ayana investiu contra eles, atiçando-os, mas as feras ignoraram os seus gestos. Ela seguiu andando, encontrou outras matilhas, deu-se com leopardos, hienas e outros bichos ferozes. Todos lhe eram indiferentes, e pareciam se curvar diante da pálida moça. Exausta, começou a andar em ziguezague. A lua cheia refletia em sua vestimenta. Ayana parecia a própria lua resplandecendo na escuridão da floresta. Não sabia exatamente onde estava. De repente ela sentia como se flutuasse. Já amanhecendo, deu-se com o imenso baobá e entrou em sua cavidade. Por ironia do destino, sentiu o cheiro de Akin e pensou estar sonhando. Logo reconheceu a capa que ele deixou quando ali se escondeu. Ela a abraçou como se afagasse o próprio Akin. Ali se pôs a sonhar, mergulhada em silêncio.

Nesse exato momento, os pais de Ayana estavam desesperados, procurando-a em toda a aldeia. A notícia de seu desaparecimento correu rapidamente. Todos os homens puseram-se à procura. A busca se arrastou até a noite. No outro dia tudo foi reiniciado, ampliando o raio percorrido, mas em vão. Pessoas de aldeias vizinhas se uniram. Os pais de Ayana perceberam que ela havia vestido os seus trajes de noiva e não entendiam a razão da esdrúxula atitude. Não compreendiam como a filha não fora vista por ninguém em tais vestes. Pensaram até no pior, mas nem o vestido fora encontrado.

Dois anos se passaram. Veio o inverno. A dor era quase a mesma, mas ninguém mais cogitava a possibilidade de Ayana retornar. Seus pais se tornaram dois vivos mortos. Diziam que a luz e a alegria da casa haviam se apagado. Nunca sequer a menor pista foi encontrada. Tudo mais permanecia igual, até que a estação das águas surpreendeu a aldeia. Chovia torrencialmente. Nunca havia chovido nessa profusão durante o frio inverno. Veio a primavera, e do dia para a noite, aquela árvore esquisita, única em toda a região - batizada de baobá -, e que nunca havia despontado uma flor, despertou como se abrisse os olhos e pincelou-se de lindas flores.

O baobá transformou-se num imenso buquê branco cor de marfim, atraindo a atenção de toda a tribo que nunca havia visto aquilo. A cavidade se fechou naturalmente. Todos correram para tentar decifrar o fenômeno, ao mesmo tempo que apreciavam a beleza incomum. As pétalas, esvoaçantes, eram da cor de seda pérolada, e seus pistilos traziam a cor de neve permeada de uma tonalidade ruiva nas pontas, pareciam cabelos...

A perplexidade tomou conta de todos. Não houve quem chegasse ali e não tivesse a mesma impressão. A flor era uma noiva de cabeça para baixo… O vestido era exatamente igual ao de Ayana... a flor era a imagem de Ayana… era Ayana transformada em flor… a flor era Ayana… Ayana era flor… Os seus pais, quando se recusaram a adotar o nome sugerido pelo feiticeiro, batizando-a de Linda Flor, não imaginaram que o começo da vida de sua filha já era o prenúncio do seu fim.

Naquele dia o sol se pôs mais cedo. Uma noite de lua cheia e forte ventania se desdobrava no mundo. Nenhuma fogueira da tribo resistiu, e a escuridão imperava, não havia ali nenhuma luz, senão uma forte aurora que parecia brotar de dentro do baobá. Uma densa neblina branca se formava ao redor da grande árvore e lentamente  tomava conta da aldeia, carregando folhas secas e a atenção dos locais. Era tudo como uma dança, como se um véu de noiva passeasse por entre o mundo. Ninguém acreditava no que via. E por três longos dias a luz do sol não apareceu, só havia o bailado da neblina irradiada pela forte luz da lua.

 Dali em diante, em todos os anos, durante a primavera, tudo se repetia. A estranha árvore se transformava num buquê, atraindo todos os animais alados. Logo as abelhas passaram a produzir um mel de sabor delicado. As corujas se multiplicaram. E por três dias imperava na longa noite a dança da branca neblina, cercando a aldeia com um fulgor próprio. Cada vez as flores eram vicejantes.  A beleza do baobá contrastava com os arbustos acinzentados, e a árvore passou a produzir cápsulas contendo sementes enormes, envolvidas em polpa saborosa. O seu suco curava doenças e promovia a fertilidade. Era a única árvore daquela espécie em toda a África. Nunca havia florido, então floriu Ayana.

Os pais de Ayana guardavam no coração um forte remorso, então o sacerdote de Belo-sur-Tsiribihina-Tobi acalmou-lhes, explicando que tudo aquilo fora uma profecia que passou a se cumprir em dois momentos. O primeiro foi quando eles a batizaram de Bela Flor. O segundo se deu com o encontro entre Ayana e Akin na festa de Tanguadê, na costa ocidental de Tisombe.

O Baobá então seria o receptáculo final daquele vaticínio, seu maktub. A árvore surgiu na aldeia. Única. Nunca havia florido, pois aguardava o cumprimento da profecia. Ayana veio para ser flor, trazer prosperidade, fertilidade e vida, conforme os preceitos da festa de Tanguadê. Mas nunca alguém conseguiu explicar aquela branca neblina que dançava pela tribo, muito menos a longa noite de três dias que despertava sempre após o florescer do baobá.

Essa história comoveu a África. Todos agora queriam as sementes do baobá. Reis e sacerdotes de várias tribos africanas, inclusive o faraó do Egito cuidou de produzir mudas. Todos queriam conhecer Ayana. Todos queriam as bençãos de Ayana. Suas sementes saíram daquele Continente e chegaram à Austrália, despertando o plantio de baobás. Assim, lentamente, Ayana se espalha pelo mundo... Assim os baobás viajaram para outros continentes, simbolizando o amor puro e verdadeiro. Mas só ali, na tribo que viveu Ayana, durante três dias do ano o sol não é visto, nenhuma fogueira é acesa, e a única luz existente é a da neblina branca como aurora que reflete o clarão da lua, branco como o marfim. Maktub… L.C.F. 28.12.18
 

 



 

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Família Ribeiro Dantas e o indigenista mipibuense... (Uma história desconhecida)

 


Recentemente localizei a senhora Lílian Ribeiro Dantas Calvão, carioca, 85 anos de idade, moradora em Copacabana, Rio de Janeiro, uma Ribeiro Dantas desgarrada do Rio Grande do Norte. Nasceu no Rio de Janeiro, onde também nasceu a mãe. O avô, Pedro Ribeiro Dantas (1880-1922), ao contrário, nasceu no Engenho Sapê, entre a Vila Imperial de Papary e São José de Mipibu.  Ele foi desses que não esquentou lugar em São José de Mipibu e, diferente da tradição das famílias de seu tempo, não se casou com parentes. Logo cedo deixou o seu berço e buscou outros horizontes, muito distantes, tornando-se indigenista no Serviço de Proteção ao Índio, hoje FUNAI. Sua história é instigante. Propus escrevê-la, mas a Srª Lílian, sua neta, informou-me que já havia organizado uma pequena biografia, já que os que vieram antes, na própria família, não cuidaram de registrá-la partir de contemporâneos dele. Ela, portanto, preocupada em guardar tantas narrações curiosas que falavam sobre o avô, se encarregou dessa missão nobre - que eu também sempre me encarrego - e saiu juntando retalhos com certa dificuldade. Seu trabalho é uma síntese, mas importantíssima, pois coloca mais um nome - até então desconhecido - no panteão dos nomes célebres de São José de Mipibu. Se analisarmos o tempo em que ele foi indigenista - há mais de cem anos -, num país cheio de lugares inabitados, não é exagero enxergar a sua saga, pois ele percorreu missões por lugares inimagináveis do Brasil. Por uma tremenda coincidência, num dos textos aqui compilados por sua neta, ele esteve em Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul, cidade próxima do município onde nasci, e que tanto visitei. Obviamente que naquela época o município engatinhava, pois é uma das cidades mais antigas. Eis o seu trabalho, que, inclusive, é um nobre trabalho e desde já tem a minha admiração......

 

 


PEDRO RIBEIRO DANTAS

Biografia por

Lilian Ribeiro Dantas Calvão

Pedro Ribeiro Dantas foi o décimo quarto filho do casal Antônio Basílio Ribeiro Dantas, o moço, e de sua mulher Maria Anunciada da Costa Villar. Nasceu em 1880, no engenho Sapé, pequena fazenda com engenho entre os municípios de São José e Vila Imperial de Papary, no Rio Grande do Norte, próximo aos rios Saboeiro e Bonito, onde, na infância, ia nadar com o pai e os irmãos. Fez os estudos preparatórios no Liceu do Rio Grande do Norte e, com 15 anos, a 25 de janeiro de 1895, assentou praça. Nesse mesmo ano, perdeu o pai.

Tenho algumas informações não muito confiáveis, datilografadas em uma folha de papel da qual desapareceu a metade inferior, que dizem que cursou em 1895 e 1896 a Escola Militar do Ceará e, no começo de 1897, foi para a de Porto Alegre; em 1898, já cursando a Escola Militar no Rio, teria sido desligado em junho e transferido para um batalhão com sede na Bahia, por ter participado de manifestações de apoio a Floriano Peixoto. Voltou depois ao Rio para se formar. É nesse ponto que o relato pára, pois a continuação sumiu.

Minha prima Cate diz que o que perturbou seus estudos foi uma doença da mãe. Seu genro Alfredo escreveu que seu curso na Escola Militar só chegou ao fim devido a sua invejável firmeza, tantos foram os acontecimentos que levariam qualquer outro menos seguro de si a abandonar a carreira. Tenho lembrança de Papai contar que o pai tirou ou fez questão de tirar ponto vago nos exames finais e respondeu brilhantemente a tudo o que lhe perguntaram.

Em 1º de setembro de 1900, uniu-se em Fortaleza à jovem cearense Alice Barroso dos Reis. Casaram-se na Igreja Católica, de acordo com o desejo dela, embora ele já adotasse o Positivismo como filosofia e religião. Enquanto cursava a Escola no Ceará, ficou hospedado em casa de Benvinda, prima irmã da mãe dela, casada com Floriano Xavier da Silveira, sem filhos. Provavelmente conheceram-se através desse casal, citado por ele em seu diário de viagem.

 Deve ter sido uma grande paixão, pois ele voltou para buscá-la depois de cursar a Escola em outros lugares. Vieram para o Rio, onde pensavam morar, fazendo escala em Natal, para visitar a família dele. Sentindo-se alvo dos olhares que procuravam lhe descobrir defeitos, Alice fazia questão de só sair do quarto já arrumada, penteada e passava um leve carmim no rosto para parecer corada e saudável. Suas “boas cores” espantavam a todos.

De volta ao Rio de Janeiro, Pedro procurou aproximar a esposa da Igreja Positivista. Lembro-me de meu pai contar que os dois, ao chegar, impressionaram o pessoal da Capela Positivista pela beleza. Só no dia 13 de janeiro de 1907 foram admitidos solenemente na categoria de positivistas completos, embora muito antes já freqüentassem regularmente os cultos. No final de 1910, foram apresentados à Igreja, em uma cerimônia que provavelmente eqüivalia a um batismo ou crisma, os filhos Clotilde, Branca, Beatriz e Francisco.

Em outubro de 1902, nasceu a primeira filha, Clotilde Anunciada. Alice estava grávida do segundo filho quando receberam a notícia da morte em serviço do maior amigo de meu avô, Francisco Bueno Horta Barbosa, no dia 3 de dezembro de 1903, devorado pelas piranhas em um rio de Mato Grosso. Foi um choque para os dois, pois Chiquinho, como era chamado, e sua família os tinham recebido de braços abertos ao chegarem ao Rio. Ofereceram-lhes até hospedagem em sua casa enquanto não se ajeitassem. Pedro prometeu que se o filho esperado fosse varão, se chamaria Francisco, como o amigo. No entanto, em maio de 1904, nasceu outra menina, Branca; em 1905, outra, Beatriz Alice ou Tizinha, que morreu em 1907 no Pará.

Em dezembro de 1908, nasceu ainda outra Beatriz. Só em outubro de 1910 pôde homenagear o amigo, ao nascer o primeiro filho homem, Francisco Annibal, também apelidado Chiquinho. O segundo filho varão – Paulo – nasceu em janeiro ou fevereiro de 1913, mas morreu pequeno e também no Pará, como Tizinha. Em julho de 1915, nasceu Marina Isa e, em 1920, o último filho, Pedro Godofredo. As duas filhas mais velhas e o filho mais novo morreram muito jovens, as duas já casadas e com filhos, ele, com apenas dezoito anos.

Creio que foi em 1907 que meu avô Pedro se integrou à Comissão Rondon, participando de várias descobertas geográficas, da instalação de linhas telegráficas de Mato Grosso ao Amazonas e da política de incorporação pacífica dos índios à comunidade nacional. Suas tentativas de contato com os Urubus (indígenas) do Maranhão, quando ali era o Inspetor do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais do Ministério da Agricultura, são citadas em artigos de jornais das décadas de 10, de 20 e mesmo posteriores.

Também é descrito, em um artigo publicado por ocasião de sua morte, seu encontro com os Gaviões (indígenas) da região do Tocantins-Araguaia, que ele mesmo conta no diário de viagem. Em sua homenagem, o posto indígena do Rio Verde, em Mato Grosso, recebeu o nome de Pedro Dantas e constava até de alguns mapas.

Recentemente descobri que foi mudado para Coronel Bezerra ou coisa assim. Chefiou a maior expedição que desbravou o interior esquecido do Brasil: partindo de Três Lagoas, atingiu Belém do Pará, depois de descobrir as cabeceiras do Araguaia, descer até Conceição do Araguaia, ir ao Xingu e voltar ao Araguaia, num percurso total de 4.800km, fazendo o levantamento de toda a região e estabelecendo as coordenadas geográficas.

Seu trabalho junto ao de outros companheiros permitiu a elaboração do mapa de Mato Grosso com grande precisão. Explorou também o rio das Mortes, em 1916, indo até suas cachoeiras intransponíveis. Deu sobre essa expedição uma entrevista, publicada no jornal “A Razão”, em 31 de janeiro de 1917, na qual relata que ali encontrou cruzes toscas e outros sinais de que aventureiros em busca da lendária mina dos Martírios haviam estado no local.

Em 1916, comprou com financiamento uma casa em Copacabana, na rua Anita Garibaldi 18. Foi muito difícil honrar as prestações e foi um dos motivos por que aceitou missões ainda mais arriscadas e insalubres, que pagavam mais. Além disso, algumas vezes alugaram a casa e foram para outra mais barata, para aliviar as despesas.

 A última dessas missões, a que o levou à morte precoce, foi em 1920/22, junto à Comissão de Limites do Brasil com o Peru, quando chegou às cabeceiras do rio Acre, região ainda desconhecida do homem dito civilizado. A árdua travessia somada à presença de insetos venenosos e à falta de alimentação adequada provocou em Pedro Dantas e seus companheiros uma série de moléstias. Poucos resistiram a tantas provações.

Foram três meses de doença desde a volta ao Rio de Janeiro, meses durante os quais o dinheiro que Alice economizara escondido durante muitos anos foi de grande valia. Ela fazia isso porque ele se comovia com qualquer um que lhe pedisse ajuda, principalmente as irmãs, e, no momento de distribuir dinheiro, não parecia pensar no futuro da família e dele próprio.

Meu avô Pedro faleceu em sua casa, em Copacabana, em 5 de maio de 1922, tendo o enterro  acontecido às quatro e meia da tarde seguinte. A filha mais velha tinha 19 anos e o mais novo apenas dois. Minha avó ficava viúva com 40 anos e seis filhos para acabar de criar, uma casa para pagar com o pequeno soldo que ele lhe deixara.

 Quando morreu, várias notícias apareceram nos jornais exaltando suas qualidades e a obra que legou ao país. Depois, seu nome foi sendo esquecido e até a última homenagem que lhe fizeram o tal Coronel Bezerra usurpou. Cabe a nós, seus descendentes, não deixar que sua lembrança desapareça ou que se torne apenas mais um nome em nossa árvore genealógica.

E, para isso, espero estar dando o primeiro passo.

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O Nome de Pedro Ribeito Dantas em Sites na Internet

 Em 1910, Pedro Ribeiro Dantas, funcionário do "Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais", trabalhava na região cortada pela Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) e acompanhava a situação indígena. Nesse ano, ele fez um relatório de serviço ao seu diretor, Cândido Mariano Rondon.

Pedro pôs em dúvidas o caso dos serradores mortos na mata. Segundo ele, não havia provas concretas de que as mortes foram de autoria indígena. Não encontraram "no local nenhuma arma ou indício característico" dos silvícolas, embora se soubesse da existência deles na região.

No relatório, Pedro Dantas comenta que no trecho entre Araçatuba e Três Lagoas não havia índios e, entretanto, ocorriam mortes violentas, inclusive com mutilação de cadáveres. Ele lembra que os ditos "civilizados" também cometiam esse tipo de crime, até mesmo nos grandes centros urbanos. Pedro não afirma, mas deixa implícito que algumas mortes poderiam ser de autoria de "civilizados".

O funcionário lembra que o ataque aos serradores ocorreu em 1908 e foi o primeiro deles. Entre 1905, ano de início das obras, e aquela data teria havido tranqüilidade. Até fim de 1910, o número de mortos atribuídos à ação indígena seria de oito. O funcionário argumenta que não era um número alarmante. Portanto, seriam infundados os discursos das empreiteiras ao afirmarem ser os índios empecilhos ao andamento da obra e se constituírem em grande ameaça aos operários da obra.

Segundo ele, os trabalhadores não tinham medo dos índios. O problema seriam os novatos, pois chegavam "com as cabeças cheias de phantasticas histórias". Pedro dá exemplos.

            "... relativo a uma turma de uns cinqüenta homens ali recém chegados de Minas. Estavão todos provisoriamente aboletados num grande rancho, especialmente designado para esse fim. Logo a primeira noite, por signal enluarada, sae fora um dos homens, urgido por qualquer necessidade. Como tivesse tido a esquisitice de estar completamente despido, e, ao voltar, involuntariamente despertasse um dos companheiros, este, vendo, ao reflexo da lua, aquelle homem nú, à porta do rancho, horrorizado deu o grito de '- Bugre no acampamento!'

Foi o bastante para se estabelecer o alarme geral e grande confusão. Muitos tiros partiram a esmo, resultando dahi vários ferimentos, inclusive um homem com o pulmão atravessado por bala.

De outra feita achavão-se trabalhando dois lenhadores no quilômetro dezenove da provisória de Itapura e Jupiá, e eis que lhes chega aos ouvidos estranho rumor de vozes em linguagem incomprehensivel. Por isso correrão cerca de duas léguas suppondo-se sempre perseguidos pelos índios. Tratava-se, porém, apenas de dois árabes, fugidos de Três Lagoas, onde havia um delles commettido um crime."

Talvez Pedro Ribeiro Dantas tenha exagerado ao afirmar que não havia, entre aquela população, medo de ataques indígenas. A questão central para o sertanista foi procurar pôr abaixo a estigmatização do índio e vê-lo sem preconceitos. Posteriormente, Lage de Andrade mitificou os pioneiros e bugreiros como instauradores da nova "civilização" e apresentou os índios como obstáculo a essa tarefa. Versões distintas que revelam posições sociais e opções políticas divergentes. Ambas expressando o conflito estabelecido.

As estradas de ferro invadem o interior

Nesse processo de ocupação sistemática das terras indígenas, as estradas exerceram um papel fundamental. Por onde corria uma estrada praticava-se a violência e a arbitrariedade. De triste memória foram os quartéis militares instalados em Minas Gerais, em Santa Catarina e na Bahia.

Em 1915, foi construída a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, para ligar São Paulo ao Mato Grosso do Sul. Os Kaingang eram senhores daquela região e por muitos anos defenderam com armas na mão seu território. Conforme o tenente Pedro Ribeiro Dantas, “um povo ocidental que defende o solo de sua pátria contra uma invasão esmagadora diz-se heróico. O índio, desprovido de armas eficientes, encurralado, chacinado, é considerado fera brava e traiçoeira e merece o extermínio”.

Foi o que aconteceu. Após muitos conflitos e ataques, os Kaingang resolveram propor a paz. Mas a esta altura estavam reduzidos a pouco menos de duzentos indivíduos.

A Estrada de Ferro Madeira – Mamoré, na Amazônia, foi inaugurada em 1912, quando já ocorria o declínio do ciclo da borracha. Trabalharam na sua construção nordestinos, bolivianos, ingleses, estadunidenses, pessoas do mundo inteiro. Foi tal a mortandade, em decorrência das doenças e das condições sanitárias, que na época dizia-se que cada dormente representava um trabalhador morto.

As estradas de ferro atenderam a interesses econômicos do governo, dos fazendeiros e das empresas de colonização e cortaram as terras dos povos indígenas, facilitando a penetração do capitalismo e trazendo consigo a doença, a violência e a morte de tantos povos.

A Pacificação dos Índios Urubu-Kaapor

Darcy Ribeiro

A Política Indigenista Brasileira (p. 82-95)

A pacificação dos índios Urubu-Kaapor teve início em 1911 e se prolongou até 1928, quando os primeiros membros da tribo confraternizaram com os servidores do S.P.I., no Posto de Atração da ilha de Canindéua-assu, no alto Gurupi, entre o Pará e o Maranhão.

A primeira tentativa de aproximação foi feita em 1911 pelo tenente Pedro Ribeiro Dantas que, à frente de uma pequena turma de trabalhadores, se internou na mata para tentar um contato com os índios. Fracassada a tentativa por falta de continuidade com a retirada do comandante, recrudesceram as lutas entre os Kaapor e a população local, formada de garimpeiros, madeireiros e trabalhadores da linha telegráfica, espalhada pelo imenso território dominado pelos índios, entre os rios Turiaçu, o Gurupi e o Pindaré.

Os Urubu-Kaapor atacavam sempre em represália a ofensas sofridas, e nos primeiros anos que se seguiram à tentativa do Tenente Dantas, as pequenas turmas de pacificação, que continuamente se revezavam na colocação de brindes em pontos percorridos pelos índios, não eram hostilizadas.

Os extratores de drogas da mata e o pessoal da linha telegráfica viviam, contudo, em contínuo conflito com os índios; sempre que sofriam baixas, os Kaapor revidavam com vigorosos ataques, deixando de retirar os brindes que os servidores do S.P.I. colocavam em tapiris, nas trilhas, e chegando muitas vezes a destruí-los.

Ao tomar conhecimento de um assalto por parte dos índios, os funcionários do S.P.I. procuravam aproximar-se dos atacantes, que retrocediam à mata sem poder ser abordados. Alternadamente, pois, renovavam-se as hostilidades e as manifestações pacíficas dos índios, com a retirada dos brindes e a colocação, em seu lugar, de imitações de tesouras ou terçados feitos de madeira, para indicar o que desejavam receber.

Em 1915, à falta de recursos, a atuação do S.P.I. exercida através do Posto Indígena Felipe Camarão, do rio Jararaca, cessou inteiramente. Esse Posto atendia a índios Tembé e Timbira e, simultaneamente, fazia esforços de aproximação com os Kaapor.

Três anos mais tarde foi criado o posto de vigilância do Turiaçu, para impedir os conflitos entre índios e o pessoal da linha telegráfica de ligação entre São Luis e Belém do Pará, que atravessava o território tribal. Estes se haviam especializado nas chacinas aos Urubu-Kaapor. Um certo João Grande, agente da linha, perseguia atrozmente os índios, organizando expedições contra suas aldeias e espetando as cabeças das vítimas, homens, mulheres e crianças, nos postes telegráficos, como advertência para que os índios não cortassem mais a linha. Os relatórios do S.P.I. da época mencionam ataques atribuídos ora a índios Urubu-Kaapor, ora a Timbira que, provindos do rio Caru, também se infiltraram na área, sem que pudessem ser precisamente identificados uns e outros.

No mesmo ano, (1918), índios Urubu-Kaapor atacaram o Posto Indígena Gonçalves Dias, do rio Pindaré, que assiste aos índios Guajajara. Era o primeiro ataque àquele posto, instalado havia cinco anos e foi assim relatado pelo encarregado:

“Estava o índio Guajajara João Totoriá pescando à margem do rio quando ouviu rumor de pisadas em folhas secas; olhando para o lado donde vinha esse rumor, viu dois vultos deitados ao comprido, no chão, e mais adiante três, de pé, e meio escondidos nos matos.

Reconhecendo que tinha diante de si índios bravos, o guajajara deitou a correr em direção às casas do Posto, gritando: “Aúou, Aúou” — o que corresponde a “índio bravo matador”! Ao alcançar o pátio das casas, já cansado, o fugitivo tropeçou e caiu; levantou-se, e nessa ocasião recebeu uma flecha na região frontal, que lhe produziu um ferimento de oito centímetros de extensão.

A esses gritos, os companheiros do assaltado, que se achavam a fabricar farinha, correram em seu socorro e ao avistarem os assaltantes que vinham saindo do pátio do lado do rio perguntaram-lhes o que queriam. Como resposta receberam uma descarga de flechas. Novos disparos de flechas foram feitos contra os guajajaras que tornaram a perguntar aos assaltantes o que queriam. Mas, vendo os atacados que os outros teimavam em não lhes dar resposta e iam apoderando-se do que havia pelas casas e terreiros, dispararam dois tiros para o ar, na esperança de assim amedrontá-los. No entanto, os índios bravos a nada atendiam e investiam com furor. Então, um dos guajajara fez fogo de pontaria contra o mais afoito dos atacantes, no momento em que este saía de uma casa que estivera a saquear. Nesse momento chegou ao local do conflito o encarregado do Posto, que ouviu seguir-se ao estampido do tiro um grito forte e o tropel de muitas pessoas que deitavam a correr pela margem do rio; entre os fugitivos, foi o alvejado, que mesmo assim não abandonou os objetos tirados da casa saqueada.”

Ano após ano, os relatórios do S.P.I. registram incursões dos Kaapor aos estabelecimentos de coletores de drogas da mata, garimpeiros e madeireiros, bem como a canoas que trafegavam o Gurupi e a pequenos povoados locais de que resultavam encarniçadas refregas.

A eficiência desses ataques, movidos muitas vezes pelo desejo de saque, — já que os índios utilizavam metal para as pontas de suas flechas, — levou a população local a acreditar que os Kaapor eram dirigidos por criminosos evadidos dos presídios do Maranhão, do Pará e mesmo de Caiena e por negros remanescentes de antigos quilombos. Era voz corrente, também, que aventureiros de toda ordem, atraídos pelas ricas minas de ouro do Gurupi, incitavam os índios ao saque e eram os maiores interessados em mantê-los aguerridos, para servir aos seus propósitos de traficância clandestina do ouro. A explicação servia, principalmente, para justificar as chacinas empreendidas ou tentadas contra os índios.

Versões deste gênero chegaram a ser veiculadas pela imprensa, como a que atribuía a um lendário Jorge Amir a chefia dos guerreiros Kaapor. Este indivíduo, que nunca chegou a ser identificado, teria negócios com o comerciante sueco Guilherme Linde, grande proprietário do Gurupi, que ali investira vultosos capitais na exploração do ouro de Montes Áureos. Outra lenda, corrente na época, descrevia os Urubu-Kaapor como mestiços de Timbira e negros quilombolas.

Por volta de 1920, a situação de insegurança em todo o vale do Gurupi se agravara de tal modo que as autoridades do Maranhão e do Pará foram instadas a decretar o estado de sítio em toda a região, para garantir a vida e a propriedade dos moradores civilizados.

Expedições punitivas contra as aldeias indígenas eram também periodicamente organizadas, como a de 1922, estipendiada por um deputado estadual e pelo prefeito de Peralva, composta de 56 homens fortemente armadas. Dirigiram-se ao Alto Turi; e após seis dias de marcha, assaltaram uma aldeia Kaapor e mataram no trajeto dois homens, o que alertou os demais, possibilitando a fuga. Na madrugada seguinte, reforçados por índios de outra aldeia, os fugitivos cercaram os expedicionários, despejando sobre estes saraivadas de flechas. Provocando nova fuga dos índios quando já tinham esgotado quase toda a munição, os invasores queimaram a aldeia e destruíram as roças, antes de regressar.

Em 1927 reiniciam-se os trabalhos de pacificação dos índios Urubu-Kaapor, com a instalação do Posto Pedro Dantas na ilha de Canindéua-assu, próximo ao local onde os índios faziam a travessia do Gurupi, da margem maranhense à paraense. O local fora escolhido por Miguel Silva, encarregado do Posto Indígena Felipe Camarão, que desde 1911 trabalhava para o S.P.I., na assistência aos índios Tembé e Timbira, do Gurupi, e na pacificação dos Kaapor.

A turma encarregada da instalação do Posto era constituída de 15 trabalhadores, do encarregado geral, Soeira Ramos Mesquita — que, medroso e incapaz, pouco influiu no empreendimento — de um carpinteiro, de um encarregado do material flutuante, do intérprete tembé, Raimundo Caetano, morto pelos índios em 1934, e do capataz Benedito Jesus de Araújo, o que mais contribuiu para a pacificação, sendo mais tarde morto pelos índios que chamara à paz, como adiante veremos.

Construído o rancho na ilha de Canindéua-assu, defronte da margem maranhense, os trabalhadores abriram uma picada de 15 quilômetros, mata adentro ao fim da qual colocaram o primeiro tapiri de brindes, na margem direita do Gurupi. Na margem paraense foi plantada uma grande roça e levantados outros tapiris para a colocação de brindes, hasteando-se em cada um deles uma bandeira branca e flechas indicando a direção do barracão central.

O primeiro tapiri foi encontrado pelos índios alguns dias depois de instalado o Posto. Quebraram o jirau e todos os brindes, exceto alguns medalhões, que levaram, com a efígie de José Bonifácio, que o S.P.I. fizera cunhar como homenagem ao seu patrono e para satisfazer o gosto do índios por moedas e medalhas de metal.

Em outubro de 1927 foi flechado e morto pelos Kaapor, quando tripulava o batelão do Posto, o índio Tembé Manoel Guamá e, pouco depois, também foi ferido a flecha o trabalhador Raimundo Pereira.

Os principais eventos de 1928, ano em que se deu a pacificação, foram registrados no diário do Posto Pedro Dantas, através do relato quotidiano dos acontecimentos, que abaixo resumimos:

“…A 17 de janeiro os índios se deixaram ver e fizeram sinais a José Martinho, caçador do Posto.

— A 18 de fevereiro chegou ao Posto, vindo de Itamoari, o Sr. Antônio Bernardino, que disse terem os índios atacado trabalhadores do Sr. Bogêa Filho, resultando a morte de um de nome Leôncio. Esse ataque se deu em Montes Áureos, onde imprudentemente o Sr. Bogêa Filho mandara extrair ouro. No dia seguinte os índios cercaram no igarapé Canindéua um trabalhador do Posto que estava caçando, mas que conseguiu escapar.

— A 13 de junho os índios deram sinais defronte do Posto e no mesmo dia acompanharam os pescadores desde o lugar Cajueiro até muito próximo.

— A sete de julho os Kaapor fizeram sinais aos pescadores do Posto. A 11, foi visto pela senhora de um trabalhador um índio do lado do Maranhão e à noite eles deram muitos sinais defronte do Posto, tendo os intérpretes falado longo tempo em timbira e tembé porque ainda se desconhecia a sua língua. A 29, apareceram defronte do Posto diversos índios que fizeram sinais aos pescadores perto da ilha do Camaleão. Outros apareceram no caminho do igarapé Canindéua e deram sinais ao capataz Benedito Araújo, ao intérprete e outras pessoas que andavam caçando.