ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

terça-feira, 9 de abril de 2019

E tome, e tome, e tome, tome, tome...


E TOME, E TOME, E TOME, E TOME E TOME...


(História real)

         Habituado a descer ao bairro Ribeira para fotografar, tomei, aliás, topei com uma cena que me fez repensar sobre alegria, felicidade e jovialidade. Normalmente, quando escolho um tema fotográfico, esquadrinho o local com a acuidade. Assim, compilo fachadas, portas, janelas, portões, parasitas, enfim uma plêiade de elementos históricos invisíveis para muitos. Pois bem, sábado elegi os ladrilhos hidráulicos sobreviventes nos pisos do bairro aonde Natal veio ao Mundo no dia de Natal.
         Eu registrava um chão de esquina, com nódoas de pisadas de bailes antigos. O desenho era primoroso, lembrando minhas aulas  universitárias de Geometria Descritiva. As cores sobrepostas davam excelente noção de profundidade à maravilhosa arte. Estabelecimento antigo, comandado por sobejos de famílias que resistem ali.
Deixei o local e segui contemplando. De repente uma música foi se intensificando conforme a minha aproximação. Ouvi, nitidamente: “e tome, e tome, e tome, tome, tome...”
A “cantiga de grilo” não tinha fim. O refrão comandava a melodia, sufocando o restante da letra, se é que havia.
E tome, e tome, e tome, tome, tome... 
Um transeunte falou-me: cuidado, andar por esses becos tirando fotografia o senhor pode ser roubado... acontece muito. Agradeci.
E tome, e tome, e tome, tome, tome...
O mantra reverberava mais alto, mesclado a cheiro de peixe frito. Logo senti um cheiro de bar e, mais próximo, cheiro de gente esquecida. Muitas cadeiras e mesas emolduravam o ambiente. Entrei e pedi um guaraná. Foi difícil a balconista entender. Música, risada, gritos, entre e sai de gente, conversa alta...
E tome, e tome, e tome, tome, tome...
No dancing, uma velha contando uns sessenta e cinco anos se remexia num frenesi pleno. Nem todas adolescentes mostrariam tanta malemolência. Morena, metida numa blusinha desses tecidos moles, agarrados ao corpo (creio fosse um top), mini-saia nos mesmos conformes, cabelos negros ao estilo tintura, unhas escarlates, roídas no toco como quem lava muita roupa. Lábios realçados por batom lamacento na mesma cor dos dedos. Todos apreciavam o bailado da dançarina velha. Velha igual aos casarios da Ribeira. 
O público era diversificado. Gente de todas as idades. Um jovem parecia ser uma espécie de namorado da velha. Quando iam dançar juntos, o rapaz a reivindicava com bastante autoridade, rodopiando o seu corpinho com firmeza. Comparada ao porte do partner, ela se tornava boneca levada pelo compasso. Havia muita obediência nela. 
E tome, e tome, e tome, tome, tome...
A música era intensa. Quando em vez o rapaz a deixava no saloom e se abancava à mesa para um trago. Os clientes apreciavam Pitu e Devassa em meio a pratos variados, guiados a farinha. Uns com peixe, outros com galinha. Poucos com camarão. A velhota seguia o jovem imitando-o no deguste. Após o gole, dava uma rabissaca, fazia uma espécie de charme com os cabelos, e retomava o embalo de sábado à tarde na Ribeira velha e abandonada. Era a atração do boteco. Seus trejeitos de dançarina roubavam a cena, totalmente despreocupada com possíveis censuras. Acho que não havia julgamentos ali. Sua plateia talvez a enxergasse como poderosa.
E tome, e tome, e tome, tome, tome...
Nada de a música parar. E nem de a velha deixar de dançar. Se por ali passasse gente dada a recatos, enxergaria devassidão. Não pela beberagem, creio, mas pela alegria e desenvoltura desmedidas. Nada que não lembrasse muita felicidade. Todos gargalhavam, falavam alto, gritavam, comiam sem etiquetas, brincavam. Algumas mulheres, sentadas sobre as pernas dos homens, prováveis namorados, davam gaitadas demoradas, cujas bocas pareciam engolir o Céu. A velha levantava o braço, variando a coreografia.  Bamboleava os quadrios e ventre, ora de maneira amaciada, ora com caráter desenfreado. Havia uma moça eletrizante dentro dela.
E tome, e tome, e tome, tome, tome...
A velha dançava a incessante música como se fosse a derradeira tarde com o seu bem. Haviam franguinhas jovens no cenário. O rapaz nutria fidelidade incomum para com a sua deusa. Beijavam-se cinegraficamente com volúpia que coraria os pudorados. Esquecia de informar: contava no máximo uns dezenove anos o rapaz. Era transparente não existir obstáculos naquela paixão espetaculosa, acariciada, clamante de olhares.
E tome, e tome, e tome, tome, tome...
Dado momento, o rapaz retornou à mesa, pôs-se a degustar pedaços fornidos de galinha e a jogar colheradas de uma farinha amarela na boca. A velha, apegada ao dancing, dançava, dançava, dançava. Havia charme no jogo de corpo da velha. Era um físico esquálido, obediente à sua coreografia particular. Ela meneava a cabeça, segurava as mechas aneladas como para fazer um rabo de cavalo. Os cabelos ondulados colaboravam com o charme. De repente, penteava-os freneticamente, fazendo as vezes de pente seus dedos abertos. Sacudia-os lá e cá, conforme os tomes. Era muito charmosa a velha. Charme estranho, mas inegavelmente atraente. Havia uma preocupação constante em sensualizar. A intensidade de sua graciosidade, mesmo esdrúxula, alçava volume à medida que era admirada. Os olhares nutriam o seu poder de odalisca cheia de charme. Charme de velha alegre. Feliz. Jovem. Havia plenitude nela e na dança.
 E tome, e tome, e tome, tome, tome...
A música era real, muito presente. Após alguns instantes bailando sozinha a velha reivindicava o parceiro. Fazia um rodopio e, tal qual uma franguinha, se amunhecava nas pernas do namorado. Surgia um beijo hollywoodiano. Ares levemente erotizados escapavam à platéia. Logo retomavam o dancing. Dessa vez a coreografia emanava ares voluptuosos. Ela curvou o tronco para o chão, fez como se acocorasse, colocou as mãos sobre os joelhos e jogou toda a sua energia para as nádegas, tremelicando-a com fazia Carla Peres em seus tempos áureos. Desabaladamente. A velha aproximava o bumbum o máximo possível das frentes do rapaz. Ele colocava as mãos em concha sobre o bumbum da velha e o segurava com firmeza. Era parte da coreografia. Outrora o rapaz mengava, ora agia um tremelique na cintura. Era dança de intimidades.
E tome, e tome, e tome, tome, tome...
A música saia das paredes. Estava impregnada no boteco. Presa nas bocas dos presentes. Após essa coreografia que pareceu exigir mais energia, retornaram a mesa para um reabastecimento de cerveja e nacos de frango. O rapaz denunciava-se glutão e sorvia goles mais generosos. A velha aparentava apenas molhar a língua como uma cobrinha pesquisando cheiro.  Logo se abancou novamente. Dona de uma energia admirável, a velha riscou destino ao dancing. Passou a dançar freneticamente uma mistura de coreografias fluídas de sua criatividade e dos eflúvios da água que passarinho não bebe. Creio. Ela possuia uma criatividade admirável ao se movimentar,
E tome, e tome, e tome, tome, tome...
O rapaz demorou-se na consumação dos acepipes. A velha, agora, fazia charmes. Colocou o dedo indicador na boca e fez cara insinuante. Não havia pista alguma de alcoolismo naquele corpo antigo. O rapaz sorriu com as pálpebras querendo despencar. Ela piscou como piscam moçoilazinhas apaixonadas. Fez rodinhas contínuas com o dedo indicador, chamando-o ao seu posto. A dança continuou intensa como se iniciasse naquele instante. A festa continuou. A velha continuou. Deixei o boteco, admirado pelo show gratuito. Se me perguntarem o que aprendi naquela tarde de boteco velho, diria: aprendi que felicidade e alegria são relativas.
No prenúncio do ocaso não houve mais registros de ladrilhos-hidráulicos.
E tome, e tome, e tome, tome, tome...

O dia da descida de "Emanoel"


O DIA DA DESCIDA DE “EMANOEL”

Era mais ou menos nove horas. O episódio passaria despercebido, não fosse o cuidado do cura em celebrá-lo com alegria junto ao povo, eternizando-o nas lembranças de quem o testemunhou, até que a morte os conduza aos sete palmos, e os sinos “batam”.
Era um dia muito especial para mim. Minha mãe estava em Papari, berço de nossos ancestrais. Ela deixara o estado do Mato Grosso do Sul, dias antes, e passou uma manhã comigo. Acostumado desde jovem a andar com máquina, registrei o momento ao lado desse meu tesouro de incalculável valor. As imagens não são perfeitas, pois descuidei-me de regular a velha Kodak, mas falam muito.

Além do padre João Batista Chaves da Rocha – amante da História, portanto peça rara nos dias atuais, havia seminaristas, coroinhas, delegado, prefeito, professores, promotora de justiça (ainda me lembro do seu nome: Yádia Gama Mayo, uma gaúcha que marcou história nessas plagas); juíza (Drª Eliane); também faziam côrte vereadores, alguns secretários municipais, demais autoridades e pessoas comuns. 


O sacerdote passava cá e lá, apressado, fechando os últimos detalhes para a descida do sino da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó. Na terra da intelectual Nísia Floresta, tudo é transformado em festa, assim como ela o fazia em seus colégios no Rio de Janeiro, assustando os pais desacostumados ao lúdico.

O povo aparecia de todos os lados, cheios de curiosidade. Um vuco-vuco interminável. O sino, maciço, fabricado em bronze misturado a ferro, com peso aproximado a uma tonelada, viera de Recife há mais de cem anos. Os infinitos rebimbares, banhos de sol e chuva, segundo alegavam, causou-lhe uma rachadura crítica, comprometendo o som, justificando a sua retirada.



O som, agora, tá gasguito, não vai nem nos conjunto; antigamente as badaladas respondia longe”, explicou o Sr. Bambão, responsável por décadas pelo toque do sino durante as celebrações. Esse mister foi herdado do pai e já fora transmitido ao filho Vicente.
Cansei de estar no cercado e me guiar pelo sino. Houve um tempo em que o sino informava hora, não era toda hora, mas algumas horas. Lembro que próximo a Currais o som chegava para a gente”, contou-me o senhor José Moreira do Nascimento, 85 anos.
Em Tororomba, eu era pequena, menina, quando mamãe mandava a gente ir pro banho; na primeira badalada do sino a gente corria pro banho, jantava e fazia carrera pra rua pra missa; antes da última badalada nóis já tava na igreja nas missa de Domingo”, explicou Natália Gomes do Nascimento, 90 anos.

Os depoimentos revelam o simbolismo todo especial acerca do sino da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, cuja responsabilidade ia além do convite para a missa. Ao longo de sua trajetória, a monumental peça serviu para comunicar ao povo incontáveis eventos que se davam nos assobradados cômodos superiores da Matriz. Era “o rádio” de Papari, assim posso comparar. 

Blem...blem...blem...blem...blem...blem...blem... o bispo Dom Perdigão adentrara na vila com comitiva, em visita pastoral. As paróquias potiguares eram subordinadas ao Bispado de Olinda. O evento, raríssimo, devia ser espetaculoso. A entrada do lugarejo fora decorada com guirlandas de flores, fitas coloridas e o sino fechavam o papel de tornar radiante o episódio. Seus badalos eram ensurdecedores.

Blem...blem...blem...blem...blem...blem...blem... o alistador chegara à cidade para alistar jovens para a Guerra do Paraguai. O imperador Dom Pedro não poupou província alguma. Duque de Caxias e Conde D’Eu garantiam que retornariam vitoriosos, mesmo que custasse a vida de quase toda população masculina jovem daquele país. 


A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó, em seus primórdios, era o centro das atenções. Tudo acontecia na Matriz. Muitas vezes coincidiam datas. Todos os cômodos eram usados. Pudera! Num tempo cuja cidade não tinha imóveis administrativos, exceto prefeitura, a igreja cumpria papel de abrigar todos os serviços vindos de fora para beneficiar o povo. A Matriz era auditório, escritório, berço de reunião abolicionista, enfim centralizadora de tudo.

Durante décadas o serviço militar foi realizado ali. As primeiras eleições deram-se exatamente sob a cumplicidade das paredes da Matriz. O sino chamava os eleitores para a eleição no primeiro andar da Matriz. A cidade, predisposta, já sabia o que aconteceria, portanto aguardava apenas identificar o badalar. Era hora de ir para a Matriz.


Poucas pessoas sabem, mas os sinos da Matriz tinham nome. Uma das duas torres é o campanário, onde ficava uma espécie de carrilhão. Ali moravam juntos o sino principal, ou sino-mor, frontal, batizado de “Emanoel”, Deus Conosco, portanto Deus chamava todos a toda hora para a sua casa. À sua direita jazia o sino médio, “Joaquim”, o avô de Jesus. O sininho menor, ao fundo, Maria, a Mãe de Jesus. Por último, o sino “Menino Jesus”. Eram quatro peças de tamanhos diferentes. O soar dos sinos da velha Papari era pleno de sacralidade. O rebimbar consistia em bênçãos levadas pelo vento a quantos casebres de taipa alcançassem.
Do alto do campanário, Emanoel, o velho de bronze, viu de tudo. Aliás, a família testemunhou séculos de história. Viram os novo-fascistas se aglomerarem diante de seu Cruzeiro quando do Integralismo. Viu a chegada dos despojos de Nísia Floresta. Viu os negros escravos que em seus cômodos escuros eram guardados por bondoso – e corajoso – padre abolicionista. Viu padres em conflito com políticos, padres apaixonados por políticos, padres fazendo corridas de jumento, freiras-vigárias escandalizando os católicos conservadores simplesmente por serem mulheres, Campanha da Fraternidade sendo parida debaixo de uma mangueira, enfim não houve episódio que ele não testemunhasse.

Tudo o que dizia respeito aos paparienses tem as paredes da Matriz como testemunha, e convocados pelos sinos. Sendo que nem todos eram badalados simultaneamente para todas as situações. Por tudo isso a igreja é intocável. Tudo o que for tocado para descaracterizá-la, consiste em afronta e mutilação à sua essência histórica e, por que não dizer cristã.
Quando o povo era convocado, o gesto se dava por toques específicos, extintos depois que a cidade começou a ver erigidas as suas instituições públicas. Assim, os espaçosos cômodos da Matriz foram sendo esquecidos.
No aspecto ritualístico, havia outra simbologia nos toques do sino. Obviamente falo de um tempo também remoto, anterior a 1996, ano que o sino foi arreado. Havia toque para enterro de anjo, toque para enterro de pagão, toque pra enterro de “moça-virge”, toque para enterro de gente idosa, enfim, os toques informavam a cidade inteira sobre quem estava indo para a “terra dos pés juntos”.

Os três sinos, tocados simultaneamente, só aconteciam durante eventos festivos. O primeiro toque da Hora do Angelus era anunciado por Emanoel. Maria se encarregava de continuar chamando o seu povo nos demais toques anteriores ao início do terço. Joaquim e Jesus sempre dormiam nesses momentos. Não se incomodavam com a voz da filha. Certamente era música para os ouvidos deles. Creio. O som de Maria, embora delicado, não era menos audível. Atingia a mesma distância do Pai. Mas completamente diferente do som clangoroso de Emanoel. Pudera! Até nisso os “engenheiros” medievais pensaram. Digo assim porque seu contexto arquitetônico, embora do século XVII, é desse período.



Mas, no tocante a tais simbologias, hoje restaram os toques pertinentes aos rituais da missa, procissões, festividades externas. Aparentemente sino tem relação apenas com alegria.
Não!
No curso de um enterro o sino toca. Enterro dado à tardinha tem aura misteriosa de tristeza. O ocaso e o momento fúnebre ampliam a sensação. A cor dourada da tarde, sob o som letárgico da morte deixa uma sensação de vazio. Imagino o que deve sentir quem enterra familiares nessas horas. Se eu morresse, queria enterro com dia nascendo, pássaros cantando, sol vivo e cidade nervosa.
Mas, retomando o assunto da retirada do sino. Há décadas que “Joaquim”, o gigante de bronze e seus familiares, perderam o seu modo original de ser acionado. Escavacando informações em 1992, os antigos não souberam me informar o ano dessa mudança. Ninguém mais o tocava por via das cordas manuseadas no térreo, através de adequados “puxavantes” ou “mucicas”...
É! Havia toques embalados, lentos, nervosos e repinicados.
O sino fica seguro através de uma estrutura muito fornida de madeira, atravessada por um eixo de ferro encaixado na estrutura de alvenaria da própria torre. É o contrapeso. Essa peça tem fundamental importância. O sino fica preso através de sua coroa atravessada por esse eixo, depois encaixada na parede, num relevo convexo. Um mecanismo o impede de deslizar horizontalmente. É uma mecânica interessante, servida das leis da física.
Em algum tempo do passado – ou desde a sua inauguração – o espetacular objeto e os demais passaram a soar por via dos braços fortes dos sineiros, ou “mestres de sino”, os quais seguravam (literalmente) o pinguelo interno, batendo-o contra sua campânula. Esse pinguelo, em formato fálico, em sua função original, ficava preso a um eixo abaixo da coroa, de modo que se movimentava livremente, conforme as puxadas da corda.
Considerando que em todos os lugares do planeta Cristianismo há um sino rebimbando através de uma corda – livre, leve e solto – balançando em torno de um eixo horizontal de 360º, exceto os elétricos e o de Nísia Floresta, suponho que algo de grave aconteceu no passado, e pôs em risco os fiéis e o próprio “Emanoel” e seus familiares, pois todos adoeceram. Seja o que for, nunca mais o sino retomou a sua característica original. Nunca mais dobrou. Sempre recebeu pancadas por força das mãos humanas.
Creio que a rachadura, que teve comprometida a qualidade e dimensão de sua sonoridade, foi ocasionada exatamente por isso. A pancada direta, dada pela força do homem é incomparável à força provocada pela movimentação da corda. Há uma física na reverberação dos sons, a qual se dá através do manuseio original, por via das cordas.
As pancadas que assisti ao vivo, algumas vezes, por curiosidade, se dão através de força descomunal. E saber que Jesus, Maria e Joaquim também eram acionados dessa forma, entende-se claramente porque se despedaçaram. Jesus, por incrível que pareça, foi o que se danificou primeiro, a ponto de não existir nem rastos para se fazer um chá (coisa de padres que não davam valor à História). Só resta saber se Joaquim e Maria permanecem guardados, pois os vi até 2012. São peças de valor estimativo incalculável. É a memória das raízes de Papari.
A excelência dos sons só acontece por intermédio de sua mecânica original. Observe o soar de sinos em algum filme. É um som melodioso, musical, harmônico, agradável. Isso ocorre porque o sino, em sua essência, funciona assim. Talvez os sinos foram inventados por poetas e músicos. Creio que em meio a tantas interferências na referida Matriz, ao longo dos anos, esqueceram de devolver ao sino sua gênese mecânica original. Esse reparo passa despercebido há séculos. É algo a ser analisado e quem sabe empreendido por futuros padres.
Pois bem, sua retirada, em 1996, ficou a cargo da Marinha, como se vê nas fotografias. Os marinheiros quebraram a alvenaria em sua parte convexa, onde se encaixava o eixo de ferro, peça principal na sustentação do objeto, e o caminhão-guindaste fez vir abaixo Joaquim, já idoso, combalido e apiedado pelo povo que o aplaudia com emoção. Todos sabiam que ele estava indo para o hospital dos sinos, no Pernambuco. A Marinha montou uma equipada UTI, pois tinha noção do notável paciente.
“Joaquim” retornaria remoçado e curado da fratura.
Houve muita alegria aplausos, falas, agradecimentos. Mas quando “Joaquim” deixou a cidade, causou uma rachadura em todos os corações que ali estavam. O buraco deixado na torre se estendeu a todos os distritos. Um vazio tomou conta de Papari. Saiu dali o pai amado. Joaquim e Maria ficaram na UTI, acamados na caminha detrás do altar-mor. Aguardam até hoje uma campanha. O povo não se preocupa tanto com a História. É mais fácil dinheiro sair do bolso para coisas supérfluas. Autoridades? Nem se fala. Boa parte quer coisa em troca. Fica difícil. O Papa orienta que não é bom os religiosos se misturarem.
Dona Maria do Carmo, esposa do Sr. Bambão, sineiro, não se conteve vendo o caminhão deixando o Átrio da Matriz. Perguntei por que ela se emocionava. Respondeu: “tenho medo de ele não voltar... de mandarem outro”.
Pessoas com idades entre 80 a 90 anos, chorosas, contaram-me que não tinham noção de quando Emanoel subira ao campanário. Óbvio que não se deu em 1755, data da “conclusão” da igreja. Mas eu perguntei porque queria saber se ele havia sido retirado antes. Se isso houvesse ocorrido anteriormente, os mais velhos saberiam. E diante dessa informação passei a acreditar que o sino havia descido uma única vez após a sua instalação original, há mais de cem anos.
Tudo isso reforçam duas hipóteses: 1ª ele ter se rachado devido às pancadas dadas através do pinguelo manuseado com as mãos; 2ª no ato da colocação já teria sido constatado possíveis riscos de acidentes e, devido à gigantesca dificuldade de retirá-lo e recolocá-lo novamente – através de força humana – adotaram o toque por via das mãos, abolindo as cordas.
Isso significa que, provavelmente, o sino de Papari nunca dobrou de fato. Ou seja, nunca foi tocado do térreo da igreja, por via de corda com um sacristão se dependurando e o objeto em pêndulo, em harmonia com o contrapeso. Em outro momento contarei aqui mesmo como se deu a subida do sino quando da sua instalação, há mais de cem anos.
Pois bem, algum tempo depois o sino retornou. Foi outra festa. Parecia que o sol estava sendo colocando no campanário. Emanoel reluzia mais que essa estrela de quinta grandeza. Um senhor perguntou se ele era de ouro. Com certeza Emanoel é de ouro! A restauração e o polimento deram-lhe coloração de ouro puro. Não se percebia sinal algum de enxerto de bronze e ferro em sua campânula.
O sino foi recolocado em seu local original após um único passeio. E Emanoel se fez Deus Conosco. Nunca mais o viram tão belo. E os toques foram retomados ao longo do tempo. As mãos humanas se encarregaram de permanecerem espancando-o... blem... blem...blem...blem...
Trabalho perfeito!
Não!
Passado algum tempo a rachadura retomou o seu vinco original para decepção de todos.
E nunca mais foi o mesmo. Ficou ainda pior.
Creio que, hoje, essa peça deve ser descida e exposta à visitação pública, pois pode se partir inteiramente. E outro, com as mesmas dimensões seja adquirido.
Sino é comunicação, música, alegria... e pode ser tristeza. Ele ‘fala’ que gente morreu, que Jesus subiu aos Céus, que a hóstia está sendo elevada, que a santa chegou da carreata, que a procissão percorre as ruas, que uma virgem morreu, que um anjo está sendo enterrado, que o morador antigo faleceu, enfim...
Blem...blem...blem...blem...blem...
Espera-se que um dia o povo papariense se curve de fato à Sagrada Família de bronze, e devolva a seu campanário legítimo.
Em Papari os sinos nunca dobraram. OBS. Eu havia dado n título “CAMPANÁRIO DA SAGRADA FAMÍLIA – O DIA QUE “EMANOEL” DESCEU AO SOLO DE PAPARI”, porém um sacerdote me corrigiu, explicando que a Sagrada Família é apenas Jesus, Maria e José, portanto o mudei. OBS. O presente texto foi iniciado em 1997 e concluído em 2019.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Crucificar o Padre Murilo?



CRUCIFICAR O PADRE MURILO?

Ontem eu digitava um texto, quando uma chamada No RN TV 2ª Edição, da Globo, arrastou-me para a tela da TV, coisa que normalmente me é invisível. O telejornal exibiu um vídeo, feito em aparelho celular, no qual o PADRE MURILO, administrador da IGREJA MATRIZ DE NOSSA SENHORA DE FÁTIMA, em Parnamirim, estoura uma champanhe defronte ao altar, durante uma celebração, como quem comemora. A propósito, a missa tinha aspecto festivo.
Após abrir a garrafa, ele faz como fazem os noivos e motoristas de carros de Fórmula 1, quando sobem ao pódio. Espargiu a bebida. A diferença é que o espargimento não foi em seu próprio corpo e nas pessoas que o circundavam, como manda a tradição, mas adiante de si, no chão.
A apresentadora informava que os fiéis estavam perplexos, alegando que o gesto do sacerdote não integrava o ritual inviolável de uma missa.
Alguns pingos da bebida atingiram a estátua de uma santa, a qual suponho ser Nossa Senhora de Fátima (perdoem se não a identifiquei).
Para os reclamantes a atitude do sacerdote consistiu numa blasfêmia, pelo fato de o champanhe conter álcool.
Não quero adentrar no mérito da possível blasfêmia, mas refletir sobre uma curiosidade percebida no vídeo exibido. Confesso que se eu fosse um padre, não permitiria uma igreja inteira me enchendo de flashes de incontáveis celulares. Eram tantos fiéis espargindo luz incomodativa sobre o padre, que forma-se um sol dentro da igreja. Creio que aquilo desconcentra qualquer homilia. Era para as igrejas fazerem como as emissoras de rádio que se filmam ao vivo. Quem tiver interesse em guardar a imagem, é só solicitar. Acredito que celular dentro de igreja (e em outros ambientes sérios) é coisa que ainda não foi discutida como se deve. Entendo que o aparelho dessantifica a missa. No máximo, quando em caso de grande necessidade deveria ficar em modo avião. Já vi cenas espetaculosas protagonizadas por gente com celular que, às vezes me sinto no século XII, pensando “será que isso é normal e eu que estou ficando velho?”.
Tenho impressão de que quem se entretém a pegar um celular, programá-lo para filmar e colocá-lo em riste adiante de uma pessoa, não está verdadeiramente assistindo a uma missa. Eu sou de um tempo em que uma missa ou um culto, pede pessoas sentadas, atenciosas, ouvindo o padre/pastor ou cantando em conformidade com o ritual. Fora isso, tudo dilui o sentido da contrição. Desconcentra. Perde a essência.
Se os fiéis que se revoltaram se enquadram nesse público contrito e realmente santificado, até teriam autoridade para estranhar a atitude do sacerdote, acaso, de fato, tenha consistido numa blasfêmia. Mas a cena revela mais gente preocupada em filmar do que em conceber no Mistério, salvas as devidas exceções.
       Mas, confesso, o que mais despertou a minha necessidade de refletir, foi outro detalhe.
       PADRE MURILO é um padre-intelectual (embora, diga-se de passagem, não quero dizer que isso seja parâmetro para ser padre, afinal boa parte dos sacerdotes o são). Padre Murilo é autor de uma infinidade de livros. Suas obras são recheadas de imagens que registram um trabalho admirável. Não é uma coisa de marqueteiros, ficciosa, para impressionar. É uma obra com cheiro de amor ao ser humano.
       PADRE MURILO é dos padres que, no seu tempo de seminarista, não foi adotado por madames da “alta society” banhando-se com perfumes do Boticário, usando celulares “top de linha”, camisas brooksfield etc. Desconheceu clausuras. Foi seminarista que percorreu as favelas e arrabaldes de Natal, pisando em coco de gente, suando de fio a pavio, saltando os regos de água podre, assistindo ao filme real da fome e evangelizando ainda com mais ênfase.
PADRE MURILO é fundador da ONG ILEAÔ, instituição vinculada à PJMP que fornece cursos profissionalizantes e cultura ara jovens humildes. ILEAÔ é uma palavra ioruba. (Significa CASA DA PLENITUDE, lugar de acolhida de qualquer pessoa, lugar onde se entra chorando e sai sorrindo). Veja só: ao escolher o nome ILEAÔ, constata-se o seu olhar respeitoso para com uma etnia apedrejada há séculos. Por mais que façamos aos povos pretos, ainda será pouco perante o crime da escravidão inclusive endossada por alguns vigários do passado, em meio a outros que os defenderam com a própria vida. Isso fala por si.
PADRE MURILO é fundador da CASA ABRIGO, instituição que acolhe uma multidão de pessoas em situação de risco. Crianças abandonadas ou vítimas de violência pelos próprios pais, vítimas de pedofilia ou abandonadas por terem alguma deficiência física e psicológica.
PADRE MURILO é presidente do CEDESC (Centro de Desenvolvimento e Cultural), instituição que acolhe...
PADRE MURILO foi presidente do COMDICA durante muito anos.
PADRE MURILO oferece dois reais aos moradores de rua que “moram” ao lado da Matriz de Nossa Senhora de Fátima, após a missa, para que eles comprem sopa. Alguns podem dar destino diferente ao dinheiro, mas isso não impede o sacerdote (ou qualquer pessoa) de permanecer firme no propósito de dar sem olhar a quem. As pessoas são livres para o bem e para o mau. Elas responderão por essa liberdade que é inviolável. Isso não tem preço.
Enquanto muitos condenam o referido padre por acolher pessoas entendidas pela “alta sociedade” como “marginais”, padre Murilo os acolhe (e deve acolhê-los, sempre), oferecendo-lhes a mínima dignidade, que é a atenção e o respeito. Ninguém olha para pobre! Onde estão os holofotes dos celulares que não se voltam para eles? Onde estão os que os acolhem no lugar necessário?
Mas, para finalizar, deixo as perguntas abaixo:
Quem filmou a Casa Abrigo e mostrou o trabalho social do Padre Murilo?
Quem filmou o padre Murilo doando dinheiro para os ditos “marginais” comparem sopa?
Quem filmou o padre Murilo atuante, pleno em suas ações sociais no COMDICA?
Quem leu os inúmeros livros do Padre Murilo?
Quem filmou os inúmeros mendigos e pedintes que fazem fila na Casa Paroquial da Cohabinal?
Quem filmou as atividades de arrecadação de recursos, feitas na casa Paroquial, cujo dinheiro é aplicado em ações em prol dos pobres?
Quem filmou os trabalhos feitos na Casa Ileaô e os divulgou pelo menos nas redes sociais ou na própria TV Cabugi?
Aos meus olhos a sociedade está meio louca. Muitos buscam conflitos onde eles não existem. Não seria melhor juntarem as forças e gritarem por um Brasil verdadeiramente melhor? Onde estão os “arrastões”? Onde estão os “bate panelas”? Onde estão...
O vinho original é alcoolico, pois a química da fermentação assim o torna. Nem por isso Jesus ficou bêbado. Seu grau de álcool é delicado, pois tanto Jesus quanto os sacerdotes da antiguidade sorviam menos de que uma colher de sopa. Portanto ninguém se alcoolizava para celebrar missa. A tecnologia atual, por via de produtos químicos, torna o vinho sem álcool. Mas sua química não seria nociva?
Até um recém-nascido sabe que abrir um champanhe e sacudi-lo, espargindo-o sobre si e outras pessoas simboliza comemoração, alegria, festa (exatamente o que a igreja praticava naquele momento que filmaram). Creio que o sacerdote, ao praticar o gesto tão condenado, o fez pela alegria do momento, pela significação de o que é abrir um champanhe.
Ninguém sabe se a bebida continha álcool, mas mesmo que contivesse, não é motivo para tal espetaculização.
Mesmo que ele o tenha feito por ingenuidade ou não, ele celebrava a alegria daquela comemoração. Se isso foi um erro, que os fiéis o tivessem questionado com diplomacia, na sacristia, depois, ao invés de o exporem, alargando os fatos, demonizando-o.
Eu não conheço o Padre Murilo pessoalmente, de conversa. Apenas li seus livros. Vi-o apenas uma vez, numa missa alusiva a um dos aniversários de Parnamirim. Contemplei uma homilia das mais belas que já assisti. Vi no altar o PADRE VIEIRA, tanto pela palavra poética e carregada de amor, quanto pela profundidade intelectual e clerical.
Confesso que estranhei o fato de atirarem o Padre Murilo ao Coliseu para ser degustado por feras, ao invés de jogarem os potenciais blasfemadores que ignoram os pobres e tratam as crianças desprotegidas como invisíveis. Essa deveria ser a oração verdadeira.
Esse episódio lembrou-me a história cristã, quando, diante de Jesus, gritaram: “crucifica-o... crucifica-o... crucifica-o...”.
Minha mãe costumava dizer que muitas vezes o capeta visita a igreja e leva colegas. Creio que esse foi um dia. A comunidade católica de Parnamirim, que tem culpa no cartório, com suas devidas exceções deve um pedido de desculpa ao Padre Murilo.