ANTES DE LER É BOM SABER...

CONTATO: (Whatsapp) 84.99903.6081 - e-mail: luiscarlosfreire.freire@yahoo.com. Este blog - criado em 2008 - não é jornalístico. Fruto de um hobby, é uma compilação de escritos diversos, um trabalho intelectual de cunho etnográfico, etnológico e filológico, estudos lexicográficos e históricos de propriedade exclusiva do autor Luís Carlos Freire. Os conteúdos são protegidos. Não autorizo a veiculação desses conteúdos sem o contato prévio, sem a devida concordância. Desautorizo a transcrição literal e parcial, exceto breves trechos isolados, desde que mencionada a fonte, pois pretendo transformar tais estudos em publicações físicas. A quebra da segurança e plágio de conteúdos implicarão penalidade referentes às leis de Direitos Autorais. Luís Carlos Freire descende do mesmo tronco genealógico da escritora Nísia Floresta. O parentesco ocorre pelas raízes de sua mãe, Maria José Gomes Peixoto Freire, neta de Maria Clara de Magalhães Fontoura, trineta de Maria Jucunda de Magalhães Fontoura, descendente do Capitão-Mor Bento Freire do Revoredo e Mônica da Rocha Bezerra, dos quais descende a mãe de Nísia Floresta, Antonia Clara Freire. Fonte: "Os Troncos de Goianinha", de Ormuz Barbalho, diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, um dos maiores genealogistas potiguares. O livro pode ser pesquisado no Museu Nísia Floresta, no centro da cidade de nome homônimo. Luís Carlos Freire é estudioso da obra de Nísia Floresta, membro da Comissão Norte-Riograndense de Folclore, sócio da Sociedade Científica de Estudos da Arte e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Possui trabalhos científicos sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, publicados nos anais da SBPC, Semana de Humanidade, Congressos etc. 'A linguagem Regionalista no Rio Grande do Norte', publicados neste blog, dentre inúmeros trabalhos na área de história, lendas, costumes, tradições etc. Uma pequena parte das referidas obras ainda não está concluída, inclusive várias são inéditas, mas o autor entendeu ser útil disponibilizá-las, visando contribuir com o conhecimento, pois certos assuntos não são encontrados em livros ou na internet. Algumas pesquisas são fruto de longos estudos, alguns até extensos e aprofundados, arquivos de Natal, Recife, Salvador e na Biblioteca Nacional no RJ, bem como o A Linguagem Regional no Rio Grande do Norte, fruto de 20 anos de estudos em muitas cidades do RN, predominantemente em Nísia Floresta. O autor estuda a história e a cultura popular da Região Metropolitana do Natal. Há muita informação sobre a intelectual Nísia Floresta Brasileira Augusta, o município homônimo, situado na Região Metropolitana de Natal/RN, lendas, crônicas, artigos, fotos, poesias, etc. OBS. Só publico e respondo comentários que contenham nome completo, e-mail e telefone.

terça-feira, 28 de maio de 2019

Dom Futuro (Conto de ficção)


DOM FUTURO (CONTO DE FICÇÃO)


Há muitos e muitos anos – no tempo de reis, rainhas e lacaios – os reinados e lugarejos mantinham-se isolados em regiões ermas e afastadas umas das outras. A grande maioria do povo vivia numa simplicidade incomum a ponto de algumas serem dotadas de certa ingenuidade. Essa inocência, embora não fosse generalizada acometia até mesmo as pessoas adultas, pinceladas por uma pureza semelhante ao comportamento infantil.
Muitas famílias viviam isoladas em áreas rurais e povoados acanhados, onde todos se conheciam e sabiam tudo uns sobre os outros. A simples passagem de um estranho denotava um acontecimento que mobilizava a curiosidade geral.
Nessa época as pessoas acordavam e dormiam no mesmo horário das galinhas. Deixavam a cama no primeiro cantar do galo e se deitavam quando os bichos começavam a se empoleirar, às cinco e meia da tarde.
A solidão e a escuridão infinita, quebrada apenas por um pavio de lamparina, fogueira ou coivara, estimulavam o povo a acreditar em assombração e ter medo de coisas ditas “do outro mundo”.
Nesse tempo existia um homem chamado Terêncio. Assim como a maioria de seu povo, trabalhava como um animal de carga. Não costumava descansar nem nos finais de semana e feriados. Acordava antes do cantar do galo e disparava para a roça. Só voltava quando as galinhas já estavam na segunda madorna. Levava o café da manhã num bisaco, preparando-o ali mesmo, na roça, entre uma enxadada aqui e outra acolá.
Sua esposa, Gasparina Leocádia levava o seu almoço diariamente às dez horas da manhã. Ela ajeitava a comida num prato, cobria com outro, envolvia num pano, dava alguns nós bem arrochados e pegava o destino. Ia a pé, cantando e falando com os passarinhos.
Assim que ele ouvia as cantorias da esposa, encostava a enxada numa árvore, lavava o rosto e as mãos com água trazida na cabaça e se sentava num tronco sob um juazeiro. Enquanto comia, ouvia a mulher contando as novidades daquela manhã: galinhas que botaram ovos, pintinhos que nasceram, alguma leitegada nova, cachorros que acuaram bicho na mata, a roseira que floriu, enfim, desenrolava o novelo de acontecimentos daquela manhã. Gasparina não parava de falar. Nem parecia viver sozinha com o marido naquele sítio, pois os assuntos não tinham fim.
O marido a ouvia atentamente, enquanto amassava a comida com uma das mãos e mandava os bolos para a boca. Naquele tempo ninguém sabia o que era garfo e faca. O povo comum tinha como hábito fazer uns bolos, misturando a farinha com feijão, arroz e a mistura. Chamavam isso de “raposa” ou “macaco”. Dizem que era até mais gostoso comer desse jeito. Terêncio chamava “mistura” de “conduto”.
Depois do almoço – que naquele tempo davam o nome de repasto – apreciava um bom pedaço de rapadura de cana e bebia a água da cabaça numa caneca de barro. Água fria e gostosa. Encerrado o tal repasto, pegava um galho fininho de mato verde, batia as pontas para esgarçar as fibras e escovava os dentes com baba de juá obtida com a casca dessa planta. Não há melhor dentifrício. Alguns trabalhadores mais folgados faziam uma caminha de folhas no chão e tiravam um breve cochilo. Não era o caso de Terêncio. Ele mal engolia a comida e retomava o cabo da enxada, ora moldando leiras, ora capinando, ora drenando o paul para chegar água ao pé das plantas. Para ele não se podia perder tempo. Costumava dizer: “tempo é dinheiro!!!”
Além de muito trabalhador, era focado nos seus objetivos e tinha metas em tudo o que fazia. Costumava dizer aos amigos que todos deviam pensar no futuro, pois ninguém sabia o dia de amanhã. Também apregoava que nessa vida é tudo na lei de Talião, “olho por olho e dente por dente”, que não existia amigo de fulano, mas amigo do que fulano era. Filosofava: “ninguém é amigo do Ricardo, mas do rei Ricardo... ninguém considera Leovegildo, mas o ferreiro Leovegildo... as pessoas não consideram vosmecê, elas consideram o que vosmecê é”. Ele vivia nesses filosofares saídos dos seus dedentros.
Gasparina, a esposa, achava lindo os palavreados do marido, embora não entendesse patavina alguma. Ela costumava passar horas observando-o com contemplação, desmanchando-se de amor, embevecida pelas atitudes do amado, admirando o fato de ele ter sempre uma frase pronta para as situações do dia-a-dia. Ela achava atraente tal comportamento. Dizem que Gasparina foi a mulher mais apaixonada que existiu sobre a terra. Contam.
       Naquela época não existiam agências bancárias. As pessoas guardavam dinheiro em casa, debaixo dos colchões ou enterrado em botijas, vasilhas de argila normalmente usadas para armazenar água. Terêncio armazenava seu dinheiro sob o colchão. Na realidade eles gastavam dinheiro raramente, pois o sítio fornecia quase toda a alimentação: gado, leite, porcos, galinhas, ovos, perus, patos, carneiro, bodes e tudo mais. O restante vinha da roça. A única despesa era com roupas e sapato. Mesmo assim quase não gastava, pois naquele tempo andava-se descalço. Sapato era apenas para ocasiões especiais, como batizar, casar e enterrar. Mesmo assim nem sempre ficavam calçados até o final do evento, aperreados pelos calos. Era comum voltar para casa com os sapatos nas mãos. Quando chovia, levavam os sapatos num bisaco e calçavam ao se aproximar do local do evento.
       A mulher tinha sempre um “vestido de sair”, e o homem um “terno de rua”, normalmente uma peça de linho branco para o cavaleiro se enfatiotar. Mas num tempo que quase ninguém saia para lugar algum, as roupas duravam muitos anos. Muitas donzelas se casavam com o vestido da primeira comunhão, bastando um reparo aqui e outro ali e tudo ficava tal qual vestido de noiva, Despesa só com calda e grinalda. Outras se casavam com o vestido da avó, depois de muito bem engomado.
E assim, nessa vida sossegada, quase sem despesa, sobrava todo o dinheiro das colheitas e do abate de animais. O dinheiro, como já foi dito, ia para debaixo do colchão. Mas chegava um momento que o colchão entronchava. Terêncio e Gasparina começaram a sentir dores nas costas. Foi necessário comprar algumas botijas para estocar o dinheiro das futuras colheitas. E haja botija!
       Então o casal passou a enterrá-las no tronco de uma quixabeira fincada no terreiro. Naquela época não se ouvia falar de roubo em casa alheia, mas nas matas, cujos salteadores armavam emboscadas para viajantes que levavam coisas de valor ou dinheiro em espécie. Mesmo assim quase não se ouvia falar desses assaltos. Quando acontecia, falava-se naquilo durante o ano todo como algo extraordinário. Dizem que o seguro morreu de velho... pelo menos Terêncio falava sempre esse refrão.
       Pois bem. Diante desse junta dinheiro aqui e esconde ali, Gasparina nutria uma curiosidade sem tamanho sobre o destino de tanto dinheiro. Acordava e adormecia encafifada com a atitude do marido, o qual estava sempre anotando valores, somando, enfim, riscando papeis relacionados ao seu tesouro. Onde quer que ele estivesse, lá estava Gasparina, olhando-o, admirando-o, curiosa. Toda vez que ele guardava um lote ela perguntava:
- Marido, vosmecê quer tanto dinheiro para quê?
Ele respondia:
- “Para o futuro, mulher... para o futuro”! E arrematava “enquanto alguns andam por aí iguais às cigarras de Esopo, ando eu cá como as formigas. Pois saiba que esse dinheiro é para o futuro”!
Gasparina ouvia atentamente, mas a explicação do marido a deixava cada vez mais encafifada. Então ela insistia:
- Mas, marido, quando é que esse futuro vem?
Ele respondia:
- A qualquer hora, mulher... a qualquer hora!
E assim entrava ano e saia ano. Terêncio aumentando a quantidade de botijas cheias; Gasparina aumentando a ansiedade. Sempre meditabunda. Ela não entendia como uma pessoa com tanto dinheiro para receber, se demorava a buscá-lo.
Todas as noites Gasparina dormia absorta em pensamentos. Parecia que um balde cheio de perguntas caia sobre a sua cabeça. E nesses conformes, sua mente fervilhava de indagações: “para quê meu marido tem esse apreço tão grande ao Sr. Futuro, certamente ele é um homem muito bom; quando será que ele vem? Por que demora tanto? Como ele é? Seria um cavaleiro jovem? Seria um velho? Vem preparado para levar um peso tão grande? Teria uma carroça? Seria estrangeiro? Seria de algum lugar próximo? Onde ele mora? Será que chegará com fome? Será que gostará da gente? Ficará satisfeito com a quantidade de dinheiro que Terêncio juntou? Levará o dinheiro todo de uma vez? Virá com alguém? Será que esse dinheiro é todo para ele? O que fará com tamanho montante? Virá com baús e malas suficientes para guardar tudo? Para onde levará esse dinheiro? Achará pouco? Será que ficará insatisfeito com Terêncio por não ter juntado mais?
E assim, mergulhada em dezenas – às vezes até centenas de perguntas – adormecia como se cada uma delas fosse um cordeirinho pulando a cerca. Daqueles que contávamos quando éramos crianças atrás de chamar sono. Eram tantas indagações que muitas vezes ela dormia na metade da centésima.
Quando os galos cantavam, ela corria para o fogão a lenha para preparar o café. Nessa hora o marido havia ordenhado as vacas leiteiras e estava nas imediações, aguardando ser chamado à mesa. Ela havia deixado a massa do pão descansando, coberta com uma fazenda pesada. Enquanto a água fervia, modelava os pães, colocava sobre folhas de bananeira e deitava no forno. Aprendera com a mãe. Todos esses afazeres eram regados aos pensamentos de sempre.
Muitas vezes Terêncio flagrava Gasparina como se ela estivesse saído do próprio corpo, tanto eram as suas divagações. De fato. Seu pensamento passeava encafifado. Não tinha fim os seus questionamentos. Sua espera era interminável.
Certa vez, num desses raros dias que eles gastavam dinheiro, foram arrastados à feira. Terêncio carecia de camisas; Gasparina, de calções e anáguas. Naquele tempo as mulheres vestiam tantas roupas debaixo da saia que até pareciam obesas.
Já no local, Terêncio pôs-se a resolver suas demandas e Gasparina ficou apreciando tecido na banca de um velho libanês. No ruge-ruge de pessoas passando lá e cá, ela deu fé de duas donzelas amigas. A primeira era dona Cassildeia Ugarda, tão ingênua quanto Gasparina. Naquele tempo até mesmo as pessoas jovens eram chamadas de “donas”.
A segunda amiga era dona Eufrásia Gamelona, o oposto das duas, por vezes até maliciosa. Na realidade Eufrásia Gamelona era viajada. O povo do lugarejo dizia que ela era “uma mulher de livros”. Conhecia muitos lugares, pessoas e culturas diferentes. Já havia visitado até mesmo reinos distantes, pois acompanhava os pais onde quer que fossem. Por essa razão tinha hábitos diferentes das duas amigas, as quais, além de simples e ingênuas, nunca saíram do local de nascimento. O único passeio era a feira, a missa, batizado, enterro ou visita a alguma família do mesmo povoado.
Nesse encontro, na feira, elas entabularam uma conversa e se esqueceram da vida. Num dado momento, Cassildeia Ugarda perguntou por Terêncio, então Gasparina respondeu:
- Está resolvendo coisas aí pela feira. Deve ter encontrado algum amigo. Só fico triste porque ele nunca encontra o futuro.
Eufrásia Gamelona nunca ouvira aquele nome, portanto, admirada, perguntou:
- Futuro?!!! Como assim?!
- É o homem misterioso, para o qual o meu marido junta dinheiro.
- Junta dinheiro?!!! Quem é esse homem?!!!
- Eu não o conheço – explicou Gasparina – Ele ainda não riscou nessas bandas para buscar nada. Lá em casa não há mais espaço para tanto dinheiro debaixo do colchão. Agora, meu marido deu para guardar tudo em botijas. Todo ano ele junta o dinheiro da colheita e diz que é para o futuro....
- Bem, mas se ele diz que é para o Futuro, para o Futuro é! Os homens sabem de tudo. Quem somos nós para entendê-los ou desafiá-los.
Naquele tempo a palavra de um homem era a que valia. Portanto a conversa das mulheres era nesses conformes.
- Mas o problema é que vivo ansiosa pela chegada desse homem. Nunca vi alguém se demorar tanto tendo dinheiro para receber.
Enquanto Eufrásia Gamelona e Gasparina conversavam, Cassildeia Ugarda estava impressionada com o assunto. Se não fosse num tempo de tanta inocência e falta de informação, ela pensaria que ambas estavam brincando. Mas como sabia que as amigas tinham o juízo de criança, iguais a muitas mulheres daquela época, viu na conversa um prato cheio para se divertir. Eufrásia Gamelona tinha uma alma venenosa e conversava com pessoas simples para dar vazão a sua peçonha. Então interrompeu-a:
- É verdade, caras amigas, os homens têm cada invenção. Bem fazemos nós, mulheres, cuidando apenas do fogão e da lavanderia. Como disse o sábio Boccaccio “são suficientes a agulha, o fuso e as rocas para as mulheres”. Pois bem... eu ouvi atentamente a conversa e me lembrei de um livro que acabei de ler. Chama-se Dom Quixote de La Mancha. Há um capítulo que a personagem Teresa Pança, esposa de Sancho, exige que ele traga dinheiro para as coisas de casa, já que vive pelo mundo como escudeiro de Dom Quixote. Ele reprova o pedido da esposa. No mesmo instante ela fica satisfeita e diz “vosmecê que ordena, já que nós mulheres, nascemos para obedecer os maridos, mesmo quando são iguais a alimárias”. Pelo visto, cara amiga Gasparina, o vosso marido é um verdadeiro Sancho. O homem que ele tanto fala é, na verdade, “Dom Futuro”, um cavaleiro muito importante, homem vistoso, elegante e bem vestido. Tenha paciência que uma hora ele chega. Continue juntando o dinheiro. Quando ele a visitar é só lhe entregar tudo.
- Exatamente. É o que eu acabei de dizer a ela – complementou Cassildeia Ugarda – nós mulheres, devemos obediência aos nossos maridos. Se é para entregar o dinheiro para Dom Futuro, que seja entregue.
As palavras da amiga causaram grande impacto em Gasparina, que foi logo dizendo:
- Meu Deus! Quer dizer que o tal homem é Dom Futuro? Ele é mais importante do que eu imaginava. Agora que não dormirei mais direito! Quer dizer que o nome dele é Dom Futuro?!!!
- Isso mesmo – concordou Eufrásia Gamelona – Dom Futuro! - fazendo o possível para segurar a gargalhada.
- Ah! Meu Deus, eu só espero que Dom Futuro chegue em casa quando o meu marido estiver, pois ele sai no primeiro canto do galo e retorna quando as galinhas entram na segunda madorna.
- É verdade, minha cara, mas quem sabe Dom Futuro vem justamente na boquinha da noite ou antes que o primeiro galo cante...
- Acho que é difícil ele vir nesse horário – opinou Eufrásia Gamelona – um é cedo demais, outro é muito tarde. Esse povo de negócio gosta da luz do dia.
- É verdade, mas se ele chegar e vosmecê estiver sozinha, não tem problema, pois sabe que o dinheiro é para ele.
- Ah! meu Deus! Fale pela boca dos anjos! Não vejo a hora desse homem chegar.
E assim, nessa palestra, as amigas passaram um bom tempo. Elas só não imaginavam que um ladrão ouvia toda a conversa. Era um forasteiro recém-chegado de uma longa viagem, e teve a sorte – se assim podemos dizer – de encostar exatamente ali para descansar. O couro da tenda impediu que ele fosse visto. A donzela Cassildeia Ugarda quis apenas troçar a amiga ingênua, mas acabou prestando um grande favor ao bandido. Antes Gasparina tivesse entendido as tantas vezes que Terêncio lhe dizia “quem conversa demais, dá bom dia a cavalo”.
Pois bem, o ladrão ficou por ali disfarçando até que Terêncio apareceu com as compras e Gasparina se despediu das amigas. A partir daquele momento o casal foi seguido pelo ladrão até localizar a propriedade. Depois disso, retornou à feira, usou umas moedas roubadas para comprar roupas boas e um bom chapéu. Isso feito cuidou de pernoitar na única estalagem dali.
Quando deu duas horas da madrugada ele disparou com destino à propriedade de Terêncio. Assim que chegou, escondeu-se detrás de um arbusto e aguardou os galos cantarem. Com mais alguns minutos as aves começaram a descer dos poleiros. Logo em seguida Terêncio saiu com destino à roça. O ladrão esperou mais alguns minutos, temendo a possibilidade de Terêncio ter esquecido alguma coisa e precisasse retornar. Mas passados bons minutos, resolveu aproximar-se. Primeiramente bateu palmas e gritou:
- Ô de casa! Bons dias aos senhores donos dessa bela estância que ora incomodo e que me desculpem chegar nessa tão inconveniente hora!
Quando Gasparina ouviu esses bons modos, julgou imediatamente tratar-se de Dom Futuro. Ela deu um suspiro profundo, colocou as mãos no coração e sentiu as pernas amolecerem. Na realidade, quase desmaiou de emoção. Mas se segurou o quanto pode e abriu a porta, dizendo com a voz trêmula:
- Bo... bom... bom... di... dia.... me... me... meu senhor!!! O que o senhor de... de... deseja?
- Sou Dom Futuro. Gostaria de falar com o vosso marido, senhor Terêncio!
O ladrão estava muito bem informado do nome do seu marido, graças à tagarelice na feira. Ao ouvir tais palavras Gasparina quase se estatelou. Estava desnorteada de emoção. Não acreditava estar diante de Dom Futuro. Mas com muito esforço, disse:
- Bom dia, Dom Futuro, o senhor me desculpe, mas estou emocionada com a vossa chegada tão inesperada. Parece incrível, mas, por coincidência, ontem mesmo falávamos sobre vossa nobre pessoa na feira. Eu e meu marido o aguardamos há anos. Todos os dias pergunto pelo senhor e ele responde que um dia chegaria. Que bom que esse dia chegou. Mas há um problema, ele saiu para a roça e só volta na boca da noite. O senhor pode tomar assento aqui no alpendre. Vou correndo chamá-lo...
Mal ouviu essa frase o homem cheio de cortesia saltou-se com um grito aterrorizante:
- Não!!! Não precisa chamar o senhor Terêncio!!!!
Gasparina teve um susto tão desabalado que estatelou-se num dos tamboretes. Preocupado com o gesto indevido o ladrão inventou uma desculpa para disfarçar:
- Mil perdões, delicada senhora. Eu ainda não tomei café. Quando estou com fome falo muito alto. Creio ter exagerado.
- Ah! Si... si... sim, pois está certo. Como bem disse minha amiga Cassildeia Ugarda, o senhor é um homem muito educado. Mas façamos o seguinte, queira entrar. Acabei de preparar o café. Tem pão saído do forno a poucos minutos, broa de milho, leite e café. Se preferir tem guisado de bode e carne de porco. O senhor pode se abancar e ficar à vontade tomando café. Meu marido adorará vê-lo. É o tempo que vou correndo à roça e...     
- Não!!!
Mais uma vez o homem soltou uma espécie de latido. O som foi tão alto que a pobre Gasparina descangotou-se no chão, assustada. E mais uma vez, já meio irritado, mas fazendo das tripas o coração para disfarçar, o ladrão disse:
- Todos os perdões do mundo, nobre senhora, mas tenho pressa. Preciso passar em mais um lugar para semelhante missão.
Ainda se recompondo do susto e com voz fraca, Gasparina falou:
- Eu que peço perdão ao nobre senhor Dom Futuro! Creio que minha reação é fruto de emoção. Ainda não acredito que estou diante de pessoa tão ilustre, tão esperada, tão falada por meu marido. Quando digo que vou chamá-lo, é que imagino a felicidade que ele sentirá por recebê-lo. Sei que ele ficará profundamente feliz quando eu contar que o senhor veio buscar o dinheiro. Mas se ele estivesse aqui teria sido melhor.
- Não seja por isso, nobre e elegantíssima senhora. Ontem, na feira, eu falei com ele sobre a minha vinda. Ele disse que era só me apresentar que sua senhora me entregaria o dinheiro.
O ladrão mostrava-se muito fidalgo e cortês, justamente para despertar ainda mais acolhida por parte da infeliz Gasparina que sequer supunha a trapaça. Sabedor de sua inocência, mentia que a consciência não sentia.
- Quer dizer que o senhor esteve com o meu marido, ontem?!!! Ah! esses homens como são esquisitos... custava ter me falado? Custava aguardar o senhor? Se fosse uma pessoa que estivesse constantemente aqui, mas uma visita tão rara!!! Mil perdões pela atitude deselegante do meu marido.
- Não, delicada senhora, não diga isso. O vosso marido é um homem distinto. Vive para o trabalho. É diferente de alguns, que se abastecem às custas do trabalho alheio. Mas, como disse, tenho muita coisa para resolver. Vossa mesa muito me agradou, obrigado por tudo. Agora preciso ver todo o dinheiro.
- Claro! Claro, com prazer! Faço questão de mostrar-lhe tudo.
E assim Gasparina levou o ladrão até o seu quarto e mostrou o volumoso colchão abarrotado de dinheiro. Em seguida o levou ao terreiro e mostrou onde estavam enterradas as botijas. O espertalhão ficou impressionado com a quantidade. Era impossível levar tudo nos dois sacos de couro que ele trouxe no cavalo. Então ele disse:
- É o seguinte, delicada senhora, eu não imaginava que o meu amigo Terêncio tinha juntado tamanha quantidade.
Gasparina o interrompeu:
- Mas o senhor não esteve com ele ontem?
- Si... sim... sim... – gaguejou o ladrão – mas ele não me informou esse detalhe.
- Esses homens falam de nós, mulheres, e são uns animais desligados!
- Não diga a isso, nobre senhora! O vosso marido apenas se esqueceu. Mas é o seguinte, vou pegar uma parte desse dinheiro e vou à feira comprar uma carroça com animais. Assim tudo estará resolvido.
- Maravilha, nobre senhor Dom Futuro! Que ideia brilhante. Enquanto isso vou à roça avisar ao meu mari...
Sem que Gasparina pudesse concluir a frase o ladrão soltou praticamente um urro:
- Não!!!
- Por que não, senhor Dom Futuro? Perguntou Gasparina, assustada com mais um arroubo do visitante.
- Porque não conheço essa freguesia e preciso que a senhora me ensine o caminho da feira. Vamos rápido, pois tenho muito o que fazer!
- Claro, claro, Dom Futuro, vou só no quarto colocar um vestido de sair.
- Não! Gritou o ladrão – o vosso vestido está ótimo. Na realidade a senhora nem descerá do cavalo.
- Certo, Dom Futuro, o senhor é quem manda. Mil desculpas pela inconveniente vaidade feminina.
E rapidamente Gasparina encilhou o manga-larga do marido e encetaram marcha até a feira. Assim que chegaram, compraram uma carroça movida a uma pareia de cavalos e retornaram em cima do rasto. O comerciante ficou impressionado, pois tudo foi pago à vista e com dinheiro em espécie.
Assim que chegaram ao sítio o ladrão pediu que a mulher o ajudasse, levando o dinheiro do colchão para a carroça, enquanto ele desenterrava as botijas. Após alguns minutos doze delas foram colocadas na carroça. Suando aos cântaros e arfando como um boi bravo, o ladrão não se cansava de admirar o montante de dinheiro. Como estava muito sujo de terra, Gasparina ofereceu-lhe os aposentos de banho, mas ele negou imediatamente, pois sabia o risco que corria. Então Gasparina disse:
- Mas Dom Futuro, não me faça uma desfeita dessa. Se o senhor quiser, oferece-lhe uma muda de roupa de meu marido. Compramos ontem na feira. Ele não se importará quando eu disser que foi para o senhor. Por favor, tome um banho antes de partir. Só sinto por Terêncio que não terá o prazer de vê-lo.
- Não se trata de desfeita, cara senhora, tenho muitos compromissos e estou muito atrasado. Mas façamos o seguinte, a senhora me dá a muda de roupa que eu a usarei na primeira estalagem que encontrar.
- Bom, já que é assim, o que se há de fazer. Mas uma coisa o senhor não vai me impedir.
Imediatamente Gasparina correu à cozinha, preparou várias comidas, ajeitou-as num farnel bem fornido e o entregou ao ladrão. Então ele disse:
- Minha nobre senhora...
Gasparina o interrompeu no mesmo instante:
- Não atalhando o que o senhor diz, mas nobre é o senhor, Dom Futuro! Eu sou sua pobre serva.
- Nada disso, és uma senhora adorável. Fiquei muito feliz por conhecer semelhante pessoa.
- Eu é que o digo, Dom Futuro. O prazer foi todo meu.
Então o ladrão aproximou-se de Gasparina, pegou delicadamente as suas mãos, beijou-a e falou com mesuras:
- Adeus, bondosa senhora! Muito obrigado por tudo! Diga ao vosso marido que ele continue guardando dinheiro para mim, pois um dia voltarei.
Enquanto o ladrão falava, Gasparina suspirava alto. Seus olhos brilhavam, escorrendo lágrimas. Então, com muito custo ela disse:
- Adeus, Dom Futuro! Adeus! Só não vou abraçá-lo porque as normas matrimoniais não permitem, mesmo sendo um abraço de mais profundo e intenso respeito.
- Pois está certo! Adeus!
E, virando-se para a carroça, montou-a e partiu. Ao passar pela cancela, fez o gesto de adeus com a mão e sumiu na estrada que era um verdadeiro túnel de árvores. Não fosse a chuva passageira que assolou na noite anterior, e a estrada coberta de musgo, teria se formado infindáveis volutas de poeira tal foi a velocidade que o ladrão encetou o veículo. Gasparina chorava e soluçava como uma criança que perdera um gatinho de estimação. A visita de “Dom Futuro” a abalou profundamente.
Ainda faltava muito para o horário do almoço do marido, mas sua felicidade incontida fê-la se adiantar, abalando-se para a roça. Dessa vez ela cantava tão alto que os passarinhos se assustavam. A cada passo e a cada acorde fazia bandos de aves explodirem nos céus. Assim, nessa cantilena desabalada, chegou à roça, onde o marido já estava a postos, estranhando sua chegada adiantada.
E mal se aproximou, disse:
- Meu marido, vosmecê não sabe o que aconteceu. Vosmecê não irá acreditar na novidade que vou lhe participar. Ai, meu Deus, dai-me força para conseguir falar... ainda estou emocionada!
Terêncio, acostumado às fantasias e exageros da esposa, perguntou, desinteressado:
- Pois diga, mulher, que novidade é essa? Só pode ser uma coisa muito boa, vosmecê veio tão cedo e cantando tão alto...
- É de alegria, meu marido, de alegria... estou muito feliz!
- Então diga!
- Foi Dom Futuro, meu marido! Foi Dom Futuro!
- Quem diabo é Dom Futuro, mulher?!!!
- O homem que vosmecê falava e guardava tanto segredo. Ele saiu ‘indagorinha’ de casa...
- Como assim? Eu não conheço nenhum Dom, quem me dera Dom Futuro!
- Que história é essa, meu marido, deu para brincar agora, foi?
- Não, mulher, vosmecê está cansada de saber que não sou homem de brincadeiras. Só não estou entendendo nada. Vosmecê pode me explicar que mulesta dos cachorro é essa?
- É o seguinte, Dom Futuro é o homem que vosmecê sempre disse que um dia buscaria o dinheiro que guarda em casa.
- Mas eu nunca lhe disse isso!
- Marido, por acaso estás caducando? É o que mais dizes. Todo ano guardas o dinheiro da colheita e diz que é para o futuro. Pois ele veio...
Com o sangue fugindo da face, Terêncio disse:
- Ma... mas... mas... quem veio?
- O senhor futuro, ou melhor, Dom Futuro! Eu disse que ia chamar vosmecê, mas ele alegou estar com pressa.
- Mas o que diabo ele queria?
- Ora, queria o dinheiro que vosmecê guarda para ele.
A essa altura, Terêncio estava quase fora de si, supondo mil coisas. Suas pernas fraquejavam. Os lábios tremiam.
- E... e... e,,, vosmecê entre... gou?!!!
- Claro! E ainda o ajudei a colocar tudo na carroça dele. Era muito educado, um verdadeiro cavalei...
- Não!!! gritou Terêncio, interrompendo-a – Não me diga que vosmecê entregou a um estranho todo o dinheiro da vida.
- Sim, e ainda tem essa tal de Vida? Vosmecê nunca falou dela! Se eu soubesse teria separado a parte dela.
- Cala a boca! Sua tola! Como tens coragem de cometer tamanha demência e ainda vir me dizer com essa felicidade!
- Meu Deus do céu !!! Esse meu marido tem cada coisa! Isso lá é jeito de ficar feliz? Estás tão satisfeito com a notícia que parece enraivado!
- Cala a boca, lesa dos mil e seiscentos diabos! Como podes ser tão burra!!! Diga-me que destino ele tomou:
- Ora! O único. Ele pegou a estrada rumo à freguesia. Mas porque só agora queres vê-lo? Quando eu disse que o chamaria na roça, ele falou que tinha estado com vosmecê na feira, ontem.
- Mentira! Vosmecê caiu na conversa de um ladrão!
- Não digas isso, marido. Era Dom Futuro em carne e osso!
- Que presepada de Dom Futuro é essa?
- Tu é que estás a inventar, meu marido. Sempre me dissestes que o Futuro viria. Nunca dissestes que era o nobre cavaleiro Dom Futuro!
- Sabe de uma coisa? Tu não tens jeito. Fique calada que é o melhor que fazes. Vou agora mesmo atrás dele?
- Mas para quê, marido? Eu já não entreguei todo o dinheiro para ele? Eu nunca vi vosmecê assim tão feliz a ponto de fazer-me de brinquedo.
- Ah! Meu pai! Isso não pode ser real. Venha, sua néscia! Vosmecê ficará em casa.
- Está bem, já que queres ter com Dom Futuro. Quem sabe o alcançará, pois ele partiu numa carroça puxada a dois cavalos.
- Cala a tua boca! Não diga mais nada!
E assim o casal saiu correndo até a casa da sede. Ao chegar, Terêncio pegou um arcabuz, encilhou o seu manga-larga e saiu no encalço do ladrão. A pobre Gasparina, toda dolorida, disse:
- Meu Deus! Que homem bom esse meu marido, com certeza leva essa arma de presente a Dom Futuro.
A inocência de Gasparina a impedia de perceber a desgraça que cometera. Para ela o ladrão não era ladrão, e sim Dom Futuro, e a atitude do marido não era raiva, mas uma forte emoção pelo aparecimento de Dom Futuro.
A estrada que unia sua propriedade ao resto do mundo era tão longa que parecia sem fim. Ela cruzava o povoado, uma para o Sul, outra dava para o Norte. Então Terêncio teve com os mercadores do centro da freguesia e soube que Gasparina havia estado ali com o tal Dom Futuro, e que ele havia comprado a carroça. Ao ser informado que o dito cujo tinha tomado rumo Norte, esporou o animal e saiu num galope desembestado. Tinha certeza que alcançaria o ladrão porque não se comparava a velocidade de uma carroça pesada de moedas com a leveza de um cavalo bom de corrida.
Já havia completado um quarto de hora que ele galopava como louco, deixando o rasto de poeira no caminho. De repente viu um pontinho escuro a muitos quilômetros adiante. Era a dita carroça. O ladrão também percebera a aproximação devido a velocidade do galope e as volutas de poeira formando nuvens vermelhas.
Ele tinha poucas chances de escapar. Se fugisse para a mata, tudo estaria resolvido, pois Terêncio assumiria a carroça e retornaria ao povoado. A desvantagem do ladrão seria perder o fruto do roubo. Se fixasse, poderia levar uma boa sova ou quem sabe até perder a vida. Sabe-se lá o que poderia acontecer diante da fúria de Terêncio.
Mas como alguns ladrões são ladinos, uma ideia veio-lhe à mente num rompante. Há uns bons minutos ele sentia os incômodos do repasto feito na casa de Gasparina. Havia comido muito. Como não bastasse, veio roendo o que ela colocara no farnel. A movimentação da carroça provocara-lhe certo desarranjo, aliviado apenas pelos gases que soltava cada vez que o veículo dava um sopapo.
Então ele manobrou a carroça, colocou-a em direção a Terêncio e revolveu a terra para apagar o rasto. Em seguida andou mais ou menos uns cem metros em direção ao povoado para dar a impressão que viajava para lá. Depois desceu e esvaziou o intestino na margem da estrada. Aqui para nós, a poia de merda foi tão bizarra, que superava em altura e diâmetro o cocô de um elefante. Feito isso despejou um frasco inteiro de colônia de alfazema sobre os excrementos e cobriu com o chapéu. Com a mesma calmaria, sentou-se sobre um tronco velho e ficou mascando um graveto, aguardando-o. Sua serenidade assustava.
Enfim, após alguns minutos Terêncio chegou, apeou e, por prudência, quis primeiramente verificar se era aquela carroça que levava a sua fortuna. Ele estranhou a tranquilidade do homem, o qual agachou sobre as folhas secas e ficou segurando o chapéu onde se escondia o impensável.
Fazendo das tripas o coração, Terêncio cumprimentou o ladrão, o qual fazia vários sinais e gestos desesperados. Logo, colocou o dedo indicador na boca e fez o gesto de psiu. Terêncio estranhou a atitude esquisita, mas quis permanecer cauteloso. Precisava ter certeza antes de agir.
Assim que se aproximou, o ladrão disse:
- Eu acabei de pegar um pássaro de ouro!
Muito surpreso, Terêncio perguntou:
- Como? Quem é o senhor?
A pergunta foi a deixa para que ele dissesse:
- Sou um mercador e levo muita mercadoria diferente para vendê-la no próximo povoado.
- Interessante! – disse Terêncio – eu tinha a certeza absoluta que o senhor ia para o Norte e não para a minha freguesia.
- Deve ser a distância e o calor. Quando estamos longe o mormaço brinca com os nossos olhos.
Meio desconfiado Terêncio disse:
- Mas que história é essa de pássaro de ouro?
- Ora, um homem já adulto nunca ouviu alguém contar sobre o pássaro de ouro? Ele vale mais que mil carroças iguais a essa e cheias de ouro.
- Quer dizer que vossa carroça está cheia de ouro?
- Não! É só força de expressão. Sou um pobre caixeiro viajante metido a mercador.
- E o que fazes assim, agachado, segurando o chapéu?
- É exatamente o pássaro. Tive essa ventura. Ele cruzou a mata agora a pouco e consegui pegá-lo. Estava aguardando algum viajante para me ajudar. Que sorte que o senhor apareceu tão rápido.
- Ajudar como?
- É o seguinte. Esse pássaro é uma ave encantada. Para que ele não escape deve ser trancado numa gaiola feita de varas de abeto. Para prendê-lo devo envolvê-lo com tal gaiola exatamente como faço com esse chapéu. Depois fecho a portinhola e está feito o serviço. Em outro tipo de gaiola ele escapa, pois é encantado. Os magos do reino de Dom Manoel  pagam todo o ouro lá existente em troca dele.
- E só pode ser uma gaiola de abeto?
- Sim, pelo menos foi dito pelo mago Pelopolim. É um pássaro único, não sente o seu perfume?
- Sim, há uma deliciosa fragrância no ar.
- É exatamente o cheiro dele. Veja como é algo diferente!!!
- E o que o senhor quer que eu faça?
- Quero que fique aqui segurando o chapéu enquanto vou a vossa freguesia mandar fazer a gaiola de abeto.
- Mas está tão longe. Estou numa séria diligência nesse momento.
- E do que se trata?
- Procuro um ladrão que segue nessa mesma estrada.
- Como assim?
- Ele roubou tudo o que eu tenho e viaja numa carroça nessa estrada.
Ao ouvir tal informação, e para despistá-lo, o ladrão disse:
- Ah! Deve ser Dom Futuro.
- Exatamente! E como sabes disso?
- Eu passei por um cavaleiro conduzindo uma carroça. Perguntei-lhe sobre a próxima freguesia e ele se apresentou com tal nome.
- E para onde ele foi?
- Havia um bando de homens a cavalo descarregando umas botijas, colocando-as nuns sacos de couro sobre o lombo de jumentos. Era uma tropa grande, e saíram em disparada pelas trilhas na floresta.
- Meu Deus! Eles dividiram e levaram todo o meu dinheiro.
- O quê??? Jesus Cristo!!! Que malvadeza! Como pode existir gente assim nesse mundo.
- É verdade. Mas agora vejo que é impossível localizá-los.
- Se eu soubesse teria feito alguma coisa.
- Mas seria o senhor sozinho contra um bando de ladrões.
- É verdade. E olha que não ando armado. Mas nem tudo está perdido, meu caro! Se vosmecê ficar aqui e fizer o que eu disse repartiremos o lucro em partes iguais, afinal sem vossa senhoria eu não conseguiria. Já estava desesperado a espera de alguém que passasse por aqui. Depois iremos ao reino de Dom Manoel tomar as providências. O mago Pelopolim ficará maravilhado com o nosso prodígio. Esse pássaro é procurado desde que o mundo surgiu. Só existem cinco deles. Três já foram pegos. São os três reinos mais ricos do mundo.
As palavras ladinas do ladrão foram ditas com tanta serenidade e riqueza de detalhes que Terêncio se convenceu. Ele observou que realmente os rastos das rodas estavam direcionados para a freguesia. Não poderia ser o ladrão, o qual, a essa altura, era impossível alcançá-lo, pensou. Então ele aceitou o acordo e segurou o chapéu cuidadosamente.
Era mais ou menos onze horas da manhã quando o ladrão subiu na carroça e saiu em direção à freguesia. Ele sabia que, se passasse na freguesia, poderia ser abordado por alguém, pois Terêncio alardeou o roubo na feira. Por esse motivo, assim que se aproximou da freguesia, fez um desvio e desapareceu na estrada rumo ao sul.
As horas foram passando. Já eram três horas da tarde e o homem não chegava. Terêncio começou a ficar agoniado naquela posição. Mas, como não tinha mais nada a perder – assim pensava – viu-se obrigado a permanecer ali, pensando na parte que lucraria com a venda do pássaro de ouro. Pelo menos não ficaria sem nada.
Mas como o tempo não volta, Terêncio começou a ficar cismado, afinal teria dado tempo de o homem ir e voltar. Logo, começou a pensar que ele poderia ter enfrentado dificuldade de encontrar alguém que fizesse uma gaiola de abeto. Não era comum. De repente Terêncio percebeu que a noite caia. Sua angústia aumentou. Mas ele estava firme no seu propósito.
O leitor talvez nem acredite, mas nesse vavavu deu meia noite. Logo a madrugada trouxe o uivar dos lobos. O céu, pincelado de estrelas, era a única visão do infeliz. Os primeiros raios de sol começaram a penetrar na floresta. O dia amanheceu. Já era onze horas da manhã. Mil pensamentos passavam pela mente de Terêncio. Então, completamente esgotado e com dores no corpo, ele disse:
- Sabe de uma coisa. Creio que o homem da carroça deve ter sido roubado ou quem sabe até coisa pior. Não é possível que ele volte mais. Eu fui roubado e estou aqui de castigo há vinte e quatro horas. Dizem que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão...
E devagarinho Terêncio foi aprumando a mão na base do chapéu. Levantou o objeto alguns milímetros, e com um gesto veloz passou a mão por dentro, dizendo:
- Eu vou é recuperar o que perdi! Não vou ficar aqui esperando como um bobo. Se o dono aparecer depois me resolvo com ele.
Mal disse isso recendeu uma catinga do outro mundo. Sua mão atravessou o chapéu e trespassou uma massa fria e grudenta que não saia dos dedos. A fedentina era tão nauseante que deu-lhe vontade de vomitar. Terêncio deu-se conta de que sob o chapéu havia uma poia de fezes bem fornida e forrada de alfazema. Pobre homem. Mais uma vez fora enganado. Seu corpo estava impregnado de uma pasta amarela escurecida. Ele ficou desesperado.
- Santo Deus! Aquele homem era o dito ladrão! Tive-o entre os meus dedos e preferi segurar merda!
Seu desespero foi tanto que chutou o vento várias vezes e esmurrou uma árvore.
Aos poucos foi olhando para si, constatando que estava pintado de fezes. O seu gesto brusco salpicou cocô em todo o seu corpo, deixando-o podre. Sem água por perto, o infeliz despiu-se e se espojou no chão tentando se livrar da fedentina. Estava fora de si. Após esfregar-se na terra como um lobisomem, montou no seu cavalo e encetou marcha para casa. Bufava igual a boi feroz.
Assim que chegou à porteira, Gasparina havia percebido a sua aproximação e veio encontrá-lo, cheia de entusiasmo.
“Então, marido, deu tudo certo? Como foi o seu encontro com Dom Fu...”. O grito do marido a impediu de continuar. Cale a boca, sua jumenta dos mil e seiscentos diabos! Toda essa desgraça é culpa sua. Até ontem tudo estava em paz e veio vosmecê com essa demência.
De repente Gasparina disse:
- Estranho, parece que cagaram no mundo. O meu marido sente essa catinga?
Terêncio já estava tão fora de si que se segurou para não fazer o pior. Inclusive veio-lhe a frase do pai já falecido “em mulher não se bate nem com uma flor”. Então Gasparina disse:
- Que homem engraçado esse meu marido! Se diverte com tudo e até parece que está bravo. Deve de ser a alegria de ter se encontrado com Dom Futuro.
Terêncio correu para o rio e tomou um bom banho. Estava arrasado. Não tinha mais o que fazer. O dinheiro de uma vida tinha ido embora como água despejada no deserto. Só restava se conformar, mas precisaria tempo. Então ele retornou para casa e se sentou, matutando alguma coisa. De repente apareceu Gasparina, oferecendo-lhe uma lavanda:
- Pegue, meu marido, vosmecê acabou de tomar banho, use essa lavanda, comprei ontem no centro da freguesia.
       A lavanda tinha o mesmo cheiro da que foi espargida nas fezes na estrada. Então Terêncio surtou. Pegou o frasco e o arremessou a quilômetros dali.
       - Santo Deus! É muita emoção para um homem só.
       A noite caiu. O dia amanheceu. Assim que tomou café, Terêncio se sentou numa cadeira de balanço e ficou olhando o horizonte. Estava macambúzio. Após algum tempo disse:
       - Gasparina, arrume tudo o que é vosso. Eu vou arrumar tudo o que é meu. Coloque o que puder na carroça e vamos embora. Nesse lugar não fico mais.
       - Mas, marido, a gente vai viver de arribada? Isso aqui é nosso. Vamos deixar para trás?
       - Cale-se a faça o que eu ordenei. O que eu tinha de mais precioso se foi. Esse lugar ficou insustentável. A gente tranca tudo. Se um dia der certo a gente volta. Agora vá, cuide de fazer o que lhe mandei.
       - Mas esse homem tem cada invencionice!
       E assim dispararam sem destino. Já haviam rodado umas dezenas de quilômetros. Já era mais ou menos três horas da tarde. Sem mais nem menos Terêncio perguntou:
       - Gasparina, vosmecê cerrou a porta da casa?
       - Ora bolas, marido, e por acaso eu havia de ter cerrado a porta? Que invenção mais destemperada é essa?
       - Invenção que nada! Tu estás doida? Pois vosmecê vai andar tudo isso de volta e vai lá cerrar a porta agora!
       - Mas nessa distância toda? Como vou chegar lá?
       - Com os pés! Vá agora cerrar a porta!
       A infeliz, toda dolorida, saiu em disparada enquanto ele ficou sentado na carroça, guardando-a.
       Deu quatro horas. Deu cinco horas. Deu seis horas. Anoiteceu...
       - Meu Deus! Que demora é essa! Será que aconteceu alguma coisa? Bem, mas não há nada o que fazer. O que me resta é aguardar o dia amanhecer.
       Terêncio amarrou a carroça e deitou-se nas roupas de cama que havia trazido exatamente para isso. O veículo era forrado de lona. Então, quando os passarinhos começaram a cantar, abrindo as quatro e meia da manhã ele desceu e inventou de acender fogo para preparar o café. Assim que a água começou a ferver ouviu uns sons incomuns à mata. Era um som humano. Ora arfava, ora gemia. Ele deu um pinote e escondeu-se detrás da carroça. Quando deu fé, notou a aproximação de Gasparina. A infeliz apareceu toda descangotada, segurando a porta da casa. Seu corpo joeirava filetes de suor tal qual uma cachoeira. Terêncio se aproximou e perguntou:
       - O que é isso, Gasparina?
       - Ora, meu marido, que pergunta! Vosmecê ordena que eu cerre a porta de casa e quando chego com ela, depois de todo esse sofrimento, me pergunta o que é isso? Estás louco?
       - Mas que absurdo! Tu que sois louca! Confesso que não acredito em tamanha leseira! Está explicada a razão dessa demora! Sois uma jumenta!
       - Era o que faltava! Depois da chegada de Dom Futuro o meu marido ficou todo diferente.
       E mais uma vez, fora de si, Terêncio agarrou um monte de mato do chão e soltou um urro na tentativa de extravasar a raiva.
       - Esse meu marido ainda está tão emocionado com a história de Dom Futuro que ainda não se acostuma. Ah! marido!
       Mal fechou a boca, ouviu:
       - Volte em cima do rasto. Tome esse dinheiro. Compre uma porta nova na freguesia e mande um carpinteiro instalar no lugar dessa.
       - E por que eu não posso levar essa?
       - Por que senão vosmecê só retorna amanhã. Vamos, faça o que ordeno!
       E lá se foi Gasparina, batendo os pés na bunda.
       Enquanto isso, Terêncio foi tomar café e aguardar a esposa atrapalhada. Alimentou-se, deu uma volta pelas imediações, retornou, ajeitou as tralhas na carroça,  preparou o almoço, almoçou e nada. As horas se passaram. De repente observou um ponto distante. Era mais ou menos três horas da tarde. Ficou atento. Devagarinho o ponto aumentava. Era Gasparina. Assim que ela chegou, esquartejada de cansaço, almoçou e deitou-se um pouco. Enquanto descansava, Terêncio disse:
       - Vosmecê fica aí atrás descansando e eu vou tocando a carroça. Não podemos perder tempo. É muito perigoso ficarmos expostos na estrada. De vez em quando pessoas são tomadas de assalto e perdem tudo. Há muitos salteadores que também usam esses caminhos.  Lá adiante, quando anoitecer, a gente enfia a carroça na mata e dorme. Por aqui não de deve confiar nem nos galhos das árvores.
E lá se foram...
       Era mais ou menos seis horas da tarde quando viram um altíssimo carvalho. A árvore, centenária, permeada de galhos muito grossos, facilitava a improvisação da dormida. Então eles enfiaram a carroça na mata, bem afastada da árvore e apagaram os rastos. Havia um pequeno regato nas proximidades. Tomaram um delicioso banho e afastaram mais o cansaço. Logo fizeram fogo e comeram carne seca com fruta-pão. Prepararam café e tomaram com bolachas que Gasparina preparara naquela semana.  
Para segurança de ambos, subiram no carvalho até o ponto mais alto que conseguiram, ajeitaram a porta entre uma forquilha de galhos, improvisando uma cama e se deitaram bem enrolados nos cobertores. Levaram também uma moringa com água para não ser necessário descer durante a madrugada. A escuridão era absoluta. O silêncio era absoluto. Logo dormiram com certo conforto.
Era madrugada quando ambos despertaram com uma algazarra. A princípio eles se assustaram, mas haviam escondido muito bem a carroça e amarrado os animais afastados, próximos ao rio. Restava-lhes permanecerem quietos e atentos. Logo perceberam que eram muitos homens, pois alguns carregavam candeeiros acesos, permitindo-lhes um campo de visão melhor. Havia uma carroça abarrotada de sacos. No meio da galhofa eles passaram a contar sobre os feitos daquela semana. Então Terêncio e Gasparina perceberam estar diante de um bando de ladrões, os quais narravam o fruto do roubo, provocando gargalhadas uns nos outros. Não apenas constataram se tratar de salteadores, mas até o nome de alguns foi anunciado.
- O que vosmecê roubou hoje, Esperidião?
- Tive sorte. Roubei uma diligência. Muitas moedas de ouro.
- E vosmecê Rubião?
- Roubei o castelo de um rei. Trouxe vários sacos de diamantes, joias e até mesmo algumas coroas de ouro.
- Muito bem, e vosmecê, Elesbão?
- Eu roubei uma venda. Consegui muito dinheiro.
- E vosmecê Gamelão?
- Eu assaltei a comitiva de um rei. Trouxe muita jóia e dinheiro em espécie.
- Pois bem, já vi que temos aqui uma fortuna que dá para viver bem até a nossa terceira geração.  Mas me diga o que vosmicê roubou, Centurião!
- A minha história é muito engraçada. Ao invés de eu ir atrás do roubo, o roubo veio atrás de mim...
- Ora! Como assim?
- Eu estava no mercado público de uma freguesia, de repente ouvi umas senhoras conversando. Uma delas dizia para a outra que há muitos anos o seu marido guardava dinheiro para o futuro.
Nesse instante, Terêncio teve um surto, mas teve que engolir a raiva e ficar em silêncio. Seria loucura enfrentar o bando de salteadores. Além de ser um número grande de homens, deviam estar armados.
       E o tal Centurião continuou a sua história:
       - No início eu achei que fosse brincadeira, então percebi que uma das amigas dessa mulher começou a inquiri-la, como se fizesse troça. Ela disse “ah! é o senhor Dom Futuro! Ele vem mesmo. Todo mundo espera por ele”. Ela percebeu que a dita mulher pensava que o futuro fosse uma pessoa, um homem, e alimentou sua fantasia.  E assim ela contou onde o seu marido guardava o dinheiro que juntava ao longo dos anos.
       Lá de cima da árvore, Terêncio se estrebuchava. Fazia força para não estourar. Era difícil ouvir tudo aquilo em silêncio. Ele já não suportava mais. Gasparina olhava o bando de ladrões com os olhos aboticados. Então ela disse ao marido “Veja, Terêncio, é Dom Futuro lá embaixo. Por que vosmecê e eu não descemos para cumprimentá-lo?!
       - Deixe de ser louca! Vosmecê parece que não toma tento nunca. Fique em silêncio!
       - Realmente, a cada dia que passa, menos eu entendo o meu marido! Ele sai à procura de Dom Futuro e quando o encontra não quer vê-lo!
       - Cale-se!
       E o tal Centurião continuou contando:
       - Pois bem, a tal mulher contou que seu marido ia bem cedo para a roça e voltava no finalzinho da tarde. Ela se despediu das amigas e foi embora. Eu os segui e descobri onde moravam. No outro dia eu fui até o sítio antes de eles acordarem, escondi-me na mata e fiquei esperando. Assim que o marido dela saiu, aguardei alguns minutos e me aproximei, identificando-me como Dom Futuro. Usei o nome que a amiga dela me batizou. Quando ela ouviu o meu nome, ficou eufórica, ofereceu-me café, quis que eu a acompanhasse até a roça onde o marido estava, mas demonstrei muita pressa, pois sabia dos riscos que corria. Enfim, saí de lá abarrotado. Roubei todo o dinheiro que o imbecil havia juntado a vida toda, graças à sua esposa. A danada era burra feito jumenta.
       - Essa foi a história mais engraçada que ouvi até hoje! Disse um dos salteadores.
       E todos caíram na gargalhada.
       Terêncio mordia os lábios e apertava as mãos. Não conseguiu conter a raiva. Habituado a dizer certos xingamentos com a esposa, ele não admitia vê-la hostilizada por estranhos, e muito menos debochada. Então ele teve uma ideia aparentemente insana, mas fluiu à flor da raiva. Pediu que Gasparina saísse da porta e se segurasse num galho, desatracou a porta da forquilha e a soltou lá de cima, urrando igual a um bicho feroz.
O barulho da porta despencando, batendo nos galhos, e seus urros, causaram um estouro nos pássaros que dormiam sob as copas das árvores. Som infernal. Gasparina se assustou com o rompante do marido e começou a uivar igual a lobo. Enquanto isso a porta foi se esfacelando. A queda livre dava a impressão de que canglorosos trovões explodiam na árvore. Os pedaços esfacelados da porta atingiram alguns ladrões que entraram em desespero. Pensavam que estavam sendo alvejados por algo do outro mundo.
       O pavor dos ladrões fê-los disparar dali, gritando, dizendo que o mundo estava acabando. Os animais quadrúpedes que dormiam sossegadamente, se assustaram e saíram em disparada, alguns se abalroaram nos ladrões, outros os atropelaram, outros o pisotearam, outros lhes coicearam, arremessando-os longe. Os bichos estavam aterrorizados com o barulho principiado no velho carvalho.
       - Corram, corram, isso é castigo... é o fim do mundo, vamos todos morrer! Diziam os salteadores.
       O barulho assustador ecoou na mata. Quem ouvisse aquilo pensava estar no inferno.
       Enfim os animais foram se aquietando, os ladrões desapareceram e o silêncio retomou o assento. Terêncio e Gasparina permaneceram quietinhos agarrados nos grossos galhos. A escuridão tomava conta de tudo. Passados mais algum tempo os pássaros iniciaram a alvorada e os primeiros raios de sol furaram as copas das árvores. Mesmo tendo amanhecido eles permaneceram quase uma hora acomodados. Precisavam ser prudentes, pois os ladrões poderiam estar nas proximidades.
       Após quase duas horas escondidos, Terêncio e Gasparina desceram cuidadosamente e foram se dando conta de um tesouro vinte vezes maior do que o deles. Ficaram impressionados com a quantidade de moedas de ouro, barras de ouro, diamantes, toda sorte de pedras preciosas, obras de arte e pratarias. A carroça dos ladrões era dez vezes maior que a deles. Logo viram as botijas que lhes pertenciam e os sacos que guardavam sob o colchão.
       - E agora, marido, o que faremos com tanta riqueza? Será que Dom Futuro vem buscar isso?
       - Cale-se, Gasparina! Vosmecê parece não tomar juízo! Vosmecê funciona melhor calada!
       Terêncio, muito cauteloso, percorreu um determinado perímetro sondando se realmente estavam sozinhos. Admirava-se com o abandono de tanta riqueza, lembrando das palavras dos ladrões, os quais julgaram que a confusão da noite anterior fora um castigo do outro mundo. Certamente se arrependeram e de fato desapareceram para sempre. Ou retornariam a qualquer momento? Eram as reflexões de Terêncio. Depois retornou ao carvalho, matutando o que fazer. Permanecer ali parecia perigoso. Enfim deu meio dia. Fizeram o repasto e resolveram deixar o local. Percebeu uma vereda na mata e preferiram usá-la, pois a estrada deixava-os expostos. Primeiramente apagaram as marcas das rodas usando galhos secos, espalharam folhas e desse moto encetaram marcha, cada um conduzindo uma carroça. Viajaram até o anoitecer, quando se deram num pequeno povoado.
       Havia uma pequena estalagem na qual se acomodaram. Na mesma noite souberam dos roubos que coincidiram com as histórias ouvidas dos ladrões. Vários viajantes contaram episódios de grandes roubos ocorridos em vários reinos. Ao amanhecer ficaram sabendo que estavam no reino que havia sido alvo dos salteadores, portanto foram imediatamente marcar uma audiência com o rei, contando a história. O monarca ficou perplexo quando eles lhes mostraram o tesouro na carroça.
Era o famoso Rei dom Luís, homem muito honesto e bondoso, o qual se propôs a ajudá-los a descobrir os verdadeiros donos de todo aquele roubo. E assim foi feito. Ao longo de dois meses percorreram vários reinados, devolvendo toda a riqueza que um dia foi levada pelas mãos dos atrapalhados salteadores. Riram muito com a história da confusão ocorrida no velho carvalho. Terêncio e Gasparina se tornaram pessoas muito conhecidas e respeitadas pelo gesto nobre. Todos se encantaram com a honestidade e bondade deles. Cada pessoa que teve a sua riqueza recuperada doou a metade a eles, os quais recusaram, mas em vão, pois foram obrigados a aceitar. Desse modo ficaram mais ricos que muitos dos que receberam sua riqueza de volta.
Terêncio e Gasparina ganharam grandes amigos para o resto da vida, retornaram para o local onde moravam, tiveram dez filhos e viveram felizes e ricos para sempre. LUÍS CARLOS FREIRE – 1979-2019

OBSERVAÇÃO: O leitor observou que essa história tem algumas nuanças machistas, no que se refere ao tratamento dado pelo homem à sua esposa, mas o autor preferiu fazer várias observações pertinentes, dirimindo essa concepção. Vale salientar que essa história faz parte do fabulário ibérico, e foi ouvida pelo autor quando ele tinha 12 anos. A mesma reflete o pensamento de uma época, portanto, se fosse modificá-la, perderia a sua essência.